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Thomas Sowell | Foto: Divulgação
Edição 121

Um patrimônio da sanidade

As críticas de Sowell são perfeitamente imputáveis às invenções progressistas que têm em seu cerne o velho erro marxista: o sonho de controle das vontades humanas por meio de políticas estatais

Pedro Henrique Alves
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Thomas Sowell — filho intelectual de Milton Friedman — é quase unanimemente reconhecido como um dos mais proeminentes e habilidosos críticos sociais de nossos dias. E, com certeza, uma das críticas mais cortantes à justiça social foi realizada em seu livro The Quest for Cosmic Justice, recém-lançado no Brasil, pelo Clube Ludovico, sob o título: A Busca da Justiça Cósmica. O livro data de 2002, e trata-se de um dos mais eloquentes e populares escritos do economista liberal norte-americano. Esse livro, aliás, é um daqueles mistérios editoriais brasileiros que fazem todo amante de boas publicações liberais e conservadoras se questionar sobre o porquê de nunca ter sido traduzida antes.

O livro ganha temperos ainda mais gostosos quando notamos que o autor não só é negro, de origem extremamente humilde, criado no Harlem, o primeiro de sua família a completar o ensino médio, mas também um dos liberais mais competentes de nossos dias, uma das mentes mais capazes na arte de investigar, analisar e criticar o “progressismo” abobalhado contemporâneo.

Foto: Divulgação


A Busca da Justiça Cósmica

Após provocações e debates acalorados na universidade, Thomas Sowell, há 20 anos, resolveu desenrolar suas críticas acadêmicas às ações afirmativas da Teoria de Justiça Social, encabeçada nos EUA, principalmente, pelo muito amado pelos progressistas John Rawls. Resumidamente, podemos afirmar que a tese de justiça de John Rawls se faz na crença de que a justiça na sociedade e a liberdade individual só são possíveis quando equalizamos as condições básicas entre todos os indivíduos através de ações políticas e jurídicas ativas (entenda-se: “via interferência do Estado”). Essa é, hoje, a crença fundamental da social-democracia europeia e de sua prédica pelo bem-estar social, assim como do progressismo histérico identitarista norte-americano e, cada vez mais, latino-americano: ou os homens partem do mesmo ponto, sob as mesmas condições de pressão e temperatura sociais, ou inevitavelmente estão abarcados por uma injustiça tirana e preconceituosa que deve ser erradicada pelo Estado.

Sowell desenvolve, numa argumentação profundamente fundamentada e tremendamente coesa, como tais reivindicações populistas da esquerda moderna, apesar dos contornos e das pinceladas pseudocientíficas dadas por homens como Rawls e Jürgen Habermas, deixa o fundamento mais óbvio e central de justiça marinando em uma ilusão tão absurda quanto patética e utópica. Isto é, o homem, sendo ele de carne e osso, erro e engano, por natureza não consegue — e nem um dia conseguirá —, seja por meios políticos seja por tecnológicos, extinguir certas diferenças básicas entre os indivíduos e grupos, pelo simples fato de que a perfeição não lhe é possível; fazendo assim a teoria de Rawls racionalmente natimorta.

Thomas Sowell | Foto: Divulgação

Se certa igualdade social é uma meta realmente justa e necessária — e Thomas Sowell a reconhece —, como a igualdade jurídica e política dos indivíduos. No entanto, enquadrar a humanidade numa forçosa igualdade social e material é o mesmo que restringir o empreendedorismo moral dos homens, é embatucar as suas capacidades de inovação e a criatividade, é, por fim, o mesmo que acabar com a liberdade individual em seu sentido mais elementar.

A tese central do livro é a seguinte: as escolhas e as vontades individuais são impossíveis de ser equalizadas, e, por isso, tal sintonia fina de condições sociais, uma espécie de justiça cósmica politicamente organizada, não passa de uma mentira fantasiada de benevolência política, um conto rearranjado da velha tese marxista de sempre. Se a justiça se define a partir de uma igualdade praticamente divina de ponto de partida social, a justiça então simplesmente não existe, afirma Sowell. Assim sendo, para o autor, Rawls é menos filósofo do direito e muito mais teólogo da libertação. Em suma, a esquerda busca uma espécie de ajuste utópico da moralidade e das vontades humanas, a fim de que todas e quaisquer injustiças e diferenças básicas de classes, até mesmo individuais — em todos os seus inumeráveis subitens, de capacidade intelectual a altura corporal —, sejam suprimidas por ações políticas de afirmação. Como afirmou Alain Besançon em A Infelicidade do Século: “Dizíamos que a moral comunista se baseia na natureza e na história; é falso. Baseia-se numa supernatureza que não existe e numa História sem verdade”.

O homem imprevisível

Mises, quando escreveu sua obra magna Ação Humana, partiu do princípio mais evidente da análise das coisas e culturas humanas: é impossível — manifestamente impossível — pautar e prever a ação humana baseada em políticas, cálculos e ciências. Podemos dizer que tal percepção permeia — com enfoque e métodos diferentes, mas ainda assim com conclusões parecidas — as análises e as críticas às ideologias totalitárias no século 20 feitas pelas mais brilhantes mentes daquela época. Dos oito volumes de História das Ideias Políticas, de Eric Voegelin, e O Ópio dos Intelectuais, de Raymond Aron, a Caminho da Servidão, de F. A. Hayek, e A Política da Prudência, de Russell Kirk. Pode-se chegar à percepção e à antecipação das possibilidades mais viáveis, é claro, e até mesmo a um certo grau de assertividade substancial — dizem tais pensadores —, mas jamais prever com exatidão as ações dos indivíduos na sociedade e muito menos em suas privacidades. Esse sempre foi e, parece, sempre será o problema do marxismo-progressismo, a impossibilidade real de centralizar e domar as vontades humanas a fim de fazer das teses de gabinete uma realidade imposta com sucesso.

A esquerda busca uma espécie de ajuste utópico da moralidade e das vontades humanas, a fim de que todas e quaisquer injustiças e diferenças básicas de classes, até mesmo individuais, sejam suprimidas por ações políticas de afirmação

Como dizia Viktor Emil Frankl — sendo ele mesmo um ex-prisioneiro dos campos nazistas —, até mesmo na situação mais deplorável e ditatorial, o homem sustenta algum nível de escolha e liberdade. Em última instância, dizia o neuropsiquiatra, naqueles campos, podia-se escolher comer ou não os farelos dados pelos soldados nazistas, mantendo assim uma rala e esfarelante liberdade, mas ainda assim uma liberdade de escolha não completamente previsível e calculável.

Sowell teve aquela mesma perspicácia dos grandes. Naqueles dias em que o identitarismo ainda dava as caras, e a justiça social encontrava-se afiançada por acadêmicos marxistas, o economista e crítico norte-americano identificou previamente como tais ideias poderiam se tornar o mantra da sociedade contemporânea, tendo em vista a velha sedução de perfeição ética que ela traz em seu seio. Como ele mesmo afirma: “O marxismo-leninismo é o máximo em um padrão comum entre intelectuais com visões cósmicas — defesas altamente sofisticadas de equívocos primitivos”. E, de fato, como hoje se mostra cortantemente real, a justiça social é a nova religião dos poderosos esquerdistas, tal como o identitarismo e suas modas se tornaram a atual liturgia das igrejas políticas que tais poderosos frequentam para se sentir moralmente superiores — ainda que seja um latente equívoco primitivo.

Thomas Sowell | Foto: Divulgação

Ideias têm consequências

O capítulo 3 de A Busca da Justiça Cósmica, intitulado “A tirania das visões”, é especialmente genial, o que me faz ter de analisá-lo com maior atenção aqui. Ele mostra como crenças errôneas e geopoliticamente tolas, como o enfraquecimento bélico e o desarmamento nacional do Ocidente, além das tratativas quase românticas e hippies dos líderes ocidentais ante os confessos ditadores, Hitler e Stálin, foram os verdadeiros propulsores políticos para os líderes totalitários do século 20.

“As potências do Eixo arriscaram a guerra com países cujo poderio militar elas sabiam ser maior do que o seu, porque não achavam que esses países tivessem coragem para lutar ou o bom senso de arregimentar forças militares suficientes a tempo de lutar de forma eficiente”, diz Sowell.

Thomas Sowell | Foto: Divulgação

A tese do capítulo, no entanto, não é tanto uma crítica histórica a esses líderes fracos do Ocidente da primeira metade do século 20, mas, sim, uma exposição de como ideias baseadas em fundamentos claramente errados e ilusórios, ou, para utilizar os termos exatos do próprio Sowell, pautadas em “equívocos primitivos”, causam danos efetivos à civilização. Um paralelo breve poderia ser feito com relação à guerra da Rússia-Ucrânia. Enquanto o mundo ocidental se fiava na crença colorida de que “a Rússia não ousaria”, enquanto a ONU dedicava enormes esforços em discutir teoria de gênero na Unesco e demais baboseiras ideológicas em cartilhas para a América Latina, países como China, Irã e Rússia gestavam forças militares e bélicas grandiosas e imponentes.

Conclusão

Sowell é, no mínimo, três vezes brilhante nessa obra: 1) quando prevê a eminência de uma nova teoria progressista que, em termos, substituiria as teses marxistas de “linha dura” do sovietismo; 2) quando identifica, já no núcleo da Teoria de Justiça Social, o seu problema fundamental (isto é: a impossibilidade de controle sobre as ações e os anseios humanos); 3) quando demonstra — com uma antecipação de 20 anos — como tais ideias são nocivas no médio-longo prazo, distraindo e contaminando as visões analíticas da política e da história, dando a possibilidade de tiranos e tiranias crescerem e se estabelecerem.

Trata-se, por fim, de um livro teórico, no entanto profundamente prático. As críticas que Sowell tece ao igualitarismo rawlsiano são perfeitamente imputáveis, por exemplo, à teoria de gênero e à teoria racialista do Black Lives Matter; e provavelmente o serão também para as próximas invenções progressistas que têm em seu cerne o velho erro marxista: o sonho de controle das vontades humanas por meio de políticas estatais. Temo dizer que são poucos os livros tão urgentes agora quanto esse. E o mais impressionante é que poderíamos dizer que ele é urgente, no mínimo, desde 2002. Sowell é um patrimônio da sanidade em tempos de utopias tolas.

Thomas Sowell | Foto: Divulgação

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10 comentários
  1. Luiz Otávio Dos Santos Nunes
    Luiz Otávio Dos Santos Nunes

    Infelizmente o professor maconheiro psolista da universidade federal de seu filho jamais indicará a leitura do eminente autor americano mostrado no artigo acima.

  2. Luiz Carlos
    Luiz Carlos

    Parabéns. Matéria apaixonante. Pena que não consegui encontrar o livro a venda. Se alguém puder me ajudar, agradeço.v

  3. ANTONIO IRINEU SALES ARRAIS
    ANTONIO IRINEU SALES ARRAIS

    A juventude é privada de obter estes conhecimentos, ou mesmo ter a oportunidade de conhecer de outras vertentes…..no Brasil o jovem aluno só estuda sobre a revolução francesa e a experiência socialista.

  4. Marco Polo Gerard Bondim
    Marco Polo Gerard Bondim

    Excelente dica!

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Oportunissima a reportagem sempre quis debater sobre essa questão da igualdade, não existe ninguém igual, a igualdade perante a lei é impossível, imagine perante pessoas, isso é uma mentira pra dominação. A característica mental explica tudo, ainda vem o ego. Os solidários e humanistas, por mais dedicados que sejam, não conseguem reverter o processo político. Isso não ocorre nem nos lares

  6. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Há tempos anseio encontrar nas páginas da Oeste algo parecido com o antepenúltimo parágrafo deste texto. Representa a essência do meu pensamento. O Ocidente se abobalhou de vez.

    1. Marco Polo Gerard Bondim
      Marco Polo Gerard Bondim

      A ONU fracassou em seu objetivo inicial ao destinar suas ações e tentativas para estabelecer como deveriam se comportar a Europa, América Latina e os EUA, enquanto, de fato, nada fazia em relação ao Irã, China e URSS, e esses se armavam cada vez mais. A ONU deixou os lobos se fortalecendo enquanto enfraquecia as ovelhas!

  7. Anna Beatriz Dale Espínola
    Anna Beatriz Dale Espínola

    Excelente! Obrigada!

  8. Bruno
    Bruno

    Um gigante de nosso tempo

  9. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante artigo! Preciso, claro e contundente.

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