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O presidente chileno Gabriel Boric chega ao seu escritório no palácio presidencial La Moneda em Santiago, Chile. Os chilenos rejeitaram esmagadoramente uma nova constituição progressista para substituir sua carta da era da ditadura, desferindo um golpe em Boric, que deixou claro que o processo de emenda não terminaria com a votação de domingo | Foto: Matias Basualdo/AP/Shutterstock
Edição 129

O povo chileno diz “não”

A grande maioria dos chilenos rejeitou uma Constituição que, com a justificativa de incluir minorias, acabaria por dividir o país

Patricio de la Barra
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Há exatamente 172 dias no governo, e com sua popularidade em franco declínio, o presidente do Chile, o esquerdista Gabriel Boric, decidiu apostar todas as fichas na aprovação do texto de uma nova Constituição. Seu desejo era recuperar o prestígio abalado por vacilos pessoais ou dos principais colaboradores.

Não deu certo. O esforço do jovem e inexperiente presidente não se refletiu nas urnas, atribuindo-lhe uma das suas maiores derrotas desde que assumiu, em 11 de março deste ano. Um revés histórico, que será muito difícil de assimilar, dadas as condições que se observam num país que até alguns anos atrás era seguro, estável e com indicadores econômicos crescendo acima da média da região.

Hoje, o Chile convive com uma inflação de 12,5% ao ano, a maior dos últimos 30 anos, com uma economia que cresceu 5,4% no primeiro trimestre de 2022, mas que agora permanece estagnada. Com o aumento da energia, da água e do gás, além dos produtos de primeira necessidade, a situação tende a piorar — o que deve incidir diretamente no aumento da deterioração da já arranhada imagem do governo.

Tudo vai depender do day after do rechaço. A expressiva manifestação de 62% dos mais de 13 milhões de votantes obrigou Boric a mudar radicalmente o rumo do governo, colocando em risco a fidelidade dos setores mais progressistas, cujas reivindicações apareciam estampadas no texto elaborado por 154 convencionais, eleitos através do voto popular.

O que estava em jogo

Basicamente, o povo chileno não aceitou as propostas de criação de um Estado Plurinacional, por entender que dividiria o país. Além desse ponto, tampouco agradou a proposta de acabar com o Senado, substituindo-o por Câmeras Regionais Autônomas. O mesmo acontecendo com as cotas para indígenas de 11 etnias diferentes em espaços representativos e a reeleição de presidente para dois mandatos consecutivos.

A forma como é abordado o direito ao aborto também é um tema altamente conflitivo e que não foi bem digerido pela população. Assim como a presença excessiva do Estado na solução dos problemas que afligem os cidadãos.

Tudo isso somado a posições mais radicais de alguns integrantes da Constituinte, que tiveram um forte impacto nos debates públicos. Ainda que muitas das propostas consideradas esdrúxulas não fossem incluídas no texto final, o olhar crítico da sociedade acabou prevalecendo.

A mensagem do povo

O povo que o elegeu no fim de 2021, e que votou maciçamente pela elaboração de uma nova Carta Magna que apagasse definitivamente os últimos vestígios da ditadura de Augusto Pinochet, decidiu não estender um cheque em branco ao governo de corte socialista. Como indicou o analista político Adriano Spedaletti: “O que pesou na decisão do eleitorado foi o sentimento de que os chilenos acreditam que podem ter um presidente de qualquer ideologia, mas que os sistemas republicanos não lhe permitem fazer o que bem entende”.

Por esse motivo, a jornada amarga de Boric teve uma repercussão imediata. Na mesma noite em que se conheciam os resultados, o presidente anunciou “que recebia com humildade a mensagem do povo e que procuraria colocar em pauta um novo processo constitucional, com o apoio do Congresso, das forças políticas e da sociedade civil”.

Manifestantes comemoram o resultado do plebiscito que rejeitou uma nova constituição para o país. Santiago, 4 de setembro de 2022 | Foto: Alberto Valdes/EPA-EFE/Shutterstock

De fato, o ocupante do Palácio de La Moneda se reuniu na segunda-feira com os presidentes dos principais partidos e membros da sociedade civil, procedendo à reestruturação do seu gabinete ministerial, abrindo espaço para os partidos de centro. A primeira a deixar o cargo foi a controversa Dra. Izquia Siches. A ministra do Interior (Casa Civil) cedeu o lugar a Carolina Tohá, presidente do Partido Pela Democracia (PPD). Tohá pertence ao conjunto de partidos da Concertação, grupo político que governou na época de Ricardo Lagos, um dos críticos mais duros do governo de Boric.

Na Secretaria-Geral da Presidência, o deputado Giorgio Jackson, amigo pessoal do presidente, foi substituído pela advogada Ana Lya Uriarte, ex-braço direito de Michele Bachelet e militante do Partido Socialista.

A bofetada desferida pelo povo pode influenciar também nas eleições de outubro próximo no Brasil

No total, cinco ministérios que sofreram mudança — o que não descarta outras alterações a curto prazo. O único rejeitado pela oposição foi o professor de história Nicolás Cataldo, comunista, que ocuparia a Secretaria-Geral da Presidência.

No momento em que o novo gabinete prestava juramento, dezenas de manifestantes provocavam distúrbios nas ruas do centro da capital chilena de Santiago, o que abre um novo e grave flanco no governo da Convergência nacional. As violentas manifestações que se sucederam durante e depois dos dias do “Estallido Social” de outubro de 2019 podem ganhar força num futuro próximo, devido à frustração dos grupos mais radicais, que esperavam ter suas reivindicações atendidas rapidamente. A primeira delas, e que foi promessa de campanha, era a liberação imediata dos presos que foram flagrados atacando estações de metrô, ônibus, estabelecimentos comerciais e prédios públicos.

Falta de liderança

Boric acreditava que uma vitória no plebiscito de saída lhe devolveria a confiança dos seus eleitores e que não teria de fazer concessões a políticos de centro, muito menos aos da oposição. Ledo engano. Segundo os principais analistas nacionais, a rejeição do texto constitucional, que repercutiu favoravelmente no mercado financeiro e no agro chileno, deve respingar no exterior, basicamente na chamada pátria grande, como é descrita a América Latina no Foro de São Paulo.

O ditador Nicolás Maduro, líder da esquerda bolivariana, foi o primeiro a reagir. Para o sucessor do coronel Hugo Chávez, que conseguiu emplacar uma nova Carta Magna no seu primeiro ano de governo — feita à sua medida — teria faltado pulso a Boric: “Ao processo chileno lhe cortaram as asas antes de iniciar-se como processo constituinte”, indicou Maduro.

Durante uma reunião de diretores do governo, transmitida pela emissora de TV estatal, o populista afirmou que faltou no Chile uma liderança firme para aprovar a nova Constituição. “Faltou uma liderança, clara e crível, com apoio popular, para colocar-se à frente do novo texto constitucional.”

A América Latina

A bofetada desferida pelo povo chileno ao governo socialista apoiado pelo Partido Comunista de Guillermo Tellier pode influenciar também nas eleições de outubro próximo no Brasil. Considerado um exemplo pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva em seus discursos, Boric pode ter deixado de ser referência importante no avanço da esquerda na região.

O mesmo deve acontecer na Argentina de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que costumam receber o mandatário do outro lado da cordilheira. A campanha de Kirchner, na Argentina, deve preocupá-la. O golpe de timão de Boric, após o insucesso, também deve levar o peronismo a uma reflexão profunda da força que tem o povo quando não vê suas expetativas atendidas.

Até o opositor Mauricio Macri, novamente presidenciável, criticou o descompasso do governo populista chileno, dizendo que a Constituição é um acordo pactuado, e não a imposição de uns sobre os outros. “No Chile, prevaleceu a sensatez, tendo ficado aberta a oportunidade de ditar leis imediatas e pensar numa futura reforma constitucional para consolidar o progresso e a justiça no país irmão”, afirmou.

A expressiva manifestação popular contra o governo populista de Gabriel Boric também impactou o vizinho Peru e a Colômbia, países que recentemente escolheram o caminho da esquerda para conduzir seus destinos. Dias depois do rechaço à nova Carta Magna no Chile, tanto no Peru como na Colômbia houve reações do que poderá acontecer num futuro próximo com o freio colocado pelos chilenos ao avanço da esquerda no continente.

O economista Elmer Cuba e o ex-ministro de Economia Luis Carranza coincidiram em suas opiniões. Segundo eles, “o resultado foi altamente positivo, porque abre a porta para armar um texto que realmente atenda às demandas sociais, que passam pela educação e pela saúde”.

Para o professor Rafael Piñeiro: “O Chile está dando um exemplo ao mundo, que é através das instituições e dos processos institucionais que se sai das situações difíceis”. Mas alerta para o fato de que a incerteza afeta negativamente as decisões de investimento, especialmente as de longo prazo. “O governo deve aceitar a ordem da maioria dos chilenos na busca por um país melhor, mas insistir em na ideia de que é preciso refundar o país seria um erro maior”, disse. “O fato que um governo atue como juiz e parte não traz bons resultados.”

Um pouco mais ao norte, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, foi mais contundente e, antecipando-se ao discurso conciliador de Boric, reagiu, como costumava fazê-lo quando liderava a guerrilha no interior colombiano, ao sentenciar que o rechaço à nova Constituição era reviver a ditadura do Pinochet. A intempestiva reação do esquerdista foi duramente criticada pelas autoridades chilenas, que consideraram uma intervenção desrespeitosa. Chile e Colômbia mantêm uma relação diplomática fluida, sendo a região norte do Chile a que mais recebeu imigrantes colombianos que buscam melhorar suas condições de vida.

O importante e decisivo episódio acontecido menos de seis meses depois do início do governo do líder da juventude chilena provocou uma reacomodação no espectro político interno. E seguramente é um alerta para os países onde se observa a formação de uma onda com viés de esquerda.


Patricio de la Barra é jornalista chileno radicado no Brasil e correspondente da Rádio Cooperativa do Chile

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8 comentários
  1. Ricardo Leite Dos Santos
    Ricardo Leite Dos Santos

    Viva a Pinochet e os chicago boys.

  2. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Eu não ficaria tão otimista. Ainda tem muita água para rolar nesse governo esquerdista

  3. Jorge Apolonio Martins
    Jorge Apolonio Martins

    Dos males, o menor.

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ainda bem que o povo chileno acordou a tempo do cochilo que deram nas eleições. Regimes de esquerda não deram certo em nenhum lugar do planeta.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Veja como fala os Comunistas, “não deu certo a nova Constituição chilena por falta de liderança”
    E o povo? Eles menosprezam. O Brasil deve fazer seus acordos diplomaticos e comerciais unilateralmente. Como se aliar a um grupo latino-americano com quebra de soberania?

  6. Andre mendonça
    Andre mendonça

    Gostem ou não, a verdade é que Pinochet e seus economistas conseguiram tirar o Chile do imutável atraso ibérico-americano, populista, e o transformaram na mais dinâmica economia deste canto esquecido do mundo, com os melhores indicadores de qualidade de vida. Pinochet e as ffaa chilenas impediram que o Chile se transformasse numa colônia cubana, como hoje é a Venezuela. Tomara que os chilenos resistam ao incendiário de metrô e não se argentinizem. E que os brasileiros não permitam o retorno do pesadelo petista.

  7. Moisés Tadeu Cantelmo ibrahim
    Moisés Tadeu Cantelmo ibrahim

    Teriam aprovado se fossem urnas eletrônicas brasileiras.

  8. JOSE FERNANDO CHAIM
    JOSE FERNANDO CHAIM

    Agora, não adianta chorar!! A burrada já foi feita, colocando esse sujeito no poder!!!

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