Há alguns meses, discuti, neste artigo, o conceito de “groupthink” e sua aplicação ao caso de um grupo de analistas. Naquele momento, em que a campanha eleitoral entrava em sua fase decisiva, o clube de groupthink de economistas tupiniquins estava focado na construção da narrativa de que a economia brasileira estava em “frangalhos”, a situação fiscal era “calamitosa” e a inflação não estava em queda, mas refletia apenas “o controle dos preços dos combustíveis pelo governo”. Esta narrativa, falsa, como se sabe, contribuiu para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro, e portanto a manutenção de políticas econômicas responsáveis, como o teto de gastos, peça fundamental na estabilidade da dívida bruta observada no Brasil nos últimos anos, a despeito de todos os choques do período. Segundo a edição de outubro do “Fiscal Monitor” do FMI, a média de crescimento dessa estatística, entre 2019 e 2022, considerando economias emergentes e maduras, foi de 9% do PIB.
Passada a eleição, e de forma amplamente esperada, para qualquer pessoa que tenha acompanhado a economia brasileira entre 2003 e 2016, o novo governo já deu mostras evidentes de suas intenções, que — surpresa ! — miram a reedição do modelo implementado, com consequências catastróficas, no período mencionado, em que o PT esteve no poder.
Nas últimas semanas, o novo governo manobrou para aprovar no Congresso uma PEC que autoriza gastos superiores a R$ 170 bilhões, ou 1,7% do PIB, em 2023. Parte desses gastos será alocada em aumentos salariais, também já aprovados pelo Parlamento, nos últimos dias, para as carreiras de servidores mais organizadas, e na nova estrutura administrativa, que passou dos antigos 23 ministérios para 37 (!), pelo que se sabe até aqui. A PEC também remove a constitucionalidade do marco fiscal, e não há nada que sugira que a nova regra, que a princípio deveria ser enviada ao Congresso pelo Executivo nos próximos meses, imporá qualquer restrição ao crescimento dos gastos à frente a ponto de reverter a trajetória de divergência da dívida que se desenha, em que o resultado primário do setor público deverá passar de um superávit em torno de 1% a ser registrado em 2022 a uma expectativa de déficit de aproximadamente 2% do PIB.
No plano parafiscal, embora os indicados ao comando do BNDES apregoem que não se contempla o retorno ao crédito subsidiado em larga escala do período 2006-2014, já se admite a busca de um mecanismo que permita juros mais baixos para “prazos mais longos”. Na Petrobras, o político indicado — à revelia da Lei das Estatais, que hoje não permitiria indicações como esta para o comando dessas empresas; um mero detalhe que provavelmente será “corrigido” em breve pelo Congresso — já deu sinais de que a estatal deverá recomprar refinarias — operações de reconhecida baixa rentabilidade — e realizar alterações na paridade de preço dos combustíveis, práticas que, no passado, contribuíram para a quase insolvência da companhia. No que se refere à equipe econômica, as credenciais dos indicados não incluem experiência de sucesso com políticas públicas, nem capacidade gerencial comprovada no setor privado. Sobram, por outro lado, simpatia a ideias heterodoxas com extensa ficha de contribuição ao aumento da pobreza e do desemprego por onde foram implementadas.
Em suma, para ficar apenas no plano da economia, os prognósticos, conforme esperado, e de acordo com o que alertamos meses atrás, por exemplo, neste artigo, são os piores possíveis, ressalva feita a variáveis fora do controle das autoridades locais, como preços de commodities.
Diante desse quadro, como se posiciona o clube de groupthink dos economistas locais? Passada a encenação da telepatia, o grupo agora procura alertar a nova equipe acerca dos “perigos” envolvidos na política pretendida. Um membro sênior do grupo, tucano da velha guarda, expressa sua preocupação com a “política fiscal expansionista, e a visão bem antiga do papel do Estado na economia ”que “parece” emergir das discussões da equipe de transição.
O aparente equilíbrio que estamos por ora vivendo é extremamente instável e escamoteia um futuro próximo que pode ser bem desagradável
De fato, a “visão de Estado” embutida no pensamento do PT é antiga. Daquelas bem antigas mesmo, muito mais do que a implícita no artigo em questão. Só analistas muito inocentes — ou cínicos — e economistas heterodoxos jovens, como alguns dos indicados para a equipe, são capazes de acreditar que o objetivo de pacotes de gastos, como o embutido na PEC de transição, seja mesmo de, num raciocínio keynesiano bem raso, “induzir crescimento”. Que crescimento pode ser induzido com a interrupção deliberada de privatizações? Ou pela criação de ministérios como o de “Portos e Aeroportos”, e a reativação do Ministério da Pesca? Que gasto pode ser pior em qualidade do que aquele que concede aumento de salário às categorias mais privilegiadas entre os servidores públicos, pois que engessa ainda mais as despesas obrigatórias do governo e aumenta ainda mais a desigualdade? Sim, a concepção do papel do Estado embutida no projeto do PT é bem mais antiga do que a desenhada por Keynes, num contexto de necessidade de reconstrução da infraestrutura ocidental no pós-Primeira Guerra Mundial. Diversamente desta última, ela objetiva apenas drenar os recursos do setor real em direção ao estamento burocrático; sufocar o setor produtivo com uma carga tributária inviável; e multiplicar a presença do Estado em todas as atividades econômicas, maximizando as possibilidades de extração de rendas — “legais” ou não — por aqueles que orbitam o poder. É o mecanismo descrito por Raymundo Faoro, que se encontra em movimento no Brasil, com breves interstícios, desde o governo-geral de Tomé de Sousa, que começou em 1549. Um desses hiatos, ressalvada a óbvia impossibilidade de desarme desta potente máquina de coleta de rendas em tão curto espaço de tempo, deu-se nos últimos quatro anos. (Discuto neste artigo a reação do estamento ao governo Bolsonaro.)
Outro representante do clube argumenta que bastaria que os gastos não fossem expandidos ao limite permitido pela PEC, ou que “se negociem com a sociedade e com o Congresso Nacional medidas que elevem os impostos e reduzam gastos e subsídios”, para que a taxa de câmbio deslizasse para o patamar de 4,5 ou menos.
Aqui temos um caso de quase dissonância cognitiva. Por acaso houve momento em que o teto de gastos, em algum instante dos seus seis anos de existência, não tenha sido utilizado até o seu limite, mesmo por governos que, reconhecidamente, praticaram políticas fiscais menos expansionistas do que as do PT? Para além desse devaneio, o articulista implicitamente parece acreditar que tudo se resume a um jogo de soma zero. Basta “negociar com a sociedade” mais 2% do PIB em carga tributária e — voilá — a conta fecha, como se nossa já reduzida capacidade de crescimento fosse inelástica à carga tributária a que o setor privado é submetido. Para além desta inconsistência temporal, o artigo não traz nem uma palavra a respeito da evidente dificuldade política associada ao aumento de impostos em uma situação de contração da atividade econômica e elevado endividamento das famílias, que, como já argumentei em artigo anterior, o Brasil já parece se encontrar.
Em comum, esses comentários revelam a insistência do clube de groupthink — por cinismo, peer pressure, medo, militância, aversão ao “atraso civilizatório” alegadamente representado pela alternativa eleitoral preterida, ou qualquer outro fator — em não tratar as coisas como elas realmente são. O problema é que a insistência em ignorar as chagas deixadas pelo processo eleitoral, bem como suas consequências para a estabilidade e legitimidade do governo eleito, além da verdadeira obsessão com o Orçamento estático do ano corrente, mutila a análise ao ponto de fazer com que a maioria dos artigos publicados — incluindo aqui editoriais dos principais veículos de mídia, nos últimos dias — se aproxime da discussão de uma realidade paralela.
O que está em jogo no Brasil de hoje é evidente, e arrisco dizer que o é para uma parcela grande e crescente dos brasileiros. A proposta do novo governo Lula não é de “incluir os pobres no Orçamento” , nem “induzir o crescimento pelo aumento da presença do Estado”, mas, sim, de sugar, ainda mais, e ainda que seja de forma “legal”, os recursos do Brasil real para a engorda do Brasil “oficial”. É simples assim.
Além de esse fato estar escancarado, tanto pelo passado do partido como pelas intenções manifestas pelos petistas nessa antessala da “transição” dos últimos dois meses, está também, à luz da sequência de acontecimentos desde a anulação das condenações de Lula por alegado “erro de CEP”, a completa ausência de freios institucionais ou legais à conduta do grupo que assumiu o controle do Executivo. Esta é uma novidade importante — e muito preocupante — em relação ao período anterior em que o PT esteve no poder.
Os preços de ativos brasileiros ainda não refletem, nem de longe, a postura nem as intenções de política econômica do grupo de Lula. A quantidade de pessoas envolvidas nos planos é grande, e a foto da economia do país é de relativa organização, fatores que sugerem que o eventual redirecionamento do teor das políticas deve demorar bastante, e exigir uma piora significativa dos preços e a deterioração das condições econômicas, antes de se materializar. A relativa estabilidade que temos observado nas últimas semanas deve-se em grande parte ao ambiente externo benigno, que no entanto pode tornar-se mais adverso sem prévio aviso, especialmente em face da recessão que se aproxima no Hemisfério Norte.
Este estado de coisas, aliado à típica boa vontade que a imprensa global e local dispensam, no mundo de hoje, a qualquer governo de esquerda, mascara a desordem e as prováveis consequências vindouras das práticas prestes a serem, uma vez mais, impostas ao Brasil. O país está, no entanto, mais envelhecido, mais endividado e mais ciente da verdadeira natureza do perverso mecanismo de extração de rendas que está prestes a voltar a fustigar o país com força total, o que, se combinado à provável reversão dos ciclos econômicos local e global, pode aumentar a tensão social a um nível a que a maior parte dos analistas não está dando a devida importância. O antigo país do futuro continua, após 40 anos de quase estagnação de renda per capita, pobre, e não deve se recuperar de mais um mergulho na direção da miséria.
Aviso aos navegantes: a temporada de filmes em cartaz na banca de jornais mais próxima é de ficção. O aparente equilíbrio que estamos por ora vivendo é extremamente instável e escamoteia um futuro próximo que pode ser bem desagradável para os investidores e para a maior parte dos brasileiros.
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