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Bandeira do orgulho gay | Foto: Shutterstock
Edição 174

Não há nada progressista na política identitária

Essas pessoas mergulharam tão profundamente na política de identidade racial que agora enxergam a discriminação como igualdade e a igualdade racial como racismo

Tom Slater, da Spiked
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Precisamos parar de dizer que a política identitária — a pauta woke, ou qualquer que seja o seu nome — é progressista. Precisamos parar de nos referir às pessoas que estão revivendo o pensamento racial, misógino e homofóbico — à guisa de ser “racialmente conscientes” e “transinclusivas” — como radicais de esquerda. Elas são tudo menos isso. Essas pessoas são reacionárias e preconceituosas. E passou da hora de começarmos a dizer isso.

Tudo isso ficou bem escancarado na última semana. Primeiro, com a monumental decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de vetar as políticas de ação afirmativa nos processos de admissão nas universidades.

Qualquer pessoa sã sabe que isso precisava acabar. Esse sistema, criado para melhorar as oportunidades dos norte-americanos descendentes de escravos, prejudicados por gerações de opressão, tinha se tornado totalmente disfuncional, beneficiando apenas uma pequena parcela de americanos negros abastados, muitos dos quais são primeira ou segunda geração de imigrantes que, portanto, não têm relação familiar com os males da escravidão e da segregação nos Estados Unidos. 

Pior ainda, ele justificava a discriminação racial mais grotesca. As maiores vítimas disso eram os norte-americanos de ascendência asiática. Muitos deles estavam tirando as notas necessárias para entrar em universidades da Ivy League, estavam muito acima das cotas e, por isso, os burocratas das principais instituições estavam criando medidas cada vez mais racistas e grosseiras para baixar esses números.

Foto: Yuri A./People Images/Shutterstock

Isso levou às contrapartidas mais perversas, que ninguém em sã consciência poderia defender. Como Wilfred Reilly apontou de forma enfática na Spiked, “a ação afirmativa na prática muitas vezes significa o filho privilegiado de um norte-americano de ascendência jamaicana ou de um dentista norte-americano de ascendência colombiana ter uma vantagem de 300 pontos nos resultados dos testes de admissão em relação à filha de um comerciante vietnamita”. 

Ficou flagrantemente claro que essas políticas baseadas na raça estavam tirando a atenção das desigualdades de classe que afligem os norte-americanos de todas as pigmentações de pele — desigualdades que continuam totalmente intocadas nos pequenos ajustes feitos nas vagas das faculdades de elite. Além disso, elas estavam dando uma vantagem a jovens negros e hispânicos ricos em detrimento dos verdadeiramente desfavorecidos.

E, mesmo assim, a reação ao fim desse sistema disfuncional e discriminatório tem sido a histeria entre as elites culturais. A decisão da Suprema Corte foi lamentada pelos ditos liberais, progressistas e até socialistas como uma vitória do “racismo” e da “supremacia branca” — mesmo que seus beneficiários mais imediatos sejam asiáticos.

Claro, a ação afirmativa não foi ideia dos ativistas woke. Como Kevin Yuill destaca, ela foi introduzida por Richard Nixon como uma “solução tecnocrática para tensões raciais”. Mas com certeza se tornou uma política sagrada para a esquerda norte-americana atual, que insiste abertamente, nas palavras de Ibram X. Kendi, que “o único remédio para a discriminação do passado é a discriminação do presente” — e que a ideia de Martin Luther King Jr. de igualdade racial na verdade é uma licença para os racistas.

Foto: Andrey Popov/Shutterstock

Essas pessoas mergulharam tão profundamente na política de identidade racial que agora enxergam a discriminação como igualdade e a igualdade racial como racismo — e uma decisão que insiste que os estudantes sejam avaliados pelo conteúdo de seu caráter, e não pela cor de sua pele, como uma vitória da supremacia branca.

Se você precisava de mais alguma prova de que o antirracismo contemporâneo perdeu completamente o rumo, preste atenção. Essas pessoas hoje são a principal força política que promove o pensamento racial, a consciência racial e até a discriminação racial na vida pública ocidental da atualidade. E, no entanto, de alguma forma, eles ainda conseguem se fazer passar por herdeiros do movimento pelos direitos civis.

Se você é uma feminista que critica as questões de gênero, tudo isso pode parecer vagamente familiar — porque uma fraude quase idêntica tem sido perpetrada por ativistas “LGBT+”. Há anos, os direitos e espaços das mulheres têm sido violados em nome da inclusão trans. Além disso, uma homofobia feroz tem sido desencadeada contra aqueles que ousam insistir que ser gay significa ser atraído por alguém do mesmo sexo, e não da mesma “identidade de gênero”. 

Manifestantes se reúnem no Protesto dos Direitos Trans, em Londres, em 2023 | Foto: Loredana Sangiuliano/Shutterstock

Isso nos leva a um lugar distante dos Estados Unidos e da ação afirmativa, para outra batalha legal — muito menos histórica, mas igualmente reveladora — que acabou de ser concluída no Reino Unido.

Na quinta-feira, a LGB Alliance — a única instituição beneficente no Reino Unido voltada exclusivamente para pessoas atraídas pelo mesmo sexo — conseguiu defender seu status de beneficente em um tribunal. A Mermaids, uma polêmica instituição beneficente voltada para jovens trans, havia feito um desafio legal com o objetivo de retirar os privilégios de instituição beneficente da LGB Alliance, alegando que ela estava “prejudicando o trabalho das instituições beneficentes registradas que trabalham em benefício das pessoas transgênero”.

Na verdade, foi uma tentativa disfarçada de silenciar um adversário de peso. As lideranças da LGB Alliance, elas mesmas veteranas do movimento de libertação gay, são críticas contundentes da ideologia de gênero. Elas tiveram a coragem de expor a homofobia que sustenta grande parte do ativismo transgênero do momento, desde a pressão imposta a crianças gays e em não conformidade de gênero para “transicionar”, até a pressão imposta a lésbicas para se relacionar com homens biológicos que “se identificam” como mulheres e lésbicas.

Publicação da LGB Alliance em comemoração à vitória judicial | Foto: Reprodução/Twitter

Felizmente, o júri não se deixou enganar. A LGB Alliance foi legitimada. E a Mermaids se expôs a acusações de hipocrisia mais do que justas ao reclamar de “silenciamento” por uma instituição beneficente que ela estava ativamente tentando fechar. O tribunal lançou uma luz severa sobre suas próprias práticas. Em dezembro, um inquérito legal foi aberto contra a Mermaids diante das alegações de que a instituição tinha enviado binders para os seios para meninas sem o conhecimento dos pais.

Mas essa vitória teve certo custo. A LGB Alliance teve que arrecadar e gastar 250 mil libras para lutar por sua própria existência — dinheiro que poderia ter sido usado em campanhas. Também foi emocionalmente desgastante em alguns momentos. Em uma das audiências, Kate Harris, cofundadora da instituição, teve uma crise de choro quando lhe pediram para definir o que é uma lésbica. Essencialmente, foi pedido que essa veterana da política dos direitos gays defendesse a ideia de que lésbicas — ou seja, mulheres biológicas que só sentem atração por outras mulheres biológicas — de fato existem. Esse é o tanto que a ideologia trans nos desequilibrou.

Isso que chamamos de “cultura woke”, embora possa se apresentar como progressista e de esquerda, na verdade são apenas ideias preconceituosas e reacionárias sobre raça, gênero e sexualidade maquiadas para o século 21

De forma vergonhosa, essa campanha para fechar uma organização de direitos gays — na verdade uma das poucas organizações que ainda se dedicam aos direitos gays — foi aplaudida a cada passo pelos ativistas “LGBT+”, aqueles que se veem como sucessores dos rebeldes de Stonewall e do Gay Liberation Front. O fato de Bev Jackson, outra cofundadora da LGB Alliance, também ter sido cofundadora do Gay Liberation Front não pareceu afetar seus detratores.

Existe uma ideia entre setores da direita anti-woke e “pós-liberal” no debate político de que a ideologia de gênero é o desfecho lógico do progressismo. Que esterilizar crianças de forma casual e colocar homens estupradores em prisões femininas é apenas o que os esquerdistas sempre fizeram — rejeitar o antigo em busca de libertação, não importando as consequências.

Pessoas na parada do orgulho com bandeiras LGBT | Foto: Natalia de la Rubia/Shutterstock

Sempre considerei isso uma bobagem. Ser de esquerda não significa aceitar quase qualquer mudança radical na organização da sociedade, independentemente do grau de desequilíbrio. Também não há nada de progressista em acreditar que o certo é errado e que 2 + 2 = 5. Tampouco existe algo de libertador na ideologia de gênero — um movimento que foi essencialmente construído pela censura dos dissidentes. Trata-se de uma campanha não pela libertação, mas por validação e reconhecimento.

A verdade é muito mais simples. A saber, isso que chamamos de “cultura woke”, embora possa se apresentar como progressista e de esquerda, na verdade são apenas ideias preconceituosas e reacionárias sobre raça, gênero e sexualidade maquiadas para o século 21. Todas essas acusações de racismo, homofobia e misoginia feitas pelos identitários com cada vez mais fervor nos últimos anos são apenas um grande movimento lamurioso de projeção.

Os adeptos da “cultura woke” podem não perceber, mas, na luta por uma sociedade verdadeiramente antirracista e igualitária, eles se colocam firmemente do lado errado. Do lado que lamenta o fim da discriminação racial nas universidades e luta com unhas e dentes para fechar grupos de direitos gays. Não importa o nome que queiramos dar a essas pessoas, “progressistas” com certeza não é o termo adequado.


Tom Slater é editor da Spiked.
Ele está no Twitter: @Tom_Slater_

Leia também “A misoginia violenta do movimento trans”

5 comentários
  1. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    Só 50 gostei e apenas 5 comentários?

  2. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Outro artigo primoroso

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Sou e continuarei sendo defensor da raça humana.
    Independente de nossas origens pertencemos ao mesmo grupo.
    As escolhas de profissão, opção sexual, ideologia, etc são escolhas pessoais.
    Respeito estas escolhas, mas não vejo necessidade de reconhecer ou bajular simplesmente porque alguém se acha “diferente”. Viva sua diferença e pronto.
    Sobre as pessoas de pele negra: meus antepassados, italianos por parte de pai e espanhóis por parte materna, chegaram ao Brasil entre 1900 e 1920 quando a escravidão já estava abolida.
    Então porque raios eu tenho dívida com essa etnia?
    Na minha família existem todas as classificações identitárias.
    Que cada um viva sua vida que acredita ser a melhor.

  4. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Caro Tom, o Senhor disse tudo o que eu já pensava antes, porém não tinha palavras para expressar isso nem para mim mesmo. Resumindo, eu sempre pensei que esses grandes combatentes do racismo eram na verdade os principais candidatos a racistas. As fichas estão começando a cair.

  5. Marcelo Martins
    Marcelo Martins

    Esse artigo tem tudo a ver também com o recente episódio envolvendo Jean Wyllys e o Governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
    Jean Wyllys atacou Eduardo Leite, um gay declarado, justamente na sua condição de gay, só porque o Governador manteve as escolas cívico militares em seu Estado.
    Esse episódio mostra que o combate ao racismo, à homofobia, só serve se a vítima for de Esquerda. Se a vítima, um negro ou um gay, for de Direita, não é crime. O crime na verdade é até justificado, como o próprio Jean Wyllys demonstrou com suas falas sobre o Governador Eduardo Leite. E não se vê uma declaração sequer dos tais grupos “progressistas” criticando a fala de Jean Wyllys.

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