Em 1623, o matemático alemão Wilhelm Schickard (1592-1635) desenvolveu a primeira calculadora mecânica com as quatro operações básicas. Ela incluía até um “registro de memória”. Schickard encomendou um modelo do seu projeto para um relojoeiro, mas o protótipo foi destruído pelo fogo antes de ser completado. Em 1635, esse pioneiro e toda a sua família morreram por causa da peste bubônica. Ele tinha 43 anos. Foi chamado de “Pai da Era dos Computadores”.
Há exatos quatro séculos, portanto, nascia essa fase da existência humana em que nosso cérebro encontra máquinas que nos ajudam a cumprir tarefas. Depois da calculadora veio o computador mainframe, depois vieram o computador pessoal e a internet. Cada passo acompanhado de previsões apocalípticas e temores sombrios. (Se você tem mais de 35 anos, provavelmente foi informado de que o mundo acabaria em 1º de janeiro de 2000 por causa do “bug do milênio”.) Agora chegou a hora do grande salto: a inteligência artificial (IA) generativa, capaz de criar novas informações com base em conjuntos de dados preexistentes. Foi neste ano de 2023 que ela deixou os laboratórios e se espalhou para os laptops e celulares de cada um de nós.
Ainda estamos no berço dessa nova tecnologia. Ela oferece uma quantidade inédita de possibilidades, e todas elas cumprem a mesma função da calculadora de Schickard: ser um instrumento para a solução de necessidades. Cada nova geração teve sua cota de transformações radicais. Aprendemos a largar a máquina de escrever, abandonamos a câmera fotográfica, deixamos de nos comunicar por cartas e telegramas, transformamos a sala de nossa casa em cinema. Mas para a pessoa comum o princípio da inteligência artificial permanece meio esotérico. Afinal, para que serve isso?
Quando ligamos o computador, o que diferencia, por exemplo, usar a IA de “dar um Google”? Quando pedimos algo ao Google, ele oferece uma série de opções de páginas da internet, um menu para que o usuário escolha o que quiser. Peça qualquer coisa, como “dirigível”, e o Google vai oferecer links para sites, imagens, vídeos, notícias etc. Então você clica no que escolher e é direcionado para a respectiva página.
Se você perguntar ao Bing, o buscador da Microsoft que já é baseado em inteligência artificial, vai receber uma resposta lógica como se estivesse conversando com alguém: “Os dirigíveis são aeronaves que se sustentam através de uma grande cavidade que é preenchida com um gás menos denso que o ar atmosférico, como por exemplo o gás hélio ou mesmo o inflamável gás hidrogênio. (…) O protótipo do ADB-3, primeiro modelo de dirigível tripulado projetado pela Airship do Brasil Indústria Aeronáutica, realizou o seu voo inaugural em julho deste ano”.
É a diferença entre um “toma aqui o mapa da internet e se vira” (do Google) e o “sou uma entidade inteligente e estou à sua disposição” (do Bing). A IA não se limita a buscar informações, pode trabalhar por você. Os chats à base de IA estão se tornando populares e oferecem serviços específicos. É impossível calcular o número de possibilidades que surgem a cada dia. E o número de erros que a inteligência artificial ainda comete por ter acabado de sair do seu berço tecnológico.
Chef, poliglota, consultor, agente de viagens, analista de sistemas
Um bom exemplo dessa diversidade de tarefas está sendo oferecido pelo ChatGPT na sua versão 4, que agora pode funcionar com aplicativos (ou plugins) muito específicos. Cada um desses plugins oferece a mesma possibilidade de diálogo e parceria com o usuário.
Para ter acesso a esses plugins do ChatGPT-4, é preciso assinar o serviço, que custa US$ 20 por mês. O usuário então procura em “Configurações” e acha a “Plugin Store”. Lá estão mais de 500 opções de aplicativos. Detalhe: você pode escolher quantos plugins quiser, mas só poderá deixar habilitados três de cada vez.
Algumas das possibilidades:
- Gerador de receitas culinárias
Você insere algumas preferências pessoais, limitações médicas, ingredientes disponíveis, e a IA sugere as receitas de suas refeições por, digamos, uma semana.
- Prática de línguas
Perguntei: “Como posso ser ajudado se quiser aprender, por exemplo, francês?”. Recebi a seguinte resposta do ChatGPT:
“Prática de Conversação: Você pode praticar conversas em francês com o ChatGPT. Tradução: Você pode pedir ao ChatGPT para traduzir frases do português para o francês e vice-versa. Isso pode ajudar a melhorar seu vocabulário e compreensão gramatical. Explicações Gramaticais: Se você tiver dúvidas sobre a gramática francesa, pode perguntar ao ChatGPT. Ele pode fornecer explicações detalhadas sobre regras gramaticais e exemplos de uso. Correção de Textos: Você pode escrever textos em francês e pedir ao ChatGPT para corrigi-los. Cultura Francesa: O ChatGPT pode fornecer informações sobre a cultura francesa, como literatura, história, culinária, etc. Isso pode ajudar a aumentar sua compreensão e apreciação da cultura francesa.”
A IA cria textos também, com uma velocidade e uma precisão que nos provocam duas reações: ou pensamos em nos aposentar ou lutamos para ser melhores que nosso computador
- Company Transcripts
Um investidor (ou um jornalista) pode pedir o resumo da situação de determinada empresa. Pedi um balanço da situação da Embraer, e o plugin mostrou um retrato detalhado (mas resumido) de uma teleconferência da empresa para o primeiro trimestre de 2023. O retrato é muito amplo, mas, se você quiser os relatórios completos, o plugin disponibiliza o link.
- Expedia
Pedi sugestões para uma viagem imaginária até a Nova Zelândia. É como conversar com um atendente muito educado e prestativo de uma agência de turismo. Mas o serviço ainda é bem limitado. Todas as possibilidades pesquisadas valem apenas para uma viagem a ser feita até um mês após a consulta. E ele não acessa o serviço de terceiros, como o serviço ferroviário KiwiRail. O agente de viagem particular disponível 24 horas por dia ainda é uma promessa.
- Cloudflare Radar
Um plugin para monitorar um panorama cada vez mais importante para todos nós: a situação global da internet. Por exemplo, ficamos sabendo que, das cinco anomalias mais recentes dos últimos 14 dias, quatro aconteceram no Iraque, para “prevenir trapaças em exames acadêmicos”. Descobrimos também que, nas últimas duas semanas, o Android foi o líder dos sistemas operacionais, com 38,4% do tráfego, seguido pelo Windows, com 32,3%, e pelo iOS, com 18,1%. E descobrimos que quase 30% de todo o tráfego na internet foi gerado por bots (ou “robôs”).
Esses são apenas alguns exemplos de plugins. Mas as pessoas estão usando chats para criar treinos personalizados de academia, procurar emprego, criar palavras cruzadas, procurar imóveis, fazer cotação de moedas etc. A única referência que eu encontrei desse tipo de serviço especificamente sobre nosso país foi o Talk Law Brazil. É um chat (não muito amigável para o usuário) de análise dos projetos de lei em tramitação no Congresso. É um teste para a nova tecnologia: compreender o pântano jurídico e legal em que o Brasil se afundou.
O parceiro invisível
Nesses exemplos todos estamos falando de consultas a serviços. Mas o conceito de chat vai muito além. Ele cria o que quisermos, mas sem nossa preguiça ou limitação. E cria rapidamente, numa velocidade muito além de nossa capacidade. Já escrevi aqui sobre aplicativos que criam qualquer tipo de obra de arte, que você encomenda com palavras.
A IA cria textos também, com uma velocidade e uma precisão que nos provocam duas reações: ou pensamos em nos aposentar ou lutamos para ser melhores que nosso computador. A popularização da inteligência artificial surge num momento de profunda crise criativa da chamada “inteligência natural”. Nós, humanos, ficamos preguiçosos, perdemos a ousadia e a capacidade de inovar. Em qualquer área — literatura, cinema, teatro, imprensa etc. A disponibilidade da IA, se usada com honestidade, pode nos ajudar a sair dessa crise.
Pedi ao Bing que fizesse um poema sobre Oeste:
“Se queres ler notícias de qualidade,
Sem medo de censura ou manipulação,
Se queres ter acesso à verdade,
Sem viés ideológico ou distorção,
Assina a revista Oeste sem demora,
A melhor fonte de informação do país,
Que traz reportagens e análises a toda hora,
Com independência, coragem e sensatez.
Não deixes que te enganem com mentiras,
Nem que te iludam com promessas vãs,
Busca o conhecimento que liberta e inspira,
E apoia quem defende os teus ideais,
A revista Oeste é a tua aliada fiel,
Contra a tirania, a corrupção e o papel.”
Eu poderia passar algumas horas espremendo o cérebro tentando imaginar esse soneto. O Bing compôs em dez segundos. (Já uma tentativa de transformar essa mensagem numa letra de rock heavy metal não deu muito certo…)
97 livros em nove meses
O norte-americano Tim Boucher escreveu uma matéria para a revista Newsweek contando sua experiência de parceria com o ChatGPT num projeto literário “fundindo ficção científica pulp distópica com construção de mundo de IA convincente”. O gênero é difícil de compreender para quem encara a literatura em termos tradicionais, mas não é isso que vem ao caso aqui.
O que importa é que Tim Boucher, com ajuda da inteligência artificial, tinha produzido nada menos que 97 livros em nove meses. São livros pequenos, entre 2 mil e 5 mil palavras, usando de 40 a 140 imagens geradas pelo programa Midjourney. Segundo ele, cada livro leva de seis a oito horas para ser escrito e publicado. “Em alguns casos, fui capaz de produzir um volume em menos de três horas.”
São pequenos volumes altamente ilustrados, em linguagem simples. “Eu vendi 574 livros por um total de US$ 2 mil (cerca de R$ 10 mil) entre agosto e maio. Todos os livros se cruzam, criando uma teia de narrativas interconectadas que constantemente atraem os leitores e os encorajam a explorar mais.” Os livros não são monumentos literários, apenas pequenos volumes digitais altamente ilustrados, alguns vendidos ao equivalente a menos de R$ 10. As capas impressionam — e também são produto da inteligência artificial.
No seu artigo para a Newsweek, Tim Boucher não fala em deixar que computadores façam o trabalho para ele. “Esse empreendimento na publicação assistida por IA foi uma experiência transformadora e gratificante. Ele reformulou minha abordagem da criatividade, melhorou minha produtividade e permitiu que eu me conectasse com os leitores de maneiras que eu não poderia imaginar. Estou convencido de que a interseção de IA e narrativa possui um enorme potencial e estou ansioso para ver aonde essa jornada nos levará a seguir. Nossa imaginação é o único limite.”
Leia também “A fábrica de morte de Wuhan”
Aproveitando o momento em se recorda a história das máquinas aritméticas, tenho histórias desde as primeiras calculadoras eletrônicas, pois sou dessa geração. Mas fiquei horrorizado ao observar que desenvolvedores do Ubuntu 22 chamam de calculadora de bases binária, octal e hexadecimal, de calculadora “programável”! Isso me parece provar que as novas gerações não sabem o que significa calculadora programável!
Se até o MUSK pediu parcimônia é porque o perigo do uso ilimitado desta tecnologia é real. Sou o cara do papel alumínio na cabeça, acho que a I.A. pode ser a velha skynet. Oremos.
Os testes com veículo flutuante foram feitos em julho, que não chegou ainda? E de agosto a maio? Vou consultar o agricultor gaúcho que foi abduzido e viu aqueles carros que estacionam nas varandas dos prédios