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Ao fundo, obra de arte ganhadora do Colorado State Fair Fine Arts Competition, "Théâtre D'opéra Spatial", de Jason M. Allen | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 138

A arte se liberta do homem

Aplicativos à base de inteligência artificial transformam em segundos ideias em imagens de sonhos

Dagomir Marquezi
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Todo ano acontece uma feira de arte no Estado de Colorado, EUA. Um dos vencedores deste ano foi um quadro chamado Théâtre D’Opéra Spatial (“Teatro de Ópera Espacial”), assinado por Jason M Allen.

O quadro impressiona pela grandiosidade onírica, pela composição das cores e pela harmonia de elementos. Mas existe um detalhe que o torna revolucionário: ele foi criado por um programa de inteligência artificial chamado Midjourney. Nunca antes o júri de um salão de arte foi obrigado a reconhecer a qualidade de uma pintura que não passou por mãos humanas.

Imediatamente os outros artistas protestaram, dizendo que Allen tinha fraudado a competição. O vencedor respondeu que não tinha enganado ninguém, e que havia deixado claro que sua obra era produzida “via Midjourney”. “Não vou me desculpar por isso”, disse ele. “Eu venci sem quebrar nenhuma regra.”

Uma reportagem do New York Times lembrou que a polêmica não é nova. A invenção da fotografia já havia provocado reação semelhante no século 19. O poeta e crítico de arte Charles Baudelaire chamou a fotografia de “o inimigo mais mortal das artes”. A arte, segundo ele, só poderia vir de alguém segurando um pincel em frente a uma tela em branco.

Afinal, o que é arte? 

Vamos à definição básica da Enciclopédia Britânica: “Objeto visual ou experiência criada conscientemente através de uma expressão de habilidade ou imaginação”. O quadro de Jason M Allen preenche os requisitos dessa definição. Com a diferença de ter sido criada por um programa de computador a partir da imaginação de um humano.

Hoje a internet e os celulares estão cheios de opções de aplicativos e programas que tornam acessíveis a qualquer um realizar o que Jason Allen fez. A base é a mesma: você passa a ideia do que quer em poucas palavras e recebe em segundos uma ilustração baseada no seu pedido. Estabelece-se uma interface entre sua mente e a criação da obra.

E chegamos à grande questão: o que vai acontecer com os profissionais da área? Perderão o emprego?

Testei um desses programas, o DALL-E. Escrevi (em inglês) o que eu queria e recebi quatro opções de ilustração para cada pedido. A partir daí podia escolher uma delas, pedir mais variações do tema ou editar uma dessas opções. O DALL-E vem com 50 créditos de criações grátis no primeiro mês e 15 créditos gratuitos por mês. Com US$ 15 (cerca de R$ 80) compram-se créditos para 130 obras.

O segredo de criar no DALL-E e outros programas similares é descrever bem o que você deseja. Aqui vão alguns exemplos da minha primeira galeria de arte baseada em inteligência artificial.

Uma das primeiras experiências foi pedir uma “aquarela impressionista de uma mulher loura em close”:

Foto: Dagomir Marquezi/DALL-E

A seguir pedi uma “pintura realista em estilo neoclássico de um jogo de basquete”:

Foto: Dagomir Marquezi/DALL-E

O programa incentiva o usuário a fugir do óbvio, a desafiar seus algoritmos com propostas inusitadas. O neoclassicismo é um estilo que foi predominante nos séculos 18 e 19. Pedir uma cena de um esporte contemporâneo com esse estilo gera resultados surpreendentes. O que é uma característica das mais louváveis numa obra de arte. No quadro acima, veja que a cesta de basquete se tornou algo como um vaso de flores.

Às vezes basta juntar palavras que provavelmente nunca estiveram na mesma frase. Eu pedi ao DALL-E que criasse um quadro com “gorila” e “baixo”. Só isso. Esse é o resultado:

Foto: Dagomir Marquezi/DALL-E

Mais música: pedi uma “arte digital realista de Johann Sebastian Bach tocando teclado num show de rock”. Deu nisso:

Foto: Dagomir Marquezi/DALL-E

Garota com Brinco de Pérola (1665):

Garota com Brinco de Pérola (1665) | Foto: Reprodução/Wikipedia

E pedi que o programa substituísse a modelo original por uma garota negra:

Foto: Dagomir Marquezi/DALL-E

Às vezes, tudo que queremos é o realismo de um patinho de borracha boiando na banheira:

Foto: Dagomir Marquezi/DALL-E

Ou a beleza sutil de uma pintura a óleo em estilo renascentista de um caça F-16 sobrevoando o oceano”:

Foto: Dagomir Marquezi/DALL-E

Um programa como o Dream Generator pode — como o nome diz — transformar uma foto num clima de sonho. Coloquei esta imagem que tirei no Duomo, em Milão:

Foto: Divulgação

E o programa Dream Generator transformou a foto nisso:

 

Foto: Dagomir Marquezi/Dream Generator

 

Um bonde na névoa

O mesmo New York Times publicou outro artigo na semana passada mostrando que o panorama das artes gráficas já mudou radicalmente: “Nos últimos poucos meses, geradores de imagens baseados em inteligência artificial, como DALL-E 2, Midjourney e Stable Diffusion, tornaram possível para qualquer um criar imagens únicas, hiper-realistas apenas teclando algumas poucas palavras numa caixa de texto”.

O repórter Kevin Roose entrevistou designers de games, publicitários e cineastas e descobriu que eles já aderiram à nova tendência. Um deles precisava da ilustração de um bonde andando na neblina e passou horas pesquisando bancos de imagens, como o Getty. O DALL-E resolveu seu problema em segundos. E por um preço infinitamente menor.

Foto: Patrick Clair/DALL-E

Essa tendência já vinha se firmando com um aplicativo chamado Canva. A ideia partiu de três australianos há dez anos. Fundaram uma startup que foi rejeitada por vários investidores. Hoje vale cerca de US$ 26 bilhões e emprega 2 mil pessoas.

O que o Canva faz é entregar nas mãos de qualquer pessoa a capacidade de produzir graficamente seu material impresso ou digital. Ele não cria imagens, mas entrega (por R$ 34,90, na versão PRO) o que uma pessoa precisa para manter seu blog, site, boletim, rede social, o que for. É tudo fácil, intuitivo, bem explicado. Resultado lógico: hoje o Canva é usado por mais de 100 milhões de pessoas em 190 países.

A combinação de um serviço como o Canva com a criatividade sem limite de um DALL-E é o que costumamos chamar de game changer. O jogo virou, e não deve ter mais volta. As artes gráficas estão ao alcance de todos.

Apocalipse profissional?

E chegamos à grande questão: o que vai acontecer com os profissionais da área? Perderão o emprego? Cairão na miséria? Não estou falando de algo distante. O mesmo princípio que teoricamente ameaça os artistas gráficos já mira na direção de redatores, escritores e jornalistas.

O uso da tecnologia de IA na escrita é uma incógnita, mas uma coisa é certa: a inteligência artificial já está entre nós, não importa o que pensemos ou sintamos sobre ela.

Como eu sei que estamos correndo o mesmo risco? Porque esse parágrafo anterior foi escrito por um programa de inteligência artificial chamado Smodin. Está meio mal redigido, mas o aperfeiçoamento é só uma questão de tempo.

Então estamos todos perdidos? Depende do ponto de vista. Você pode ser um vitimista, amaldiçoar os avanços tecnológicos e se recolher infeliz a uma aposentadoria precoce, ou mesmo mudar de profissão.

Por outro lado, a inteligência artificial pode ser um poderoso instrumento para redatores, diretores de arte e artistas gráficos que souberem aproveitar a nova tecnologia. Ela veio para nos complementar, e não para nos ameaçar. E veio também para nos desafiar a sair do comodismo, a nos aperfeiçoar constantemente.

Vivemos um momento de maravilhas jamais imaginadas na nossa vida profissional. Ou surfamos nas mudanças ou nos afogamos no medo.

Leia também “O disco que mudou tudo”

3 comentários
  1. Sebastiao Márcio Monteiro
    Sebastiao Márcio Monteiro

    Fantástico, Dagomir! Excelente texto.

  2. Mauro de Souza Silveira Junior
    Mauro de Souza Silveira Junior

    É muito bom poder reler e rever Dagomir Marquesi. Em minha juventude via muito os seus curtas-metragens q eram sensacionais

    1. Dagomir Marquezi

      Que legal que você se lembra de Tzzubra-Tzuma e O Grotão, Mauro!

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