Acredito que não haja ninguém hoje — pelo menos entre aqueles que consideramos mentalmente sãos — que considere as reiteradas ações de censura por parte do TSE e do STF algo minimente aceitável. No entanto, por vezes, as ações culturais e sociais de respostas a essas afrontas às liberdades dos brasileiros soam mais como uma birra infantil, um verdadeiro ataque de pelanca, do que de fato uma atitude coordenada de enfrentamento ao descalabro político e jurídico que sofremos. Como dizia minha mãe: é mais fácil gritar “pega ladrão” do que efetivamente pegá-lo.
Oposição por oposição, ou apegar-se a uma abstrata e pouco eficaz defesa verbal da liberdade de expressão — apesar de justa e correta — pouca efetividade tem no fim do dia. Alexandre de Moraes literalmente dá de ombros às manifestações, repúdios e cartinhas empoladas de organizações e personalidades que o acusam de tirania. Como resolver esse problema, então? Bom, duas respostas são possíveis.
A primeira é que trata daquele pragmatismo político de ruptura, embalado por pressões sociais que lhe deem alguma cara de legitimidade — certo? Errado? Vocês decidem! A segunda maneira é aquela resposta mais perene e elaborada, e por isso mesmo mais demorada; trata-se de uma oposição cultural estruturada, da reafirmação consciente dos valores básicos do Ocidente que agora se encontram em descrédito pelo progressismo autoritário e seus seguidores.
Em Cale-se, Knowles se vale das palavras de forma extremamente habilidosa para nos mostrar como o esquerdismo sequestrou a linguagem nas últimas décadas e fez, a partir daí, sua revolução cultural sem guerras e praticamente sem oposições
É dessa segunda via que venho falar hoje. Acaba de ser lançado no Brasil, pelo Clube Ludovico, o excelente livro Cale-se: Quem Controla a Opinião Controla as Mentes (no original, Speechless: Controlling Words, Controlling Minds), de Michael Knowles, o polêmico jornalista e comentarista político norte-americano que costuma levar os progressistas à loucura em suas análises e livros. Em 2017, ele lançou um livro em branco, isso mesmo, um livro sem nada escrito, denominado Reasons to Vote for Democrats (Razões para Votar nos Democratas). Como se vê, Knowles não é daqueles que veem na polêmica um ato pueril e sem propósito; na verdade, a polêmica pode ser aquele estrondo que nos faz aguçar os ouvidos, a fim de escrutinarmos os problemas que possam estar acontecendo do lado de fora. A polêmica, como bem sabia e sabiamente praticou Paulo Francis, pode ser aquele aríete de ideias que desmonta muralhas de hipocrisias e falsidades estabelecidas com um toque de sarcasmo e filosofia bem temperados.
Em Cale-se, Knowles se vale das palavras de forma extremamente habilidosa para nos mostrar como o esquerdismo sequestrou a linguagem nas últimas décadas e fez, a partir daí, sua revolução cultural sem guerras e praticamente sem oposições. É muito irônico, aliás, que o autor de um best-seller sem palavras tenha, em seu segundo livro, analisado o problema das distorções semânticas da linguagem perpetradas pelo progressismo na contemporaneidade. O livro é, para mim, de longe, o lançamento literário mais oportuno e adequado ao momento brasileiro. Não me surpreenderia se, como parte daquelas surpresas polêmicas nas quais Knowles é capaz de embarcar, ele dissesse que se inspirou no Brasil para escrever a obra.
O texto em si tem muitos diferenciais a serem analisados neste ensaio, mas irei me concentrar em exatamente três deles:
1) o livro mostra como a distorção de conceitos-chave são o ponto de partida da subversão cultural, e não o embate político como muitos pensam. O autor rastreia — sem nenhum tipo de conspiracionismo — essa tendência de distorcer semanticamente palavras para depois inculcar novos conceitos progressistas na sociedade sem a necessidade de sequer debater os temas éticos, econômicos e sociais envolvidos. Knowles usa, por exemplo, o tema do “casamento homoafetivo”, argumentando que historicamente o casamento, em todas as culturas e séculos, significou intrinsecamente a união de duas pessoas de sexos opostos; o progressismo, usando de distorções conceituais, fez com que todos aceitassem, sem sequer debater, as verdades do dito “casamento homo”. E, como ele mesmo afirma, nem sequer é o caso de dizer que aceitamos ou não as consequências sociais e jurídicas dessa mudança conceitual, o que é plenamente possível após um debate sincero, o fato é que se mudou o entendimento social sobre o assunto sem ao mínimo se debater o mérito envolvido nisso tudo. Ou seja, a partir da subjetivação do conceito “casamento”, o progressismo politicamente correto conseguiu a distorção política esperada na sociedade;
2) Michael Knowles ataca também os conservadores, e não somente o progressismo. Para mapearmos o livro, podemos dizer que a primeira metade dele se designa a fazer o rastreamento histórico-filosófico da problemática da subversão linguística e seus danos; a outra se volta a mostrar como os conservadores foram incapazes de identificar a estratégia esquerdista. E, quando a identificaram, foram incapazes de combatê-la; e, quando combateram com certo êxito, dedicaram-se a uma defesa negativa ao invés de uma apologia ofensiva de reafirmação de certos padrões tradicionais corretos. Para o analista político norte-americano, a maioria dos conservadores se restringiu a reclamar e denunciar os erros do progressismo sem propor como a realidade deveria funcionar sem aquele “novo normal” progressista. Ele diz, por exemplo, que o conservadorismo parecia ter vergonha de defender suas ideias e modos de vida, quase pedia perdão por acreditar no que acreditava. Isso, como declara o autor, mostra de que forma o progressismo já havia vencido a dita “guerra cultural” quando os conservadores se deram conta dela. Da mesma maneira que, por vezes inconscientemente, pensamos que os termos “sociedade de mercado” ou “capitalismo” sejam negativos em si mesmos — após anos de doutrinação pedagógica sobre tais conceitos —, hoje temos receio em reafirmar o padrão familiar tradicional, em defender a diferença invencível entre os sexos e a categorização científica — e não política — da disforia de gênero. Ele diz no livro: “Para o politicamente correto, o discurso conservador é violento, e a violência esquerdista é discurso”. Sem percebermos, o progressismo nos fez ter vergonha de defender tais padrões tradicionais do Ocidente, e aqueles que têm vergonha de seus princípios jamais terão o culhão de defendê-los de forma ativa e orgulhosa na sociedade;
3) Por fim, e ao mesmo tempo que faz as críticas anteriores, Knowles define e disseca o politicamente correto como sendo o próprio modus operandi da subversão linguística. O norte-americano prova que o politicamente correto é a popularização do absurdo, a contraobviedade imposta com ares de normalidade até que o absurdo realmente seja aceito como “normal”. Em suas palavras: “O politicamente correto deturpa a linguagem, numa tentativa de recriar a realidade seguindo as linhas esquerdistas”. Ou seja, para Michael Knowles, o politicamente correto é a própria ação consciente de corrupção da verdade observável; trata-se da mudança radical de como falamos sobre a realidade para que, a seguir, mudemos a própria ideia que temos da realidade. O exemplo comum disso é o próprio identitarismo em sua versão de cultura transgênero. Repetir até a exaustão que um homem que se sente mulher é de fato mulher substitui a análise lógica da realidade a fim de nos adaptarmos a uma imposição linguística. Aos poucos, a sociedade aceita tal novo padrão de conduta, e como o novo padrão já está normalizado entre boa parte do público, a contraposição conservadora se torna dispendiosa e irritante demais para ser levada a cabo; por fim, o novo padrão linguístico acaba sendo aceito sem que para isso tivesse havido debate sobre a logicidade e a verdade dessa mudança. Em uma passagem de extrema clareza, o autor afirma: “Tradicionalmente, nossa sociedade franzia o cenho diante da mentira. Nós acreditamos que ‘a verdade há de nos libertar’. Os politicamente corretos invertem esse entendimento. Eles acreditam que a verdade sobre o homem que pensa que é mulher haverá de lhe fazer mal. A verdade sobre o bebê prejudicará a mãe que deseja se livrar dele. Eles consideram a verdade destrutiva e as mentiras compassivas”.
Michael Knowles, no entanto, não cai no purismo anti-ideológico do conservadorismo norte-americano da linha de Russell Kirk. Ele aceita plenamente que a solução para combater esse progressismo que desvirtua conceitos e ideias é praticar um conservadorismo ativo na sociedade. Trata-se de reafirmar categoricamente, através de estudos e debates, mas também através de conversas corriqueiras, os padrões tradicionais corretos ante os alicerces históricos e políticos do Ocidente. Ele declara com todas as letras, abstendo-se de quaisquer eruditismos, que se trata de uma batalha pela dominância linguística, e que, de fato, os esquerdistas têm razão quando dizem que a linguagem é moldada através das ideias das elites que têm o poder cultural. A diferença, para Knowles, está na intenção de cada ação. Tradicionalmente, as remodelagens da linguagem eram realizadas a fim de conceituar o percebido de maneira clara, em vista da verdade que se buscava. Em outras palavras, a clareza e a exposição fiel dos fatos eram o fim último da linguagem, até a subversão progressista; o progressismo assume abertamente que a verdade é subjetiva e escrava do fim último da ideologia defendida. Assim sendo, a realidade, para os conservadores, é a meta da linguagem; para os esquerdistas, a realidade é o obstáculo que a linguagem deve contornar para adequar a sociedade às suas metas políticas.
Misturar uma dose de pragmatismo e ativismo político ao modus operandi prudente e sensato do pensamento conservador tradicional não me parece contraditório ou impossível
Confesso que me sinto desconfortável com tal abordagem do pensamento conservador de Michael Knowles, ainda que eu me recuse ao purismo idílico de certas linhas conservadoras tradicionais, que separam o indivíduo conservador — o homem comum — da política ativa da sociedade. Confesso que sempre encontrei na anti-ideologia do conservadorismo o seu trunfo, aquilo que faz de tal pensamento a chave de análise política mais assertiva sobre a realidade. Este conservadorismo militante, proposto pelo autor de Cale-se, facilmente poderia descambar naquele tipo de fanatismo político cego, irracional, que costuma caracterizar as militâncias políticas à esquerda e à direita; fazendo, assim, com que o pensamento conservador seja apenas mais um entre muitas vias de fé política da contemporaneidade. No entanto, também compreendo esse ativismo que ele propõe como necessário, pois, se os conservadores se mantiveram em suas torres de marfim, criticando como Césares os problemas da República, qual será a efetividade do resgate da verdade que realmente se mostra preciso hoje? Tal paradoxo pode ser vencido, na minha opinião, caso a maturidade política dos conservadores os coloque em uma posição de ativismo consciente, isto é, uma batalha filosófica assumida por aqueles pilares ocidentais que são inegociáveis, sem que para isso tais conservadores sejam embalados por aquele fideísmo ideológico que eles tanto criticam no esquerdismo e no fascismo. Misturar uma dose de pragmatismo e ativismo político ao modus operandi prudente e sensato do pensamento conservador tradicional não me parece contraditório ou impossível.
Com relação à edição em si, ela é munida de uma ótima tradução, feita por Helena Mossoi, e teve um impecável tratamento estético, sem falar do timing de lançamento mais do que perfeito. Cale-se chega ao mercado editorial brasileiro como um livro insubmisso à determinação de Alexandre de Moraes e sua trupe ditatorial, como um contraponto instigante, provocador e inteligente ao identitarismo militante que entorpece os nossos jovens em nossas universidades e mídias. Expondo as vísceras do politicamente correto, Michael Knowles propõe aos conservadores uma ação cultural coordenada em defesa dos valores e dos princípios que de fato são os alicerces sociais de nossas liberdades democráticas. No entanto, não adianta ficar sentado na poltrona apontando enraivecido nossos dedos gordurosos contra os autoritários de momento, diz ele, é antes preciso engajar-se na defesa desses princípios desnudando o identitarismo até o seu âmago, depois reafirmando habilmente os motivos éticos, históricos e filosóficos de adotarmos os padrões que tradicionalmente adotamos.
Obviamente que Knowles não defende o regresso político ao sustentar o conservadorismo social atuante, ele não está defendendo o desfazer do sufrágio universal, a criminalização das relações homossexuais e nem a volta do apartheid. Toda ação humana, segundo Aristóteles, tem como ponto de partida a capacidade racional ímpar do homem de identificar o que são os verdadeiros avanços sociais do que são meras aventuras transloucadas ou erros lógicos. Ou seja, aquela capacidade esclarecida de compreensão política dos sensatos que Edmund Burke afirmava em Reflexões Sobre a Revolução na França, e que depois se tornou o epíteto da filosofia política conservadora moderna: “Deixa livre a aquisição, mas assegura o adquirido” (Reflexões Sobre a Revolução na França, Edipro, 2014, p. 55). O conservador aceita os avanços — até mesmo aqueles avanços impulsionados pelo progressismo —, conquanto que não se excluam os alicerces em que a sociedade está fincada, e que esses avanços sejam de fato avanços, e não esquizofrenias ideológicas.
Por fim, esse é um livro perturbador para aqueles acostumados a aceitar os movimentos sintéticos promovidos pelas ideologias progressistas. Em certos momentos, por exemplo, Knowles propositalmente pisa no limite da liberdade de expressão, o que posteriormente se torna claro ser uma estratégia, quase uma provocação ao leitor: “Você realmente é favorável à liberdade de expressão? Então por que está fazendo essas caretas ante o que eu digo? Vai me calar por que não penso igual a você?”.
Cale-se é provocativo, profundo e perturbador para os progressistas; aos conservadores sensíveis, pode aparentar como herético, conspiracionista ou até mesmo urgente. Mas, com certeza, a ninguém que ousar ler suas páginas soará como um texto ralé ou indiferente.
Leia também “Um patrimônio da sanidade”
Excelente análise mesmo antes de eu ter tido oportunidade de conhecer o livro, que ocorreu por essa sua matéria.
Agora se faz necessário iniciar a leitura.
Muito obrigado pela indicação e dedicação na redação acima.
Parabéns pelo artigo.
O parâmetro deve ser: qual dentre as duas ideologias cria e sustenta um Homem mais equilibrado e evoluído? Certamente, o progressismo ideológico não cumpre essa missão.
Olá Pedro Henrique, maravilhoso o seu artigo! Excelente!
Vamos à leitura.