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Escombros de casas em Boiçucanga, São Sebastião | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste
Edição 162

Tragédia das chuvas: a vida depois da catástrofe

Uma tragédia como a do Carnaval de 2023 em São Sebastião pode ser útil — quando se aprende com ela

Dagomir Marquezi
-

“Da nossa vida, em meio da jornada. 
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.
Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando
Que pavor tão escuro me causara (…)
No existir, ser nenhum a mim avança,
Não sendo eterno, e eu eterno perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
A Divina Comédia
Dante Alighieri
(Tradução: Xavier Pinheiro
)

Ocaminho para o inferno começa na Rua Ricardo Queiroz. Ela leva ao lugar mais atingido pela catástrofe de 19 de fevereiro deste ano norte de São Paulo: ao coração da Vila Sahy, onde estava a maioria dos 64 mortos — 23 crianças e 41 adultos.

Lá embaixo, perto da SP-55 (que liga Santos ao Rio de Janeiro), nada parece fora de ordem. O Instituto Verdescola, que serviu como primeiro refúgio aos desabrigados, voltou à normalidade. A Pizzaria e Adega Império, na Rua Um, atende a partir das 18 horas. O comércio funciona normalmente — a Perfumaria Salão Linda e Bela, a Loja de presentes Arco-Íris, o Mercado Altas Horas, a Casa de Carnes Santa Fé, o Mercado Andrade, o Bar do Tárcio. As pessoas se cumprimentam, sorrindo no dia de sol.

Escombros de casas na Barra do Sahy, em São Sebastião | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

Aí a rua se transforma numa ladeira íngreme e toda esperança fica para trás. No alto da ladeira, junto à Serra do Mar, casas foram cortadas pela metade, a lama foi revirada como se a lei da gravidade tivesse sido temporariamente suspensa.

Canos surgem do nada, paredes desmoronadas escancaram salas onde a lama se mistura com sofás e TVs. Um carro parece ter sido retorcido por uma força sobrenatural e jogado como um pano de chão sobre o entulho. Um tronco desafia a lógica, espetado horizontalmente no que já foi uma garagem. Sua outra extremidade pousa sobre tapetes, muros, um forno de micro-ondas, colchões, cestas que já guardaram mantimentos, pisos fragmentados, mangueiras rompidas, garrafas PET, raízes soltas num mar de lama sem fim.

Imposto sobre ilegalidade

No alto da Rua Ricardo Queiroz urbanidade e natureza se misturam caoticamente, numa estranha feiura, um mundo implodido de pernas para o ar. A intervenção humana é representada por caminhões da Sabesp trabalhando para restabelecer as redes de água e esgoto. Numa das casas, de paredes fragmentadas, e barro por todos os cantos, a luz da sala permanece acesa. É um toque sinistro para tentar afastar possíveis saqueadores. O fantasma de uma vida que acabou.

Bairro Baleia Verde, São Sebastião | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

Ao redor desse panorama vemos casas de dois, três andares sendo construídas à beira do morro, esperando a próxima catástrofe. Os tijolos ainda são aparentes e sugerem terraços para churrasquinhos em encontros familiares. 

“Essas cinco casas são minhas”, diz Osiel (que não quis revelar o sobrenome), apontando para as últimas construções mais altas da rua, todas destruídas. “Fui até o Ministério Público, fui na prefeitura, e eles não me indenizam pelo que aconteceu às minhas casas. Eu pago o IPTU, mas eles dizem que esse imposto só vale para ter direito à limpeza e à rede de esgoto.”

A gente tem até o dia 30 de abril, às 5 da tarde, para resolver isso”, disse Josefa Cristina dos Santos Cavalcanti. Se não acharem um lugar para ir, poderão ir para a rua com suas crianças, que se acostumaram à segurança e ao conforto do hostel

Mas não é proibido construir na encosta do morro, na franja da Mata Atlântica? “Eu comprei o terreno, sem escritura”, conta Osiel. “Me deixaram construir em área de risco. Me cobram R$ 1,5 mil por ano de IPTU. E eu não tenho direito a nada? Se eu não tenho direito a nada, não deviam ter me deixado construir. Cobraram por uma propriedade que não é legal. Não deveriam ter cobrado. Foi o que o Ministério Público me disse. E existe a chance de ganhar essa causa.”

Lício Mota da Silva, que mora em área de risco e não quer sair | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

Numa rua sem nome paralela à Ricardo Queiroz, Lício Mota da Silva e seu filho ainda limpam o que restou da casa deles. A lama invadiu sua cozinha, destruiu colunas da casa. Ninguém morreu, mas o CDHU determinou que a propriedade precisa ser derrubada. E Licio não esconde a raiva. Ele diz que, quando aconteceu a tragédia, a imprensa invadiu a cidade, “como um monte de urubu”. E que todo mundo desapareceu. 

“Estou revoltado, porque estamos abandonados”, diz o indignado. “Derrubar minha casa? Até que me provem o contrário, isso aqui é meu! Para derrubar vocês tem que me dar outra. Moro aqui desde 1993. Aí vem uma pessoa que eu nem conheço e diz: ‘Você vai ter que sair, nós vamos derrubar. E não vamos indenizar ninguém’. Existe isso?”.

Escombros de casas em Boiçucanga, São Sebastião | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

Lício também aponta a contradição de pagar IPTU por uma propriedade que está fora da lei. “Cobrar imposto pode. Aqui tem dois tipos de área. ‘De risco’ (aponta para a própria casa) e ‘de rico’ (e aponta para a praia distante). As casas dos ricos também foram afetadas, estão em área de proteção ambiental, e lá não apareceu nenhum órgão público. Ninguém mexe com eles. Estão até restaurando as casas.” 

Sua raiva poupa o governador paulista Tarcísio de Freitas. “Ele esteve aqui, me abraçou, tenho foto com ele. É um cara humano, montou sua equipe aqui. Mas muitas coisas não chegam ao alcance dele.” Já o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não escapa ao bombardeio: “O que eu vi do presidente foi entregar R$ 5 milhões para a Claudia Raia e só R$ 2 milhões para o litoral”. 

O governador Tarcísio de Freitas e equipe planejam ações para recuperar as regiões afetadas pela chuva no litoral norte de São Paulo | Foto: Daniela Andrade/PMSS

Quem se comportou melhor durante a tragédia? “Os moradores foram guerreiros, estão de parabéns. No domingo, o dia inteiro, a população trabalhou. A Defesa Civil só chegou na segunda-feira à tarde. Quem está de parabéns também são os médicos e os enfermeiros que vieram de São Paulo. Foram humanos.” Não avalia com a mesma generosidade o comportamento dos militares, dos policiais e dos bombeiros.

Chega o momento de descer a ladeira. Antes, eu e meu guia Ronaldo cruzamos com outro morador, que prefere não se identificar nem tirar fotos. Ele faz o papel de consciência coletiva, de bode expiatório numa situação em que é fácil se fazer de vítima. É pedreiro, e não teve a casa afetada. 

“Vivemos uma bagunça legal. Não posso acusar as autoridades de corrupção, mas tem a omissão.” Aponta o dedo para os próprios moradores. “Político é como o pai que vê o filho cometendo um erro e corrige só pela metade. Se pegassem pesado, a gente não construiria em lugar proibido. Como deixam, a gente constrói. Se tirar o radar da estrada, a gente vai andar a mil por hora. É ou não é? Nós precisamos de limites. Nós gostamos de facilidade. Quebramos regras. Aí, dizemos: ‘Putz, errei’”.

As “exiladas da pousada Laika”, que deverão ser despejadas dia 30 e não têm para onde ir | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste
As exiladas do Laika

Desci desta arte ao círculo segundo
Que o espaço menos largo compreendia
Onde o pungir da dor é mais profundo
Dante Alighieri
A Divina Comédia

Na edição de 17 de março, publiquei em Oeste uma reportagem chamada “Depois do inferno, um mês no paraíso”. Mostrei a situação de pessoas que, depois da catástrofe, saíram de habitações precárias do morro para o conforto de hotéis e pousadas de São Sebastião. Voltei ao Hostel Laika, e para um grupo de mulheres o título anterior pode ter se invertido. Depois de uma temporada no paraíso, a perspectiva para elas é a rua.

Um grupo de mulheres — as “exiladas do Laika” — contou para Oeste o drama que elas estão passando. Por enquanto, seus filhos estão comendo pratões no almoço oferecido pelo hostel. Eles brincam no 2° andar, e não parecem ter noção do que pode estar por vir. “A gente tem até o dia 30 de abril, às 5 da tarde, para resolver isso”, disse Josefa Cristina dos Santos Cavalcanti. Se não acharem um lugar para ir, poderão ir para a rua com suas crianças, que se acostumaram à segurança e ao conforto do hostel. 

Josefa Cristina dos Santos Cavalcanti | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

As “exiladas do Laika” também estão enroladas numa teia jurídica. “Sou mãe solteira, com três filhos, um deles com 2 meses de nascido”, conta Josefa. “A gente tem que entrar com uma ação para conseguir o auxílio-aluguel de R$ 1,3 mil. Eu cheguei aqui e todos diziam: ‘Aguarde’. Aguardei e agora vou ter que sair? O advogado da Defensoria Pública disse que a gente tinha o direito a uma das casas. Agora disseram que, para ter esse direito, a gente tinha que entrar com essa ação contra a prefeitura. E isso demora de três a quatro meses no mínimo”.

Priscila de Jesus Santos morava em Juquehy, onde trabalhava como cozinheira e pagava R$ 1,1 mil de aluguel numa casa que não existe mais. Também não vê saída. “Dia 30 a gente vai pra onde? Vou comprar umas lonas baratinhas, faço um toldo com madeira e vou procurar uma ponte para morar com meus três filhos. Eles só vão doar o ônibus para a gente sair da pousada.”

Priscila de Jesus Santos | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

E tem a baiana Juliana Santos Sousa, que morava no número 14 da Travessa São Jorge, na Vila Sahy. Ela já é avó, aos 29 anos, e passou por um tormento no dia em que 600 milímetros de água caíram do céu. Ela chora ao lembrar do momento em que achou que tinha perdido o filho — que estava bem, salvando um amigo na enxurrada.

Juliana se nega a voltar para a Bahia. E denuncia que, com a situação crítica criada pela enchente, os aluguéis da região praticamente dobraram de preço. Quem pagava R$ 800 por uma quitinete agora tem que pagar R$ 1,5 mil. Juliana conseguiu um lugar no conjunto do CDHU em Bertioga e apareceu no Laika em solidariedade às amigas. 

Juliana Santos Souza | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

Hoje, ela procura aprender com sua amarga experiência: “As pessoas só criticam o poder público. Mas o universo não é feito só do poder público. O universo é feito de seres humanos. Se a gente fizesse pelo outro o que você gostaria que o outro fizesse por você, eu acho que o mundo seria muito mais igual. É muito fácil apontar o erro do outro. E cadê seu erro? Cadê sua maturidade, seu pensamento de vida? Cadê seu amor ao próximo?”.

A moça do cabelo vermelho

Juliana foi uma das que conseguiram uma vaga, junto com outros desabrigados, num conjunto habitacional de Bertioga, onde está acontecendo um problema sério. Parte dos que estão morando no conjunto de Bertioga nunca esteve desabrigada pela chuva. Tomaram apartamentos que deviam ser destinados a pessoas como as exiladas do Laika. A funcionária de uma ONG de moradores confirmou a denúncia, e foi além — segundo algumas informações, alguns desses que mentem às autoridades para se instalar nos apartamentos de Bertioga são ligados ao tráfico.

Um toque de leveza acontece com a chegada de Milena Pinheiro Santos. Ela já havia sido entrevistada por Oeste na edição de 17 de março, e sua foto na época refletia medo, raiva e tristeza. 

Agora, Milena está numa situação bem menos tensa: “Fui chamada para morar em Bertioga. Agora estou trabalhando numa cozinha de segunda a sexta-feira. Sábado e domingo fico de folga para cuidar dos meus filhos. Tá bom lá em Bertioga”. Ela vai ao Laika para visitar suas amigas. “Viramos uma família aqui no Laika. Fico preocupada com elas.”    

Milena, a “moça do cabelo vermelho”, reconhece que, apesar de tudo, está bem. “Por oito meses a gente não vai pagar a casa em Bertioga. Depois a gente vai ficar pagando prestação por 30 anos. Temos o nosso cantinho, temos os filhos. A gente ganhou geladeira, fogão, micro-ondas, sofá, colchão, forro de cama, cobertor, tudo de doação. Alguém doou também cartões de alimentação. Minha vida lá está melhor. Você tem sua privacidade, faz sua comida, a rotina vai voltando aos poucos. Vou ficar em Bertioga o tempo que for necessário, mas eu quero voltar para Boiçucanga. Tem dias que a saudade da antiga casa aperta, a gente acorda mais triste. Mas vamos vencer. O pior já passou, graças a Deus.”

Tanto passou que ela abriu um sorrisão para sua nova foto para Oeste.

Milena Pinheiro Santos em dois momentos: um mês depois da tragédia e agora | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste
A sabedoria do gato

Por dar mal, por mal ter, viram fechadas
Do céu as portas; penam nesta lida,
Com mágoas, que não podem ser contadas”
Dante Alighieri
A Divina Comédia

O Brasil teve sua quota de catástrofes. A inundação de Brumadinho, em 2019, foi a mais recente. Catástrofes são tristes, mas ensinam lições, para que não se repitam. Depois dos incêndios nos edifícios Andraus (1972, 16 mortos, 300 feridos) e Joelma (1974, 179 mortos, mais de 300 feridos), as regras de segurança de habitações foram profundamente revistas e nenhum outro incêndio dessas proporções aconteu em São Paulo. Depois do incêndio da boate Kiss (2013, 247 mortos, mais de 600 feridos) ninguém mais teve a “brilhante” ideia de acender um sinalizador pirotécnico numa casa de shows.

O caso de São Sebastião ensinou pela dor o que deve ser feito. Casas em zonas de risco devem ser desabitadas, e seus moradores transferidos para regiões seguras. Muros de contenção podem diminuir o tamanho do impacto em caso de nova tempestade. Novas habitações não devem ser construídas nas encostas dos morros.

Placa de identificação de residências em área de risco pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

Isso vai acontecer? Veremos. O mais provável é que pessoas continuem construindo casas encostadas no morro, esperando que nada de ruim aconteça nas chuvas do próximo verão. Talvez um dia esqueçam do que aconteceu naquela mesma ladeira no Carnaval de 2023. Assim como as novas gerações talvez acabem esquecendo o desastre semelhante que matou mais de 300 pessoas na vizinha Caraguatatuba, em 1967.

O que temos por enquanto são medidas, algumas paliativas, outras mais perenes. Moradores de centenas de ruas do município de São Sebastião vão receber um benefício da Caixa Econômica chamado FGTS Calamidade. E 600 famílias estão isentas da conta de água por seis meses. Desabrigados foram hospedados (até agora) em hotéis e pousadas da região, o que movimentou a economia local.

Placa alertando a interdição de um terreno em Boiçucanga, São Sebastião | Foto: Dagomir Marquezi/Revista Oeste

O governo do Estado desapropriou três áreas do município, num total de 49.800 metros quadrados, para a construção de habitações seguras. Estive numa dessas obras, no bairro da Baleia Verde e tudo está muito no começo. O plano é que fiquem prontas em seis meses. E é um conforto ver que está bem longe da Serra do Mar.

Um gato que se aproxime demais de um forno quente não vai querer mais repetir a experiência. Casas continuarão sendo construídas em locais de risco, esperando chuvas torrenciais que destruirão as residências, que gerarão mais mortes e desabrigados? As autoridades serão firmes na aplicação da lei para impedir novas ocupações ou terão medo de perder votos? Continuarão cobrando impostos de propriedades que consideram ilegais? Como será o Carnaval de 2024 na Rua Ricardo Queiroz? Só o tempo dirá.


Agradecimentos a Ronaldo Gonçalves Lima

Leia também “A gravidez fora do corpo está perto de se tornar realidade”

4 comentários
  1. Fabyo
    Fabyo

    Excelente texto e matéria. Parabéns! E bem feito para quem ainda dá audiência para os canais da globo e artistas corruptos como a Claudia raia.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A educação é o início disso tudo. Veja uma moça da matéria, com 29 anos e já avó.

  3. Maki K
    Maki K

    Parabéns pela matéria. As mídias sensacionalistas cobrem assim quem acontecem os acidentes, mas poucas acompanham o posterior. E a Oestetem feito com alguns assuntos.

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O déficit habitacional no país é alarmante e causa muitos problemas, principalmente por omissão das autoridades.
    Imigração para os centros econômicos mais desenvolvidos acabam sendo mais afetados pela procura de oportunidades pelas pessoas.
    E como uma das entrevistas falou: para a Bahia eu não volto… Ruim onde estão, muito pior nas suas origens onde os políticos por omissão, interesses eleitoreiros e manutenção do voto de cabresto não permitem que a economia avance em seus municípios.

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