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Cela em uma delegacia de polícia | Foto: Shutterstock
Edição 142

As mentiras do desencarceramento (Parte 2)

Quanto mais criminosos são presos, mais seguras ficam as ruas. É fato. Basta ver como o número de homicídios caiu nos EUA à medida que o país aumentou o número de criminosos presos

Roberto Motta
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Um policial civil do Rio me contou de um criminoso que ele prendeu em flagrante por furto. O bandido já tinha sido preso 28 vezes. A última vez havia sido no dia anterior; ele foi solto menos de 24 horas antes de ser preso novamente.

É importante lembrar que um criminoso é preso em apenas um pequeno porcentual das vezes em que comete crimes. As estatísticas disponíveis para homicídios e assaltos são claras: na maior parte das vezes que um criminoso brasileiro comete um crime. Ele consegue escapar impune. Estudos realizados nos Estados Unidos mostram que aproximadamente metade dos crimes violentos (exceto homicídios) nunca chega ao conhecimento da polícia. Um estudo brasileiro inédito, citado por Bruno Carpes, estima que 62,55% dos roubos, furtos e agressões nunca chegam ao conhecimento da polícia.  Isso quer dizer que um sujeito que já foi preso 28 vezes provavelmente já cometeu centenas de crimes.

Não existe medida mais eficiente para trazer tranquilidade à sociedade do que prender, e manter presos, esses indivíduos cujo único interesse e ocupação é o crime, e — por inúmeras razões diferentes (que não são relevantes para esta discussão) — não há nenhuma barreira moral que os impeça de usarem a fraude e a violência para conseguir o que querem.

Quanto mais criminosos são presos, mais seguras ficam as ruas. É fato. Basta examinar o gráfico Figura 1 — Taxa de homicídios x encarceramento nos EUA para ver como o número de homicídios caiu nos EUA à medida que o país aumentou o número de criminosos presos.

Barry Latzer conta:

[…] o crime violento gerou intensa pressão do público para revitalizar o sistema de Justiça Criminal [dos Estados Unidos]. O sistema tinha se tornado leniente na década de 1960, capturando menos criminosos e dando punições cada vez mais suaves aos criminosos que eram capturados. A partir de 1970 mais criminosos foram presos, sentenças se tornaram mais severas, as políticas de livramento condicional foram endurecidas e a pena de morte foi reinstituída.

Cometer um crime nos EUA passou a significar enfrentar o rigor de uma lei cujo objetivo principal é proteger os cidadãos de bem.

A Califórnia aprovou uma legislação específica para lidar com criminosos reincidentes, a chamada “lei dos três crimes” (Three Strikes Law). Se um réu condenado por um crime — que não precisa ser violento — tivesse uma ou mais condenações criminais anteriores enquadradas na definição legal de crimes “graves” ou “violentos”, ele teria que receber uma sentença muito mais dura do que a normalmente imposta. O aumento da sentença dependia do número de condenações anteriores. Se o criminoso já tivesse cometido um crime desse tipo, sua sentença, para o novo crime, precisava ser dobrada; com dois antecedentes criminais graves ou violentos, sua sentença deveria ser prisão perpétua.

“Quase todas as análises”, diz Barry Latzer, “concordam que sentenças mais duras tiveram um impacto positivo, provavelmente considerável” na queda do crime nos EUA:

Afinal, apenas do ponto de vista da incapacitação (a prevenção de novos crimes através da remoção dos potenciais criminosos para longe da sociedade), haveria um benefício em prender tantas pessoas que já tinham cometido múltiplos crimes e que seriam propensas a cometer mais crimes se estivessem soltas.

Uma pesquisa em dados gerados durante três décadas de prisões de criminosos nos EUA concluiu que havia “fortes evidências de uma relação inversa entre a população carcerária e os índices criminais”. “Em outras palavras”, concluíram os autores do estudo:

“Quanto mais criminosos presos, menos crimes acontecem”.

Mas, apesar disso tudo, ainda existe quem invista seu tempo denunciando a “barbárie” do sistema prisional e defendendo penas “alternativas” e “desencarceramento”. Os “especialistas” de plantão e a maioria da grande mídia dizem que o Brasil prende demais.

Os dados mostram exatamente o contrário.

O Brasil tem aproximadamente 760 mil criminosos condenados à prisão, o que formaria a quarta maior população carcerária do mundo, atrás de China, Estados Unidos e Rússia. Isso nada teria de anormal, pois temos a quinta maior população do mundo. O número de presos é proporcional à nossa população. Mas é preciso explicar que nesse número estão incluídos condenados que cumprem pena em regime semiaberto, em regime aberto, em liberdade condicional e em sursis — ou seja, pessoas que não estão presas em nenhum sentido da palavra.

Os condenados que estão realmente presos em regime fechado são em número bem menor: 558 mil.

No ranking do International Center for Prison Studies, que mede a proporção da população que está presa em um país, os Estados Unidos ocupam a primeira posição, com 639 presos para cada 100 mil habitantes. Cuba está em sexto lugar, com 510 para cada 100 mil habitantes. Depois vêm vários países do Caribe, o Irã e a África do Sul. E só então o Brasil, na 19ª posição da lista, com 357 presos por 100 mil habitantes. Portanto, no mundo, 18 países prendem mais que o Brasil — inclusive Cuba.

Se dividirmos 760 mil condenados por 205 milhões de habitantes, veremos que apenas 0,38% da população sofreu alguma medida restritiva de liberdade. Parece pouco, e é mesmo: como mais de 92% dos milhares de homicídios e 98% dos milhões de assaltos anuais não são elucidados, uma multidão de criminosos segue livre pelas ruas. Ano após ano.

Como é possível dizer que um país assim prende muito?

Precisamos multiplicar as vagas em nossas prisões. Precisamos enchê-las com todos os homicidas, sequestradores, estupradores e corruptos que andam pelas ruas.

Os ativistas do desencarceramento dizem que o Brasil tem muitos presos provisórios, sem condenação.

É mentira.

O índice de presos sem condenação no Brasil é de 33,29%, um número menor que o de Suíça, Canadá, Bélgica e Dinamarca.

O Brasil é o 89º país no mundo em presos provisórios.

Vamos demolir outro mito: dizem que as cadeias estão cheias de pequenos infratores, gente que roubou um pão para matar a fome. O fato é que ninguém vai para a penitenciária por crimes de menor potencial ofensivo. A lei prevê multa, prestação de serviços à comunidade ou medidas “socioeducativas”. No caso de furto simples, a lei prevê a suspensão do processo: o autor do furto, se for primário, nem é julgado.

Mito: as cadeias estão cheias de gente presa por fumar maconha.

Fato: ninguém vai para a penitenciária por porte de drogas para uso próprio. A lei prevê advertência, prestação de serviços comunitários, cursos ou multa.

O índice de presos sem condenação no Brasil é de 33,29%, um número menor que o de Suíça, Canadá, Bélgica e Dinamarca

A falácia da afirmação de que o Brasil “prende demais” se confirma também com um exame da legislação penal. No seu trabalho acadêmico de conclusão do curso de Direito, “O Caráter Polifuncional da Pena e os Institutos Despenalizadores: Em Busca da Política Criminal do Legislador Brasileiro”, Jônatas Kosmann pesquisou as penas previstas pelo Código Penal em 1.050 tipos de crime. Eis o que ele encontrou: 50,67% das penas no Brasil comportam transação penal (um acordo firmado entre o réu e o Ministério Público, no qual o acusado aceita cumprir pena antecipada de multa ou restrição de direitos e o processo é arquivado); 24,10% comportam suspensão condicional do processo (anulação do processo criminal); outros 3,42% admitem a substituição por penas privativas de direito e apenas 2,67% (28 tipos penais) impõem ao juiz que efetivamente ordene a prisão do réu (é o chamado regime de prisão inicialmente fechado — e esse “inicialmente” diz tudo).

Somando os 50,67% de penas que admitem “transação penal” com as 24,10% em que pode haver suspensão condicional do processo, chega-se a assustadores 75% das penas nas quais não há sequer condenação.

Pastoral carcerária

Para meu espanto, descobri que existe no Brasil um ecossistema, formado por indivíduos e organizações, voltado para a defesa e a proteção institucional de criminosos. Uma das atividades principais desse grupo é promover a pauta do desencarceramento dia e noite. Meu choque foi ainda maior quando soube que as entidades que defendem os direitos dos criminosos presos e dizem lutar pelo bem-estar deles são exatamente as mesmas que usam todos os recursos para impedir a ampliação e a melhoria do sistema prisional. O exemplo mais gritante é o da Pastoral Carcerária. Basta uma visita ao site da entidade para descobrir que o primeiro item de sua agenda é a “suspensão de qualquer investimento em construção de novas unidades prisionais”.

A falta de investimento na ampliação do sistema prisional é uma das causas do seu estado precário e da superlotação. Por que, então, uma entidade que diz defender o bem-estar e os direitos dos criminosos se posiciona contra a criação de novas vagas? Será que esses ativistas imaginam que, uma vez criadas novas vagas, elas serão preenchidas com pessoas inocentes? Ou será que essa posição tem uma explicação bem mais simples: a mesma cegueira ideológica que afeta a mídia e quase todas as entidades do sistema de Justiça Criminal?

Diz Bruno Carpes:

O sistema prisional brasileiro há várias décadas tem provocado inúmeros debates em função de sua insalubridade, pelo menos em grande parte de seus estabelecimentos. Contudo, em vez de incitar o incremento de investimentos no sistema, bem como ensejar melhor gestão (inclusive com o fomento e a conscientização dos conselhos necessários), as péssimas condições carcerárias têm servido de bode expiatório para uma bem articulada campanha de desencarceramento, turbinada por vultosos aportes financeiros especialmente oriundos de organizações internacionais com interesses estranhos aos nacionais, que irrigam associações não governamentais travestidas de movimentos da propalada “sociedade civil organizada”.

Como diz Bruno, a superlotação dos presídios brasileiros é resultado do alto índice de criminalidade no Brasil, que está fora de qualquer parâmetro conhecido em democracias ocidentais, e do desinteresse — ideologicamente motivado — do Estado na “construção, reforma e consequente retomada do comando dos estabelecimentos prisionais”.

Superlotação de presídios | Foto: Joa Souza/Shutterstock

De acordo com o Infopen 2017, o Brasil tem um déficit de 303 mil vagas nos presídios. Fazendo uso das estimativas feitas pelo Anuário sobre Mercados Ilícitos Transnacionais produzido pela Fiesp em 2017, é possível estimar que bastariam R$ 21 bilhões para acabar com o déficit de vagas do sistema penitenciário no país inteiro.

Gastamos mais de R$ 60 bilhões com a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

A crise dos presídios é fruto de uma decisão política, tomada com base em ideologia.

Perceba outro aspecto dessa história: não deve existir um único criminoso no Brasil que desconheça o estado das cadeias brasileiras — “o inferno na Terra”, como são frequentemente descritas pelos ativistas.

O efeito dissuasivo provocado no criminoso pelo receio de ser colocado em uma prisão ruim já foi documentado em pesquisas científicas. É óbvio que o criminoso — que responde a punições e incentivos — tem muito mais receio de ser colocado em uma cadeia superlotada, em péssimas condições, do que em uma cadeia em bom estado.

Mas nem sequer com as péssimas condições das cadeias o criminoso brasileiro desiste de cometer crimes.

Então, é importante ter a coragem moral de perguntar: se mesmo com as péssimas cadeias os criminosos brasileiros continuam cometendo crimes brutais, em número cada vez maior, imagine o que aconteceria se as cadeias brasileiras fossem maravilhosas?

Esse argumento não deve ser usado para defender cadeias ruins, é claro. Mas é sempre importante lembrar que os principais objetivos das prisões são deter, dissuadir e punir o criminoso, e não garantir que ele esteja confortável e satisfeito.

Se vamos falar de cadeias, vamos lembrar o inaceitável fato de que a maioria dos presídios do país é controlada por facções criminosas, e que essa situação é, hoje, aceita como normal pelo Estado. O pioneirismo nessa prática bizarra coube, mais uma vez, ao Rio de Janeiro, onde uma socióloga, então nomeada gestora do sistema prisional estadual, resolveu separar os presos por facções, dando a essas “organizações” não só o reconhecimento oficial pelo Estado como, efetivamente, entregando a elas o controle dos estabelecimentos prisionais, sob a alegação de que essa prática “facilita a gestão” das cadeias.

O estado precário das cadeias brasileiras está longe de ser o principal problema do sistema de Justiça Criminal do Brasil. Esse lugar deveria ser ocupado pelo debate sobre a impunidade em massa, a quebra do ciclo completo de polícia ou a redução da maioridade penal. Esses são problemas muito mais críticos e urgentes.

O lugar central no sistema de Justiça Criminal deveria ser ocupado pelas vítimas. Mas, no Brasil, o foco da preocupação e dos cuidados da Justiça é, cada vez mais, o bandido.

Por isso, na próxima vez que te mostrarem uma foto de uma cela de presídio superlotada, e pedirem piedade para os criminosos, peça para ver as fotos das vítimas.

Leia também “As mentiras do desencarceramento (Parte 1)”

8 comentários
  1. RICARDO TEIXEIRA DA CRUZ RIOS
    RICARDO TEIXEIRA DA CRUZ RIOS

    Bandido bom é bandido morto.

  2. Rosa Angela Silveira Cerqueira
    Rosa Angela Silveira Cerqueira

    Estou estranhando a ausência de Roberto Motta nas redes. Uma live dele – Meia Hora com Motta sumiu do YouTube, já tem alguns dias que não aparece nada. Ele sumiu de Os Pingos nos Is. Não estou achando mais nada dele recente. Ele tirou férias ou foi censurado?

  3. Rogerio Lyra
    Rogerio Lyra

    O que esperar de um país que quer empossar um assaltante suspeito até de assassinato na presidência? Ah, para com isso. Os brasileiros com a sua costumeira irresponsabilidade, leniência e alienação, estragaram tudo, jogaram fora o patrimônio que recebeu dos portugueses. Uma cultura baseada na inveja e ressentimento dá nisso. Como alguém que trabalha pode conceber ter como representante, seja no Congresso e na presidência bandidos? Falta de vergonha na cara, isso pra não falar na fraude escancarada do começo ao fim do processo eleitoral.

  4. Glauco
    Glauco

    Perfecto, Motta!!!
    Sensatez para lidar com os criminosos.

  5. WILSON GOMES DE ANDRADE
    WILSON GOMES DE ANDRADE

    Acredito que seria uma boa ideia destinar os estádios construídos para a Copa do Mundo de 2014 e que viraram “elefantes brancos”, pudessem ser adaptados para servirem de prisões. Além da ocupação desses espaços de baixa utilização, poderiam proporcionar aos presos um amplo espaço para a prática de esportes, ajudando a que eles ocupassem seu tempo com coisas mais saudáveis. Talvez algo parecido pudesse ser feito com as instalações construídas para as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro.

  6. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante exposição!

  7. Daniel
    Daniel

    Parabens Motta !! Raio X perfeito de como temos que tratar a criminalidade !!

  8. Marcio Cruz
    Marcio Cruz

    Nao cometeu cfime, nao sera preso. Simples.
    Quem defende desencarseramento possui segurancas armados, carro blindado, salas vips, etc

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