A rejeição demonstrada por internautas à postura da cantora Anitta de se expor publicamente tomando parte dos rituais do candomblé suscitou discussões sobre um alegado problema de “racismo religioso” e intolerância na sociedade brasileira. Recentemente, também a coordenadora-geral do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afrobrasileira de Minas Gerais, Makota Celinha, por exemplo, afirmou em entrevista ao portal Brasil de Fato que o “racismo religioso” se manifesta “no fato de nossos terreiros serem depredados, de ligarmos a televisão e vermos as igrejas neopentecostais satanizando as religiões de matriz africana”.
Esses fatos convidam a uma reflexão madura sobre dois aspectos relevantes — e, quando digo madura, quero dizer realmente madura. Os defensores da liberdade e do pluralismo não podem agir infantilmente e se manifestar a todo instante seduzidos por ilusões de um mundo cor-de-rosa, onde não haja divergências e conflitos e todos se abracem em comunhão de fé.
Em nossas apreciações sobre a organização social mais vantajosa, trabalhamos com o mundo real em que vivemos, em que os seres humanos têm crenças diferentes, disposições diferentes, inclinações diferentes. A liberdade, nesse cenário, não é uma panaceia para eliminar os conflitos, mas um instrumento indispensável para podermos coexistir sem nos aniquilarmos por aquilo que nos separa. Quer nos emocionemos ou não com isso, é tudo o que a democracia liberal contemporânea possibilita.
Nesse sentido, o primeiro aspecto que importa examinar é essa expressão “racismo religioso”. Não seria possível, neste exíguo espaço, expor todas as diversas conceituações da expressão que encontro em matérias jornalísticas publicadas nos últimos anos. Mas basicamente esses conceitos derivam o racismo que existe no Brasil de uma complexa “estrutura” que envolveria das instituições à sociedade — o que tem uma amplitude bastante discutível e tende a esvaziar perigosamente a responsabilidade individual dos racistas. Assim, a intolerância religiosa contra os cultos de matriz africana seria uma expressão particular, no campo religioso, desse grande “racismo estrutural”. Em razão disso, falarmos “apenas” em “intolerância religiosa” seria insuficiente.
Ora, religiões como umbanda e candomblé são resultado de profundo sincretismo e não estão, absolutamente, limitadas a um grupo étnico específico. São praticadas por brasileiros de todas as cores e regiões. Tampouco se pode dizer que seus elementos constitutivos são unicamente africanos; a umbanda é orgulhosamente resultado de um amálgama de diferentes fontes, algumas europeias, outras africanas, outras indígenas, assim como o é o Brasil de forma geral.
Poderíamos até admitir que, nalguns casos, a ojeriza e as críticas a essas religiões sejam especificamente direcionadas a seus elementos estéticos de matriz africana, como que sob impulso de algum tipo de aversão irracional a tudo que tivesse relação com os povos negros africanos e seus descendentes; seria preciso, no entanto, demonstrar explicitamente que a motivação de uma determinada atitude seria essa para sentenciar que haveria ali um gesto de racismo. Do contrário, o que há é um tratamento descortês, incivilizado ou criminoso, a depender da categorização que o caso mereça, por parte de uma pessoa que afronta uma religião que não esposa, não um juízo de superioridade ou inferioridade racial.
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Segundo aspecto sobre “racismo religioso” e intolerância
Por si só, esse ato de intolerância e violência — como a depredação de terreiros — já é sumamente condenável, sem que se precise qualificá-lo como racista sob carência de maiores fundamentos.
No entanto, e este é o segundo ponto que importaria mencionar, não podemos confundir as críticas mais ou menos duras entre diferentes grupos de opinião na sociedade, como o são as religiões, com crimes a serem interditos. Se entregarmos demasiado poder ao Estado para controlar o que as pessoas dizem porque suas opiniões ferem nossas suscetibilidades ou por que as julgamos antipáticas e antifraternas, abrimos caminho para uma sociedade policialesca cujo desdobramento será a imposição de verdades únicas.
Makota Celinha, por exemplo, questiona a “satanização”, por parte dos neopentecostais, dos cultos afro. É preciso tomar muito cuidado, porque a ideia de que orixás ou espíritos seriam na verdade demônios é uma crença que as pessoas podem adotar dentro de suas comunidades de fé sem que isso constitua uma prática racista; os evangélicos neopentecostais provavelmente diriam o mesmo sobre os deuses xintoístas, os gênios da mitologia árabe, os deuses que se comunicavam nos oráculos gregos ou qualquer outra figura ou prática que não se ajuste ao seu universo religioso, independentemente da etnia dos adeptos, e, se quisermos viver em uma sociedade livre, goste-se ou não, celebre-se ou não, eles têm o direito de pensar assim.
A busca pela tolerância e a coexistência não deve significar obrigá-los a defender o contrário do que pensam e valorizar artificialmente outras visões de mundo. É impossível que todos os grupos religiosos e não religiosos considerem que as crenças dos outros têm o mesmo valor sem renunciarem a determinados dogmas e pontos fulcrais.
A maioria das grandes religiões considera que as práticas das demais não são concordantes com a vontade de Deus ou outros seres superiores, independentemente de sua origem étnica. Isso pode ser antipático em tempos em que o óbvio é antipático, mas é a verdade.
O que se deve exigir, em uma sociedade livre e organizada, é que, mesmo se acreditarem que todos os seres cultuados ou evocados em outras crenças são demônios, por exemplo, os neopentecostais não imponham óbices ao igual direito dos adeptos dessas crenças de cultuá-los e evocá-los, de divulgar sua fé, de defender seus pontos de vista sem censura e, claro, de, por sua vez, considerarem a crença neopentecostal a respeito uma estupidez. É isso que o Estado de Direito e a democracia liberal devem arbitrar e determinar, nada além. Não é sua função moralizar as pessoas.
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