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Xi Jinping, ditador chinês | Foto: Shutterstock
Edição 152

A espionagem no século 21

Hoje, os informantes não se parecem em nada com os espiões da franquia James Bond. Eles circulam com cartões de visitas por empresas, governos, Parlamentos e Tribunais do Brasil e do exterior

Rafael Fontana
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Fevereiro de 2023. Moradores do Estado norte-americano de Montana avistam um balão branco com escritos chineses rasgando o céu do país. O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump reagiu imediatamente nas redes sociais, ao seu melhor estilo enérgico: “Derrubem o balão!”.

Naquele mesmo 3 de fevereiro, na zona norte de São Paulo, Larissa, 14 anos, sacou seu aparelho celular do bolso para aprender uma nova dancinha no TikTok.

Os dois fatos, aparentemente isolados entre si, na realidade revelam que, seja no céu, seja na terra, nações de cada continente avançam sobre as demais com suas ferramentas de espionagem, dispondo das tecnologias mais avançadas. E nenhum país em toda a face da Terra ultrapassa fronteiras com mais voracidade e desprezo ético que a China.

Larissa e suas amigas Sofia, Ester e Beatriz, todas com idade entre 14 e 15 anos, sabem que o aplicativo nos seus celulares é chinês, mas dizem não ligar. Seus pais também não. Sofia assiste a vídeos de cosplay; Beatriz gosta mesmo é das fofocas; e Ester usa a ferramenta para aprender a desenhar. Enquanto isso, entre uma dancinha e um vídeo de pet, o governo chinês sorrateiramente coleta os dados que julgar necessários, contando com uma base de 750 milhões de usuários espalhados pelo mundo.

Aplicativo TikTok | Foto: Shutterstock

O balão asiático, voando sozinho, enfrentou seu destino previsível. Um míssil o atravessou sobre a costa do Atlântico nos EUA. O governo norte-americano evitou seguir imediatamente o conselho de Trump, avaliou que o risco de abater o balão chinês sobre a área territorial do país poderia ir além de matar um ou dois bovinos no pasto. Havia uma preocupação com o desconhecido conteúdo carregado pelo balão, desde material tóxico até pragas capazes de dizimar lavouras. Assim, sobre o mar, o míssil disparado por um caça F-22 derrubou o equipamento de origem chinesa, e seus destroços coletados no Atlântico passam por análises das autoridades nos EUA, apesar de forte protesto de Pequim.

O balão pode ter caído, mas as perguntas não foram derrubadas. Um emaranhado de dúvidas preencheu redações de jornais e redes sociais. O que um balão conseguiria espionar que um satélite não possa fazê-lo? Por que um espião tão grande, com 40 metros de altura e caracteres chineses visíveis? Seria uma false flag, ou seja, a deturpação proposital de um ato, usado para esconder as verdadeiras motivações de suas ações ou sua real identidade?

Balão espião atingido por F22, Myrtle Beach, SC, EUA, 4/2/2023 | Foto: Shutterstock

E o mais importante de tudo: por que o governo chinês iria mandar um balão daquele tamanho, se já instalou um espião em cada bolso dos habitantes do Ocidente?

Dilma grampeada

Em 2013, o governo brasileiro descobriu que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês) havia espionado autoridades do país, entre elas a presidente Dilma Rousseff e o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci. Até o telefone do avião presidencial havia sido grampeado, gerando indignação nas hostes petistas. Em público, porém, o governo adotou a ponderação. “Para o governo da presidente Dilma, é um episódio superado”, disse o então ministro da Secretaria de Comunicação, Edinho Silva.

A denúncia da espionagem internacional promovida pela NSA partiu da ONG WikiLeaks, criada pelo jornalista e ativista australiano Julian Assange, obstinado em revelar que as práticas de espionagem conduzidas por diversos países e corporações estavam invadindo a privacidade das pessoas. Com foco centrado nos Estados Unidos, a plataforma tornou a América do Norte alvo de um intenso volume de denúncias anônimas, misturando fogo amigo e inimigo.

Julian Assange, em 2014 | Foto: Wikimedia Commons

Ao longo da última década, os vazamentos do WikiLeaks expuseram ações nada ortodoxas de inúmeros países, empresas e personalidades, atingindo autoridades dos EUA, da Arábia Saudita, do Quênia, da Turquia e da Síria, entre outras nações. Mesmo acusado de disseminar teorias da conspiração e informações inverídicas, as revelações de Julian Assange derrubaram políticos e assessores de seus cargos.

Rússia e China foram poupadas de vazamentos mais comprometedores, fator que levantou suspeitas de favorecimento a esses países em detrimento dos Estados Unidos e seus aliados. Os questionamentos se acentuam ao considerar que as agências de Inteligência da Rússia e da China estão ranqueadas entre as dez mais atuantes e eficazes do mundo. São elas, respectivamente, a FSB — sucessora da KGB, após o colapso da União Soviética — e o 国家安全部 (Guójiā ānquán bù), Ministério de Segurança do Estado (MSS, na sigla em inglês), com sede em Pequim.

Entre os agentes de Inteligência e especialistas da área, as demais agências top 10 neste começo de século 21 são a CIA, dos Estados Unidos; a Mossad, de Israel; a RAW, da Índia; a Asis, da Austrália; e a BND, da Alemanha, além dos serviços de Inglaterra, França e Paquistão. Não há nenhuma menção à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a única do mundo cujos espiões são selecionados por concurso, possuem estabilidade e contam com um sindicato da categoria.

Celulares infiltrados

O caso do balão chinês trouxe de volta à pauta nos Estados Unidos a preocupação com a espionagem chinesa, responsável por um prejuízo estimado entre US$ 300 bilhões e US$ 450 bilhões por ano aos cofres norte-americanos, valor acumulado pelos ataques cibernéticos e pela espionagem econômica.

“A China representa a maior ameaça geopolítica para os Estados Unidos”, disse, no meio da crise do balão, o ex-secretário de Estado e ex-diretor da CIA durante o governo Trump, Mike Pompeo. De acordo com Pompeo, o artefato voador consistia em um teste chinês para conhecer a resposta dos Estados Unidos. “Biden falhou no teste”, afirmou o ex-secretário.

Mike Pompeo, EUA
Mike Pompeo | Foto: Reprodução/Flickr

Se, por um lado, a Casa Branca hesita em adotar uma resposta mais dura contra o serviço secreto do Partido Comunista Chinês, os Estados norte-americanos agem rapidamente para proteger seus dados e informações. Neste ano, cresceu a lista de unidades da federação que baniram o uso do TikTok no setor público. Os mais recentes a anunciar restrições ao aplicativo chinês foram Wisconsin e Carolina do Norte, ampliando o rol de Estados que inclui Ohio, Flórida e Nebraska, totalizando 26 unidades da federação a bloquear total ou parcialmente o uso do TikTok por funcionários públicos.

Os informantes deste século não se parecem em nada com os espiões da franquia James Bond. Eles circulam com cartões de visitas por empresas, governos, Parlamentos e Tribunais do Brasil e do exterior

A preocupação recai agora sobre a juventude, já que dois terços dos adolescentes usam o aplicativo nos EUA. Investigações conduzidas pelo FBI constataram nos últimos meses que o TikTok armazenou dados de usuários sem autorização, além da sua localidade e da navegação pela internet via aparelho celular. O Partido Comunista Chinês (PCC) possui assento no conselho acionário da ByteDance, empresa dona do aplicativo, e pode acessar dados privados sem grandes dificuldades.

Em dezembro de 2022, a empresa admitiu ter acessado e vazado sem autorização os dados pessoais de jornalistas nos Estados Unidos. A culpa recaiu sobre funcionários que teriam agido sem o consentimento da companhia e, segundo a ByteDance, acabaram demitidos. Essa tem sido a resposta-padrão das grandes empresas chinesas controladas pelo Partido Comunista, ou seja, todas.

A Huawei constitui uma ameaça ainda maior, de acordo com investigações coordenadas por vários países. Enquanto o TikTok possui ação restrita aos aparelhos de quem baixa o aplicativo, a Huawei atua diretamente nas torres de transmissão de telecomunicações, em condições de acessar os dados de cada celular que fizer uso de seus equipamentos.

Foto: Shutterstock

Estados Unidos, Canadá, Austrália, Taiwan, Japão, Nova Zelândia e Suécia baniram o gigante chinês de telecomunicações de sua rede 5G, enquanto o Reino Unido deverá fazê-lo até 2027. Outros países estudam medidas restritivas similares, uma vez que a Huawei é integralmente controlada por membros do Partido Comunista, a começar pelo fundador e CEO, Ren Zhengfei, ex-membro do Exército Popular da China, como são chamadas as Forças Armadas do país.

Brasileiros desprotegidos

O Brasil posiciona-se fora do grupo de países preparado para lidar com a ameaça chinesa no 5G. Durante o governo Bolsonaro, o assunto rendeu uma crise no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), então chefiado por Marcos Pontes. O ministro astronauta conhecia os riscos e, internamente, receava capitanear a licitação do 5G no Brasil.

A solução veio a partir de uma providencial divisão da pasta, com apoio do centrão. O governo acabou recriando o Ministério das Comunicações, entregando a tarefa da licitação para Fábio Faria, que não pariu o 5G, mas o embalou como um filho. Sob uma forte pressão do embaixador Yang Wanming para aceitar as empresas chinesas, o governo Bolsonaro conseguiu proteger apenas a si mesmo, impedindo que a Huawei fosse contratada pelas operadoras de telecomunicações para instalar a rede 5G do governo federal.

O único no governo a falar abertamente contra os interesses do Partido Comunista Chinês no 5G foi o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, demitido em março de 2021, a pedido de lobistas a serviço da China, entre eles parlamentares brasileiros, meses antes da licitação.

No dia 28 de março daquele ano, o chanceler declarou nas redes sociais que a então presidente da Comissão de Relações Exteriores, senadora Kátia Abreu, teria lhe proposto fazer um gesto amigo aos chineses quanto ao 5G, às vésperas de sua audiência no Senado, realizada naquela semana. “Se o senhor fizer um gesto em relação ao 5G, será um rei no Senado”, publicou Ernesto Araújo, no Twitter. Kátia Abreu tergiversou e fugiu do assunto, contando com o apoio da imprensa tradicional. No dia 29, o ministro que ousou enfrentar a China perdeu o cargo.

Senadora Kátia Abreu, em 2016 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em maio daquele mesmo ano, em comentário sobre os chineses mesmo sem citá-los, Katia Abreu declarou: “Sou capaz de me deitar no chão e deixar que pisem em cima de mim”. A ex-senadora disse ter se referido a “qualquer país que tivesse a vacina”. A verdade é que, no ano anterior, em 2020, a embaixada chinesa já havia chantageado o governo brasileiro, ameaçando deixar o Brasil sem as vacinas da sinogripe iniciada em Wuhan, a covid-19, caso o Brasil se recusasse a aceitar as empresas chinesas na rede 5G.

Ernesto Araújo avalia que o imbróglio envolvendo o 5G foi mais uma das imposições chinesas para mostrar sua força política dentro do Brasil. “Já existia a presença chinesa no agro, eles queriam delimitar as áreas onde o Brasil pode e não pode avançar, mantendo o país na condição de exportador de alimentos, sem avançar no setor tecnológico”, afirmou Araújo à Revista Oeste. A análise do ex-chanceler brasileiro corrobora a visão de Mike Pompeo, ex-secretário de Trump, quanto ao balão. Isto é, o PCC testou o governo brasileiro da mesma forma que agora o faz com a administração Biden, respectivamente nas áreas tecnológica e militar.

A lógica por trás da agressividade do ditador chinês Xi Jinping no que diz respeito à espionagem e à tecnologia é bem simples. Para continuar no poder, o grupo de Xi precisa manter a China em um estável patamar de crescimento econômico, proporcionando à sua população um conforto material que compense a falta de liberdade. Incapaz de competir dentro das regras internacionais com nações que desenvolvem novas pesquisas e tecnologias, o Partido Comunista investe no caminho mais rápido e barato: a espionagem em todos os setores, do agronegócio à indústria, dos serviços financeiros às Forças Armadas. Nesse contexto, há 2 milhões de membros do partido trabalhando em empresas multinacionais em todos os continentes.

Xi Jinping, em 2017 | Foto: Shutterstock

Além do farto contingente de informantes e espiões humanos, há algoritmos de espionagem em cada celular habilitado com os aplicativos chineses ou cujas informações trafeguem pelas torres de transmissão das companhias do país. A Huawei nega promover espionagem, mas as investigações em diferentes países vão na direção contrária. Em 2018, Meng Wanzhou, filha do fundador da Huawei, foi presa, no Canadá, a pedido dos Estados Unidos, acusada de violar as sanções contra o Irã. Em 2022, o governo Biden retirou as acusações. No Brasil, dentro da subsidiária local da Huawei, todos os cargos de confiança e de decisão estratégica são preenchidos por membros do Partido Comunista, como revela o livro Chinobyl (Avis Rara, 2021).

Os informantes deste século não se parecem em nada com os espiões da franquia James Bond. Eles circulam com cartões de visitas por empresas, governos, Parlamentos e Tribunais do Brasil e do exterior. Ao proporcionar vantagens econômicas, a espionagem mantém ditadores no poder, assim como permite espalhar mundo afora seus modelos totalitários. Um balão solitário foi derrubado, todos viram. Já o “problema invisível” persiste: bilhões de cidadãos em escala global são potenciais espiões involuntários, desde que carreguem em seus bolsos um aparelho celular.

Leia também “O Foro de São Paulo no poder”

12 comentários
  1. David Peixoto Sampaio
    David Peixoto Sampaio

    A lógica é inversa. Sem nossos alimentos os chineses morrem de fome. A China precisa do Brasil para se alimentar, o Brasil não precisa NECESSARIAMENTE da tecnologia ESPIÃ da CHINA, ainda mais que se trata de um regime DITATORIAL.

  2. Reel
    Reel

    Desinstalei o Tik Tok em meados de 2020.
    Não confiar na china é primordial, governo mentiroso e traiçoeiro.

  3. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Tudo começou com o ex-presidente Richard Nixon no início dos anos 70, quando iniciou a aproximação com a China. Na minha opinião, isto jamais deveria ter sido permitido, pelo simples fato de se ser um gigante comunista, razão suficiente para qualquer negativa. Com a Globalização, nossas empresas, aos milhares, foram plantar seus meios de produção no terreiro do inimigo. Com a entrada daquele país na OMC, avacalhou o comércio internacional de vez. Se os tivessem deixado quietos onde estavam, teriam sucumbido por si mesmos. É muita imbecilidade.

  4. Roberto
    Roberto

    Só não enxerga a ameaça chinesa quem não quer ou é comprometido com a ideologia comunista. O Fontana é o nosso mais bem informado jornalista em trambiques chineses. Leian Chinobyl e vão entender . Estamos sob uma séria e continua ameaça. O Brasil tem tudo que os asiáticos querem. Simples assim

  5. Basilio Garcia Rosa
    Basilio Garcia Rosa

    Realmente as transformações técnicas de informação e contrainformação ao longo dos últimos anos são impressionantes. Este seu artigo mostra, nos bastidores, as dimensões atuais e a maneira como somos observados, sem qualquer ética ou direito.

  6. Daniel BG
    Daniel BG

    Enquanto o STF distorce a noção de justiça e elege um criminoso e socialista à presidência, a mesma bandidagem deixa as portas abertas à invasão chinesa. Pais, protejam os seus filhos!

  7. IMP
    IMP

    No inverno a gripe aviaria ira devastar o Brasil, Argentina e Uruguay. Estamos entregando os nossos paises para os comunistas. O Povo esta pensando que estamos lidando com amadores, mas quando a fome e a miseria dominar toda a sociedade veremos quem é quem. O glifosato esta destruindo o meio ambiente, exterminando as abelhas e provocando cancer na populaçao, mas os politicos corruptos seguem com o teatro que lutam por suas patrias.

  8. Manoel F A Ferreira
    Manoel F A Ferreira

    Belo artigo, Fontana. Vc é um expert em China, acompanho o seu trabalho há tempos. Muito bom ve lo aqui na Oeste.

  9. Sandro Luis Batista Soares
    Sandro Luis Batista Soares

    Essa semana ocorreu algo estranho. Avistaram balões chineses nos céus da América do sul também, e depois disso começou a aparecer focos de gripe aviária. Muito estranho isso, tem que ser investigado essa coincidência.

  10. FERNANDO A O PRIETO
    FERNANDO A O PRIETO

    Parabéns por seu artigo. Muito bom vê-lo aqui na Oeste. Espero ouvir e ver você em outras plataformas, e, apesar da censura feroz, na televisão (aparecendo na JP, por exemplo). Felicidades e que Deus o abençoe!

  11. Miguel Renan dos Santos
    Miguel Renan dos Santos

    Parabéns à Oeste, por albergar as informações do jornalista que mais entende do assunto. Há notórios e “subestimados” riscos aos interesses nacionais!

  12. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Bem vindo a Oeste Rafael Fontana!li seu livro Chinobyl em dois dias.Adorei e recomendo a leitura.Me interesso demais pela China e sua cultura milenar,já li toda literatura que temos disponível no Brasil.A China vem aos poucos comprando empresas,colégios, imóveis ,terrenos e fazendas em nosso país. Para mim um grande motivo de preocupação, os chineses estão chegando.

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