Um fantasma ronda a Europa. O fantasma da gripe aviária. Europa e América do Norte enfrentam a epidemia de gripe aviária mais devastadora de suas histórias. Mais de 100 milhões de aves domésticas foram abatidas em um ano e os produtores receberam indenizações. Até janeiro, 37 países europeus detectaram surtos do vírus em granjas avícolas ou áreas silvestres. A Europa sofre com os embargos parciais ou totais de países importadores. A exportação do frango europeu declinou nos últimos anos e seguirá em queda em 2023.
A gripe aviária também levou a uma escassez crescente de ovos e aves nos Estados Unidos. Como os preços sobem sem parar, quase 200%, chegando a recordes históricos, cresceu um inédito contrabando de ovos e aves do México para revenda nos Estados Unidos, com grandes lucros. A Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA relatou aumento de 108% nas apreensões de ovos e aves na fronteira de 1º de outubro a 31 de dezembro. Diante das apreensões desenfreadas de ovos, os EUA decidiram penalizar os contrabandistas com multas de US$ 10 mil.
Após atravessar o Atlântico, a gripe aviária, a partir do Canadá e dos Estados Unidos, sobretudo através de aves migratórias aquáticas, chegou ao México, a Honduras, ao Panamá, à Colômbia, à Venezuela, ao Peru, ao Chile e ao Equador. No fim de janeiro, o governo da Bolívia declarou emergência sanitária nacional, com a chegada da gripe aviária à região de Cochabamba, na fronteira brasileira. Peru e Equador já haviam feito o mesmo.
O Brasil nunca registrou a ocorrência dessa doença. Uma bênção para sua avicultura. O país abate mais de 6 bilhões de aves por ano e responde por 40% do comércio internacional de carne de frango. Produz mais de 14 milhões de toneladas de carne de frango e 55 trilhões de ovos. E ampliou suas exportações em 2021 e 2022, diante do declínio da produção e da exportação de aves e ovos pela Europa e pelos EUA. Faturou cerca de US$ 8 bilhões exportando carne de frango para 151 países. Sem falar da carne de peru, exportada para 69 países, conforme dados da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) e de outras aves.
Na Europa, mais de 2,5 mil focos já foram detectados pela Agência Europeia da Segurança dos Alimentos (EFSA), pelo Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças. O verão não contribuiu na redução da infestação como alguns esperavam. Houve uma persistência estival “inabitual” dessa influenza aviária altamente patogênica, segundo comunicado da EFSA.
Se a maioria dos vírus aviários não afeta os humanos, certos subtipos do vírus ou mutantes conseguem ultrapassar a barreira das espécies
No último trimestre de 2022 havia um número 35% maior de granjas e criadores contaminados em relação ao mesmo período de 2021. França, Reino Unido e Hungria são os mais afetados. Na França, em poucas semanas, só em dezembro passado, o número de granjas contaminadas ultrapassou mais de duas centenas, segundo o Ministério da Agricultura.
Dada a intensidade da gripe aviária, a produção e a exportação de frangos, patos, perus e ovos seguirão declinando nos EUA e na Europa em 2023. De fato, a perda de frangos, patos, gansos e perus nas granjas é maior do que os 100 milhões de animais sacrificados. O número não inclui abates preventivos em zonas vizinhas aos focos. Nem a mortalidade das aves selvagens.
Só no litoral peruano, 22 mil aves silvestres morreram em apenas um mês, devido à epizootia, sobretudo pelicanos e atobás. O Equador ativou um plano para tentar impedir a propagação do vírus até as Ilhas Galápagos, cujo impacto na avifauna selvagem poderia ser devastador, como tem sido para algumas colônias de aves selvagens em áreas protegidas da Europa e do Canadá.
Como na covid, a China é considerada epicentro do vírus influenza, com base em várias epidemias lá ocorridas. O novo genótipo do surto atual de gripe aviária, o HPAI H5N1, surgiu no sudeste da China, em 1996. HPAI significa influenza aviária altamente patogênica (Highly Pathogenic Avian Influenza). Sua mortalidade é elevada em aves selvagens e elevadíssima em granjas de aves domésticas.
Se a maioria dos vírus aviários não afeta os humanos, certos subtipos do vírus ou mutantes conseguem ultrapassar a barreira das espécies. Por constantes mutações e seleção natural, o HPAI H5N1 apresenta diferentes linhagens em expansão nos múltiplos hospedeiros. A evolução dessa linhagem patogênica, a Ganso/Guangdong H5N1, prosseguiu nas aves, seus hospedeiros habituais, e chegou aos mamíferos, sobretudo carnívoros (raposas, visons, lobos…).
Em outubro, na Galícia (Espanha), morreram visons criados em cativeiro para a produção de peles, com pneumonia hemorrágica. A mortalidade excedeu 4% em uma única semana. Estudos científicos comprovaram: o vírus da gripe aviária passara das aves selvagens aos visons. A causa do surto galego é uma cepa altamente patogênica, com uma mutação incomum chamada T271A. As autoridades ordenaram a morte de 52 mil visons da fazenda, localizada ao ar livre, com fácil acesso a animais selvagens.
A migração do vírus de aves para mamíferos representa um risco incalculável para hóspedes esporádicos, como os humanos. A ponto de jardins zoológicos, como o de Berlim, fecharem suas portas ao público, devido ao surto de gripe aviária. Humanos já foram infectados nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Espanha, na China e no Equador, sem maiores consequências. Todos os casos eram de pessoas em contato direto com aves. Na Espanha, em 2022, houve 37 surtos de gripe aviária de alta patogenicidade. Os dois últimos foram em uma fazenda com 150 mil galinhas poedeiras e em outra com 1,5 mil gansos. Dois trabalhadores da fazenda de poedeiras foram infectados pelo vírus, sem desenvolver sintomas.
Por ora, a transmissão do vírus ocorre do animal para o homem. As autoridades sanitárias temem uma evolução do vírus para uma forma transmissível do homem para o homem. Seria a porta aberta para uma pandemia, uma disseminação rápida e mundial. Um novo subtipo de vírus gripal, totalmente desconhecido da população humana, como o H5N5, tornaria ineficaz a memória imunitária gerada ao longo das epidemias sazonais pelos vírus gripais clássicos.
Não existe vacina para a gripe aviária a ser aplicada nas aves domésticas, tão desejada pelos produtores rurais. O desenvolvimento de uma vacina para patos, os mais sensíveis à gripe aviária, avança na Europa. Também não há vacina para humanos. Todo ano, indústrias farmacêuticas produzem vacinas contra as variantes mais recentes dos vírus da gripe, cuja composição é orientada pela Organização Mundial da Saúde. São necessários pelo menos de seis a oito meses para desenvolver uma vacina contra a gripe. O monitoramento da evolução do vírus H5N1 confirma a eficácia de uma futura vacina.
Mesmo sem a vacina, existem dois antivirais eficientes contra vírus gripais clássicos ou “aviários”. Suas moléculas inibem a atividade de uma enzima do vírus, a neuraminidase. Um pode ser utilizado em tratamento curativo e o outro em preventivo, sobretudo para proteger equipes de saúde e profissionais indispensáveis ao funcionamento do atendimento médico-hospitalar, no caso de alguma pandemia.
O Brasil nunca registrou a ocorrência dessa doença. A defesa agropecuária, através dos serviços veterinários, realiza treinamentos frequentes para identificar e controlar a influenza aviária, seguindo as medidas de luta preconizadas pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, pela Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) e de identificação do vírus em laboratórios de referência.
A OIE reconhece o Laboratório Nacional Agropecuário (Lanagro) do Ministério da Agricultura, em Campinas (SP), como referência internacional em diagnóstico de gripe aviária. É o único na América Latina. Pode identificar o vírus em aves selvagens ou domésticas. Os diagnósticos do Lanagro têm validade mundial e dispensam enviar amostras a outros países.
Os serviços veterinários estaduais, federais e a ABPA prepararam folhetos e livros informativos para os produtores rurais ficarem atentos aos casos e informam os procedimentos em alguma suspeita de gripe aviária. Qualquer mortalidade de aves silvestres deve ser notificada. As medidas de biossegurança de prevenção em aviários foram reforçadas para manter as aves silvestres longe dos galpões.
Se um foco de gripe aviária for detectado, será decretada quarentena no local e na região. Para impedir a propagação da epidemia, todas as aves do criadouro e de outras criações num raio fixado pelas autoridades veterinárias serão abatidas. Procedimentos de descontaminação do material utilizado e pessoal envolvido serão aplicados para evitar a propagação entre fazendas.
A permanência do Brasil com o status de livre da influenza aviária deixa o produto brasileiro em vantagem em relação aos demais países. Os produtores fazem sua parte. A ABPA e o setor privado têm feito um trabalho competente e diligente. É necessário fortalecer e não enfraquecer a Defesa Sanitária do Ministério da Agricultura e os serviços equivalentes nos Estados. Todos são fundamentais para prevenir e sanar algum evento.
Lévy–Strauss dizia ter escutado de um observador malicioso: a América passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Se medidas adequadas não forem tomadas pelas autoridades, poderão faltar ovos e carne de frango no país, antes de conhecer a civilizada distribuição de picanha para o churrasquinho de domingo. Frango e ovos afastaram da fome milhões de brasileiros. Ninguém quer matar a galinha dos ovos de ouro. Ou quer?
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PRECISAMOS TER CUIDADOS POIS CHEGARA NO BRASIL, SEM DUVIDA.
O MOMENTO É DE UMA INEFICIENCIA GOVERNAMENTAL, QUE APENAS CRITICA NÃO SABE GOVERNAR.
Tempos atrás, Bill Gates injetou milhões de dólares em uma empresa que produz “ovos” artificiais. Essa disseminação de gripe aviária e consequente matança de galinhas deve ser só coincidência, né ?
Nesse momento de tantas incertezas, onde o novo governo se empenha diturnamente em desmanchar o que o governo anterior fez, paira mais uma ameaça a nossa paz.
Confio que nossos produtores estarão atentos para não permitir que essa doença apareça. Como ressaltou outros leitores acima, o artigo é esclarecedor, não alarmista e o recado esta dado. Vamos ficar atentos. Grata Dr Evaristo.
Este compêndio, escrito pelo Prof. Evaristo, ressalta com firme embasamento o risco que corremos se não atentarmos na implementação dos controles indispensáveis contra essa grave ameaça.
Empresta ao tema a devida importância enquanto o novo governo se distrai com implementação de pautas progressistas e de costumes.
O MAPA, tripartido, enfraquecido, terá que se imbuir desse espírito. Que sirva de alerta às nossas autoridades esse seminal artigo.
Parabéns Mestre Evaristo
O alerta foi lançado com responsabilidade. Tomara que tomem as medidas necessárias. (Além do Covid e da gripe aviária, agora esses balões…)
Um alerta ponderado, prudente, sensato e equilibrado é o que nos traz este excelente artigo do Professor Evaristo. Sem alarmismos catastrofistas tão ao gosto de diabólicos neomalthusianos que vicejam mais ao Norte.
Doutor Evaristo. Trabalho com logística no Agro e acompanho seus artigos. Ficarei muito feliz se continuarmos com as ferramentas de controle sanitário para garantir nossa produção que sustenta e alimenta milhões de pessoas no Brasil e no mundo.