Em ano de eleição presidencial é bom estar atento às pistas falsas da política. Quase nunca o mandatário empossado se pareceu fielmente com a imagem do político que ainda não tinha se sentado na cadeira número 1 da República (que o STF atualmente sonha em transformar na cadeira número 12). Nem Bolsonaro, nem Lula, nem presidente nenhum que o Brasil já teve encarnou no Palácio sua própria figura pregressa — e boa parte do que se podia esperar dela, nas expectativas caricatas que a política costuma suscitar.
Collor, por exemplo. Era o caçador de marajás, representando uma espécie de “direita” moderna contra os vícios fisiológicos da velha política. No que assumiu já submeteu a população a um plano econômico com um nível de autoritarismo estatal que nem a “esquerda” arcaica tinha coragem de cogitar. Colocou uma espécie de czarina no comando das ações, transformando a tecnocracia atrapalhada de Zélia Cardoso de Mello numa lição histórica sobre o que acontece quando se confunde arrogância com perícia.
O confisco, ou embargo do acesso dos brasileiros às suas contas bancárias fora dos limites baixados pela czarina de Collor, foi um ato de fazer stalinista aplaudir de pé emocionado — contrariando diametralmente a embalagem do candidato “capitalista moderno”. O desastre de demagogia e prepotência desse governo aventureiro foi o maior combustível que o petismo e o lulismo receberam em toda a sua vida de farsa “contra os poderosos”.
A chegada de Itamar Franco ao Palácio do Planalto também foi a contradição de si mesma — no terreno das expectativas que a política cria. Por conta do naufrágio da aventura “direitista” moderninha (esses conceitos sempre ajudam as pistas falsas), Itamar virou uma espécie de esperança moralizadora nacional-progressista após o trauma do trem fantasma collorido — com PC Farias, Zélia, Pedro Collor, Rosane e grande elenco da modernidade arcaica feita de gel, petulância e gula.
Ninguém esperava mais nada sério vindo dali — e veio o Plano Real, a coisa mais séria feita no Brasil em décadas
Nesse astral de tirar a política dos porões da Casa da Dinda, Itamar entregou o comando da economia a um sujeito gente boa, simpatizante do Galo da Madrugada e da ecologia. De fato, simpatia é quase amor — o que não é pouco depois da carranca da Zélia. Mas daí a resolver o problema da hiperinflação vai uma certa distância. Para complicar um pouco mais, Collor tinha finalmente acertado com a nomeação de Marcílio Marques Moreira para a Economia — cuja gestão discreta e competente foi interrompida pelas boas intenções de Itamar. As aparências enganando de novo, dramaticamente, no sentido oposto.
Fernando Henrique foi nada menos que o quarto ministro da Fazenda de Itamar em pouco mais de seis meses. Ninguém esperava mais nada sério vindo dali — e veio o Plano Real, a coisa mais séria feita no Brasil em décadas. De novo a traição das expectativas: FHC era um intelectual perdido na política (segundo os estereótipos), um sujeito educado para explicar o fracasso com boas maneiras. O PT salivava e só esperava a hora de pegar a chave do Palácio. Esperou dez anos.
Hoje FHC representa a desonestidade intelectual na política, fazendo vista grossa para os crimes de Lula e envenenando a ação meritória de Paulo Guedes para surfar na caricatura antibolsonarista. Mas boa parte dos fundamentos que permitem avanços na política fiscal de Bolsonaro e Guedes foi plantada por FHC, numa gestão que não pode ser classificada como menos do que magistral — regendo uma equipe de excelência e inaugurando a transparência e a previsibilidade na condução macroeconômica.
As aparências enganaram com Collor (até no momento em que ele acertou), com Itamar, com FHC (antes e depois), com Bolsonaro (um nacionalista estatizante que deu sua guinada liberal) e também com Temer, que de vice da Dilma conduziu um período de saneamento da lambança petista. Assim como FHC, Temer fez o favor de também contrariar depois as boas expectativas, aderindo a conversas fiadas sobre “semipresidencialismo” e outros zumbidos golpistas.
Até Lula chegou a driblar as projeções (para o bem) ao assumir a Presidência, jogando fora todo seu discurso populista e adotando uma política macroeconômica responsável, em prosseguimento às reformas do Plano Real. Infelizmente isso durou pouco e ele preferiu voltar ao normal, fazendo a festa dos picaretas do bando. Ainda assim, contrariou as expectativas “socialistas” e preferiu o bom e velho capitalismo como local do crime.
Como se vê, nenhuma embalagem é confiável. Nem mesmo credenciais são plenamente confiáveis, tampouco seus portadores. Confiáveis são os fatos — se você não se importar de olhar para eles.
Leia também “Jantando a democracia”
Excelente artigo. Infelizmente grande parte dos eleitores, num exercício de comodismo ou alienação, tende a “deglutir” informações prontas e pasteurizadas, sem se darem o trabalho de pensar, analisar e refletir.
Hoje, com a quantidade de informações disponível só não conhece o “produto” quem quer ser enganado!
Parabéns pelo artigo Fiúza.
A política é a arte de enganar, ainda que a internet veio pra desmentir essa frase, estamos vendo tudo com maís clareza e a cooperação da revista Oeste
“Como se vê, nenhuma embalagem é confiável. Nem mesmo credenciais são plenamente confiáveis, tampouco seus portadores. Confiáveis são os fatos.”
Isso serve exatamente para o momento em que estamos. Que as pessoas parem de observar a forma, e vejam todo o trabalho que foi feito no país.
Excelente insight! Muito boa análise do nosso passado recente.
Gostei da expressão: “confundir arrogância com perícia”. Lembrei da Sra. Rousseff.
Concordo, Fiuza! Muito importante bater nessa tecla, para que as pessoas sempre se atenham aos fatos já ocorridos, coisa que poucos fazem.
Somos muito vulneráveis a discursos e rótulos, e pouco afeitos à memória de ocorrências que podem muito nos ajudar a fazer opções melhores. Obrigada ! Muito bem posto como sempre!
E mais uma vez estamos com a sombra do PT salivando, para pegar a chave do planalto, e meter a mão no cofre.
Infelizmente, poucos gostam de ler e de conhecer a história, com isso, tornam-se fanáticos pelas aparências, pelos invólucros.
“com PC Farias, Zélia, Pedro Collor, Rosane e grande elenco da modernidade arcaica feita de gel, petulância e gula” muito bom!
Por favor eleitores, olhem os fatos !!!
Eça de Queiroz já dizia: “Os políticos e as fraldas devem ser trocados frequentemente. Pelos mesmos motivos.”
É como penso.
Perfeita descrição do período 1989-2022, Fiuza. Genial. Apenas devemos nos ater aos fatos, não aos invólucros.