Na União Soviética dos primeiros anos 1930, o inimigo público número 1 não eram os nazistas. Muito menos os norte-americanos. Eram os kulaques. Camponeses que possuíam pequenos terrenos, nos quais trabalhavam autonomamente, rejeitando o coletivismo comunista ou o enquadramento nas fábricas. Atingiam, assim, um nível de vida ligeiramente superior à miséria imposta por Moscou. Obviamente, era algo intolerável pelo regime. Que respondeu da única forma conhecida: expropriando suas terras e exterminando-os todos.
“Para eliminar os kulaques, a política de eliminação não é suficiente. É necessário quebrar a resistência dessa classe com uma luta aberta e privá-la das fontes econômicas de sua existência e seu desenvolvimento”, decretou Stalin no momento da condenação dos pequenos possidentes.
Os futuros efeitos da reforma tributária, aprovada às pressas pela Câmara dos Deputados no dia 7 de julho, ecoam algo tenebrosamente parecido. Os kulaques brasileiros de 2023 parecem ser os pequenos e médios empresários do setor de serviços. Eles enfrentarão um aumento brutal da carga tributária. E serão obrigados a escolher entre aumentar os preços, perdendo clientes, ou absorver o ônus reduzindo as margens de lucro, deixando seus negócios inviáveis. Em ambos os casos, o destino é selado: muitos fecharão as portas.
Poucas certezas, muitos impostos
A reforma tributária foi um casamento às cegas do Brasil com seu futuro econômico. O governo não apresentou estudos de impacto. Nenhum cenário, simulação ou cálculos. Provavelmente o único caso na história da humanidade de reforma tributária votada sem sequer saber as alíquotas. Só há uma única certeza: os impostos vão subir.
“Não existem alternativas”, explica Marcos Cintra, ex-deputado federal, ex-secretário da Receita Federal e professor titular na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Com tanta isenção concedida para todo e qualquer setor, quem não obtiver benesses, ou seja, a grande maioria, terá que pagar mais impostos”.
“Que o setor de serviços pagará mais impostos com essa reforma tributária não é mistério para ninguém”, observa Márcio Schuch, CEO da Ecguaiba Contabilidade e integrante da Comissão da Reforma Tributária do Conselho Federal de Contabilidade (CFC). “Isso foi até falado abertamente durante a própria discussão no Congresso”. Segundo Schuch, a justificativa fornecida pelo governo era de que se tratava de “uma escolha da sociedade em prol de simplificar”. Só que os brasileiros ainda não perceberam quanto deverão pagar a mais por essa simplificação. Vai doer no bolso do cidadão. E muito.
Além disso, o objetivo dos formuladores da reforma era redistribuir a carga tributária entre setores econômicos, alegando que a indústria seria muito mais onerada do que os serviços. Razão, diziam, da rápida desindustrialização do Brasil. “Isso é falso. Ambos os setores têm cargas tributárias muito próximas, com ligeira superioridade do segmento de serviços”, salienta Cintra, que analisou dados da própria Receita Federal, demonstrando que a atual carga tributária do setor industrial é de 14,7%, enquanto a dos serviços é de 15,7%.
Segundo o economista, existe “um evidente motor ideológico nessa reforma”, que será punitiva para os fornecedores dos serviços, assim como para os consumidores finais. Ambos membros de classes abastadas e, portanto, “burgueses, privilegiados e sanguessugas”, que deverão pagar a conta dessa reforma. Kulaques tupiniquins.
Só que esse verdadeiro discurso de ódio social codificado na reforma tributária pode se transformar em um gigantesco gol contra do governo. Com um impacto devastador na economia brasileira.
Setor de serviços é o pilar do PIB
Responsável por 70,9% do Produto Interno Bruto (PIB) e por 30% dos empregos brasileiros, o setor de serviços engloba restaurantes, bares, transportes, planos de saúde, comércio, escolas, mecânicos, manicures, cabeleireiros, além de escritórios de advocacia, de contabilidade, de arquitetura, médicos, entre outros. A esmagadora maioria dessas empresas não são gigantes multinacionais, mas pequenas atividades em que os próprios sócios, normalmente familiares, trabalham diretamente e obtêm o sustento necessário.
“Se todos esses CNPJs optarem por repassar o aumento dos impostos para os preços finais, o Brasil poderá conhecer um novo surto inflacionário”, explica Daniel Szelbracikowski, mestre em direito constitucional, especialista em direito tributário, sócio da Advocacia Dias de Souza. “A população não tem capacidade de absorver esse aumento de custo para serviços diários básicos. A consequência disso será uma redução do teor de vida do brasileiro”, diz.
Um estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostra que esses aumentos poderão chegar a 261% para as empresas enquadradas no Simples Nacional. Os mais prejudicados serão as atividades recreativas e culturais (171%), serviços pessoais (160%), seleção, agenciamento e locação de mão de obra (157%), serviços de alojamento (153%), e serviços para edifícios e atividades paisagísticas (145%).
Isso porque, atualmente, o setor de serviços paga, em média, 5% de impostos. Com a reforma tributária, a cobrança será feita por meio do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), devendo, no mínimo, quintuplicar, passando para 25%, conforme indicado por expoentes do governo federal. Uma porcentagem muito superior à aplicada no Canadá (5%), Japão (8%) ou Europa (21,3%). Impossível não ter efeitos sobre os preços.
Todavia, segundo especialistas, o medo de perder clientes inibirá essa escolha, pelo menos no primeiro momento. A preferência dos empresários será tentar manter dentro de casa esse custo extra. Reduzindo ainda mais os ganhos.
Muitos especialistas estão prevendo um aumento considerável da economia informal no Brasil, atualmente por volta de 17% do PIB
Os cálculos realizados pelo economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e pesquisador do Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) da Universidade de Lisboa, mostram que o lucro líquido de muitos serviços poderá ser reduzido em 79,4%. “Em bom português, para muitas empresas não terá mais sentido existir”, explica Szelbracikowski. O mesmo destino dos kulaques: desaparecerão. Levando junto milhões de empregos.
Segundo a CNC, se a alíquota padrão do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), novos encargos que substituirão o ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins, for fixada em 25%, o setor de serviços será obrigado a cortar 3,8 milhões de empregos. “Mas é impossível que a alíquota desses IVAs fique em apenas 25%”, explica Cintra. “Cálculos realizados por vários economistas e entidades mostram que essa porcentagem será muito mais elevada. Podendo chegar a 34%. E isso será uma catástrofe. O aumento do peso dos tributos poderá chegar a mais de 107%, dependendo do tipo de atividade. Isso vai desorganizar completamente a economia. Vai aumentar a inflação, o desemprego e deprimir o crescimento.”
O próprio governo, antes reticente, agora está admitindo que as alíquotas podem ser maiores do que o divulgado. O próprio secretário especial para a Reforma Tributária, Bernard Appy, declarou publicamente que o valor final da alíquota dependerá de fatores como a quantidade de exceções previstas na redação final da proposição e o grau de sonegação e elisão.
Mas o problema é justamente esse: entre perder clientes ou amargar com o prejuízo, muitas empresas preferirão partir para a sonegação. Muitos especialistas estão prevendo um aumento considerável da economia informal no Brasil, atualmente por volta de 17% do PIB. “Será a única alternativa”, diz Schuch. “Uma forma de autopreservação. Mas isso será possível apenas para pequenos comércios e atividades, não para grandes escritórios ou empresas. Eles terão um problema gigantesco”.
Para a economia brasileira isso será péssimo, pois países com elevado setor informal na composição do PIB são os que têm economias mais atrasadas, menos tecnológicas e que, no final, crescem menos. Pois não há incentivos para que essas empresas operem à luz do sol, impedindo investimentos, melhorias e até empréstimos bancários.
Bares e restaurantes na fogueira
No segmento de serviços alimentares, como bares e restaurantes, a situação é ainda mais crítica. Além do aumento da carga tributária para os serviços oferecidos, eles deverão somar também o aumento de impostos dos insumos, como alimentos e bebidas, que acabarão encarecendo os preços finais.
“No setor de serviços, a lógica da reforma tributária acaba sendo punitiva”, explica Schuch. “Cria um sistema de créditos e débitos de encargos que permite à empresa ‘jogar para a frente’ o IVA. Algo ótimo para a indústria, que é uma atividade transformadora. Ou seja, o insumo entra na fábrica com o imposto já calculado em cima de seu valor, ele é trabalhado, e sai da planta com o imposto repassado para o comerciante. É este último, e eventualmente o cliente final, que tem que se virar”.
Muitos bares e restaurantes sequer recuperaram os prejuízos provocados pelo período em que foram forçados a ficar fechados durante a pandemia de covid-19. Os últimos dados divulgados pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) mostra que apenas 36% das empresas do setor tiveram lucro em 2023. Além disso, 41% estão com dívidas em atraso, principalmente em relação a impostos federais (77%), impostos estaduais (46%) e encargos previdenciários (36%). Um aumento de impostos neste momento seria um golpe de misericórdia.
Na reforma aprovada pela Câmara estão previstas isenções e reduções de alíquotas de até 60% para setores como saúde, educação, transporte, produção cultural, entre outros. “Todavia, os números e os setores deverão ser definidos por lei complementar, aprovada em outro momento”, diz Szelbracikowski. “Não existe nem mesmo um texto dessas leis complementares para análise pública. Ou seja, não há certeza alguma de que essas reduções da carga tributária ocorrerão de fato. E isso vai aumentar a insegurança jurídica”. Ele prevê uma “enxurrada de processos judiciais”.
Se o Senado não alterar profundamente a reforma tributária, os pequenos comerciantes, donos de restaurantes e bares, empresários do setor de beleza e outros empreendedores do setor de serviços terão suas atividades mortalmente golpeadas.
Um destino que ressona aquele dos kulaques de quase um século atrás. Em um país onde o presidente diz que “ser chamado de comunista é motivo de orgulho”, o futuro deixa poucas esperanças de prosperidade para esses milhões de brasileiros.
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O interesse desta maldita esquerda é manipular a sociedade para seus fins maléficos.
É isso aí, quem produz e trabalha com suor e afinco todos os dias ,gerando imposto e riqueza para a classe privilegiada e que vive no bem-bom , atrás de suas mesas protegidas com painéis de policarbonato, com ar condicionado, gordos salários e benesses, e com nojo do povo simples e trabalhador.
Uma reforma votada a toque de caixa onde os parlamentares foram presenteados com 7 bi do orçamento secreto e sequer tiveram tempo hábil para tomarem conhecimento do que estavam votando, embora nem todos sejam familiarizados com economês, não é reforma.
O texto aprovado não fixa alíquota e elege beneficiários.
Minha interpretação: aos amigos os benesses, aos demais os rigores da lei.
perdoe-me prezado autor desse excelente texto com um trocadilho infame envolvendo o seu nome: siamo tutti incauti!! no caso dos deputados, ganharam os mais de R$7 Bi em emendas (antes conhecidas como “orçamento secreto”. No nosso caso, vamos ganhar inflação, recessão, aumento do dólar e fuga de capitais.
Não sou anarcocapitalista e não acho que imposto é roubo. Mas da forma como ele é cobrado no Brasil é roubo o sim! E com essa reforma tributária do demônio, vira assalto a mão armada!
Parabéns para o italiano pela matéria e assunto que muitos, senão a maioria, não entendeu nadinha de nada, inclusive nossos ilustres e patéticos parlamentares.
Temos a certeza absoluta que a maioria, digo maioria de pelo menos uns 99%, dos nosso ilustres representantes, nem tinham ideia daquilo que votaram, entenderam algo? Nadica e ainda assim votaram em uma proposta feita pelo desgoverno atual e como sempre no lombo do povo – empresários, povo mesmo, etc
Que coisa triste em nosso país, saudades de Paulo Guedes e equipe de profissionais sabedores do que diziam e faziam na área
Meu temor é que o mundo volte à época do Feudalismo, onde todos serão servos de alguns poucos senhores. A inteligência artificial que agora assume o comando de nossas mentes se encarregará de completar o serviço. Logo logo estaremos trabalhando para essa gente, o Estado, para ser mais claro, pra ganhar uma meia de rapadura por dia pelo nosso serviço, que não terá valor algum. Ás vezes penso que no lugar de ficarmos lutando contra os nossos inimigos do peito, os esquerdistas de qualquer seita, deveríamos dar um chega pra lá em nossos distraídos conservadores, que estão sempre dispostos a uma concessão. Esse é o fogo amigo, que nos ferra a todos.
Excelente matéria! Com dados apoiados por especialistas em tributação, preocupação q a extrema esquerda não quer nem saber. O jogo dessa máfia no poder é justamente poder, não bem-estar e prosperidade da sociedade.