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Foto: Shutterstock
Edição 177

A farsa do Desenrola

Fantasiado de ajuda social, programa criado pelo governo federal transfere dinheiro para os bancos e estimula o consumo até de quem tem dívidas a pagar

Carlo Cauti
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Os bancos “não têm coração, não têm sensibilidade, não têm humanismo” e “só pensam em lucro”. Essas investidas do presidente Lula contra as instituições financeiras brasileiras marcaram toda a campanha eleitoral e as primeiras semanas depois da posse. 

Milagrosamente, toda essa animosidade desapareceu. Há meses, Lula parou de criticar a Faria Lima, concentrando impropérios apenas contra o Banco Central. Ou melhor, contra seu presidente. Os bancões agora parecem ter se tornado os melhores amigos do inquilino do Planalto. 

O programa de renegociação de dívidas batizado de Desenrola é a maior prova dessa amizade. Fantasiado de ajuda social, foi lançado pelo Ministério da Fazenda em julho. O objetivo, segundo o governo, era diminuir as dívidas e a inadimplência da população. Na prática, o programa funciona como uma transferência de dinheiro para o caixa dos bancos. 

Mesmo sem quitar as dívidas, o nome dos inadimplentes ficará “limpo”. Ou seja, eles poderão pegar novos empréstimos e, dessa forma, gastar mais. Quem garantirá a dívida? O próprio governo, que será um “fiador indireto” das transações. A velha e conhecida fórmula econômica do PT de querer impulsionar o crescimento através do consumo a qualquer preço. 

Para isso, o Tesouro Nacional vai desembolsar R$ 57,5 bilhões com o programa, através de garantias de dívidas não pagas e de renúncias fiscais em favor dos bancos. O valor equivale a mais do que o dobro de todos os investimentos públicos federais em infraestrutura no Brasil realizados no último ano. 

A enormidade desse desembolso de recursos públicos é facilmente explicável: gente demais no Brasil não pagou suas dívidas. Segundo dados da Serasa Experian, mais de 70 milhões de brasileiros estão com débitos atrasados. São cerca de 40% da população adulta com nome sujo na praça e que, justamente por isso, não consegue obter mais crédito e, portanto, consumir mais. 

Foto: Alison Nunes/Shutterstock

“A esperança do governo é que, com o nome limpo, as pessoas aumentem seus gastos, voltem a parcelar as compras, movimentando o setor dos eletrodomésticos, o automotivo, o imobiliário etc.”, explicou Alison Correia, fundador da Top Gain, empresa que atua no mercado financeiro, e autor do livro O Sobe e Desce da Bolsa e da Vida. “Mas as coisas não estão tão bem assim.”

Todo mundo quer o Desenrola

O governo anunciou o Desenrola em parceria com a Federação dos Bancos (Febraban). Todos os grandes bancos aderiram. As cinco maiores instituições financeiras do Brasil — Itaú, Bradesco, Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal —, que somam cerca de 70% do mercado de crédito, anunciaram no mesmo dia que participariam do programa. Banrisul, Daycoval, Inter, PagBank e Pan se juntaram logo em seguida. O Nubank titubeou, mas decidiu aderir depois de uma intervenção do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. 

Para participar do Desenrola, os bancos tiveram que “perdoar” dívidas de quem estivesse inadimplente em até R$ 100. O montante não foi cancelado, mas o CPF do devedor deixou de ficar negativado. Esse foi o único sinal de boa vontade concreto que o Executivo exigiu das instituições financeiras. 

Os bancos foram inundados de pedidos de renegociação. A Caixa chegou a abrir mais cedo suas agências para atender à demanda colossal. Em menos de três semanas, quase 5 milhões de pessoas foram “desnegativadas”, cerca de R$ 5,4 bilhões foram renegociados, em quase 1 milhão de contratos. 

Os problemas do Desenrola começaram nesse momento. O programa, que parecia desenhado em prol dos mais pobres, na verdade já nasceu favorecendo os cidadãos mais abastados. 

arcabouço fiscal
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante um encontro com os presidentes da Câmara, Senado e Banco Central, para ajustes no arcabouço fiscal (23/5/2023) | Foto: Ton Molina/Estadão Conteúdo
Antes os mais ricos, depois os mais pobres

O governo dividiu a população potencialmente destinatária do Desenrola em duas categorias. A “Faixa 1”, pessoas físicas com renda mensal de até dois salários mínimos ou inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Esses cidadãos poderão renegociar dívidas de até R$ 5 mil, sejam de bancos, sejam de serviços. Entram nesse bolão, por exemplo, contas de luz, de financeiras ou empréstimos consignados. As dívidas deverão estar ativas entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022. Exatamente o período do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro. As contraídas anteriormente não serão contempladas. Para a “Faixa 1”, o governo vai desembolsar R$ 7,5 bilhões em recursos do Tesouro Nacional como garantia. Ou seja, mesmo depois de renegociar, se o devedor não pagar, o governo assume o ônus. 

“Se alguém entrar no Desenrola e, mesmo assim, não pagar, quem vai bancar serão os cofres públicos”, salienta Correia. “Ou seja, os nossos impostos. Isso está muito claro.”

No total, cerca de 90 milhões de pessoas estão elegíveis para entrar na Faixa 1 do programa. Só que, para elas, o Desenrola vai começar apenas em setembro. 

O programa começou a valer para os brasileiros que se enquadram na “Faixa 2”: pessoas com renda mensal de até R$ 20 mil. Nesse caso, não existe um limite para o valor das dívidas. Ou seja, o governo iniciou o Desenrola com as camadas mais altas de renda e que, teoricamente, têm dívidas mais elevadas. “Liberamos recursos para o sistema financeiro da ordem de R$ 50 bilhões”, anunciou o ministro Haddad durante a coletiva de imprensa convocada para comentar o início do programa. 

“O programa já inicia como um Robin Hood às avessas”, explicou Enrico Cozzolino, diretor da Levante, casa de análise financeira. “Beneficia em primeiro lugar os mais ricos e sem limites de dívidas.”

O segundo problema é o peso que o Desenrola terá no Orçamento federal. Segundo Alexandre Ferreira, coordenador-geral de economia do Ministério da Fazenda, a cada real que o banco perdoar da dívida de inadimplentes, poderá “ser apurado R$ 1 de crédito presumido, e isso libera espaço para novas operações de crédito”. O crédito presumido é, na prática, uma renúncia tributária do governo. Traduzindo: se o banco perdoar R$ 800 de uma dívida de R$ 1 mil, receberá do governo R$ 800 para emprestar para outras pessoas. Ou, em tese, até para o ex-devedor inadimplente. Já que o nome dele estará “limpo”. 

“É óbvio que quem mais sai ganhando com toda essa operação são os bancos”, explicou Pedro Ávila, analista de bancos na consultoria Varos. 

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Lula | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O economista afirma que todas as dívidas que os institutos de crédito estão renegociando no Desenrola já estão 100% provisionadas. Ou seja, eles já colocaram de lado o mesmo valor da dívida inadimplente, contabilizado como default, na famosa Provisão para Devedores Duvidosos (PDD). Dinheiro, até então, parado em seus balanços. Com o programa do governo, parte desses recursos poderá ser utilizada como novo crédito ou ser distribuída como lucro. 

“Só que quem não pagou uma dívida em 2020 ou 2021 tinha uma taxa básica de juro de 2%”, explica Ávila. “Hoje, se os mesmos ‘desnegativados’ contratarem novos empréstimos, a Selic está em 13,25%. Os bancos vão cobrar, e ganhar, muito mais com as novas operações de crédito.”

Além disso, já que a dívida não é cancelada, existe a possibilidade de os bancos reaverem pelo menos parte desses valores com operações de recuperação de crédito. Outro ganho. E, por último, há também a vantagem dos créditos tributários, que os institutos de crédito vão obter renegociando as dívidas. 

“Os bancos estão ganhando em todas as pontas”, observa Ávila. “É um presentaço. Um presente de pai para filho que o governo está dando aos bancos.”

 “Não podemos confirmar o valor de R$ 50 bilhões”, disse Rafael Baldi, diretor de produtos da Febraban, ao afirmar que a federação dos bancos “não responde pelas decisões do governo”. Mesmo o Desenrola tendo sido elaborado em conjunto com a entidade.

Garantia pública para dívidas privadas

O instrumento jurídico que o governo utilizará para bancar as dívidas não pagas é o Fundo Garantidor de Operações (FGO). Criado em 2009 para complementar as garantias exigidas em empréstimos empresariais, para capital de giro ou para financiar investimentos, o fundo será utilizado de forma inédita para garantir dívidas de pessoas físicas. 

Para poder utilizar o FGO para esse escopo, o governo foi obrigado a mudar a lei, editando uma medida provisória e uma portaria do Ministério da Fazenda, criando o novo “FGO — Desenrola Brasil”. 

Além de ser extremamente oneroso, de ser vantajoso para os bancos e de tirar a responsabilidade dos cidadãos, outro problema do Desenrola é que ele é basicamente inútil

O risco é que o FGO, que hoje conta com R$ 10 bilhões, possa ser drenado quase completamente pelo Desenrola Brasil, deixando as pequenas e médias empresas sem garantias para seus empréstimos. 

Garantir dívidas privadas com recursos públicos tem um efeito colateral diagnosticado pelos economistas há mais de quatro séculos: o risco moral. “O Desenrola traz um risco moral gigantesco”, diz Cozzolino. “A mensagem que passa é a de que vale a pena dever e não pagar, porque chegará o Estado para bancar. O crime compensa. Isso acaba se refletindo na nossa produtividade, que já é baixa.”

“Um dos principais problemas é que se cria um precedente”, afirma Correia. “O devedor sabe que, se o governo já limpou seu nome uma vez, pode fazer de novo. Portanto, ele vai ter menos incentivo para honrar seus compromissos. Os bancos, idem. Poderão emprestar com menos cautela.” O risco é que a inadimplência acabe aumentando, em vez de diminuir. 

“Não é possível os bancos não terem aprendido que não podem emprestar para pessoas que já deram calote no passado”, diz Heverton Peixoto, CEO da financeira Omni. “Não consigo acreditar nisso. Eles deverão rever suas métricas de risco. Mas não podemos excluir nada.”

Presente grande, programa inútil

Além de ser extremamente oneroso para o Orçamento público, de ser vantajoso para os bancos e de tirar a responsabilidade dos cidadãos, outro problema do Desenrola é que ele é basicamente inútil. “Cerca de 70% dos endividados brasileiros têm contas abertas com varejistas, lojas, contas de luz e de gás”, diz Ávila. “Não com bancos. Cada cidadão pode estar negativado em mais de um comércio. São dezenas de milhões de transações. O governo quer tentar juntar tudo em um app e ‘leiloar’ essas dívidas. Será muito difícil, para não dizer impossível.”

Muitos economistas se questionam sobre o real impacto dessa medida na economia brasileira. Em um relatório recente, o Bank of America considerou que os benefícios do Desenrola “serão limitados” Para os analistas do banco americano, a expectativa é que o programa traga um alívio para cerca de 30 milhões de pessoas endividadas e sem acesso a crédito. Mas o impacto direto na atividade econômica será baixo.

Para a corretora XP, o programa não será capaz de “mudar a dinâmica atual decorrente de uma atividade econômica abaixo do ideal, taxa de juro básica ainda em níveis elevados e endividamento das famílias em patamar elevado”.

“Esse é o típico voo de galinha da economia brasileira”, diz Álvaro Bandeira, ex-economista-chefe do Banco Modal. “O governo está tomando uma medida meramente de curto prazo. Tenta estimular o consumo. Mas não é uma política de governo muito positiva. E, principalmente, não é uma política de longo prazo. É uma política de Estado.”

Em outras palavras, o programa não passa de uma sangria enorme para os cofres públicos, um resultado pífio para a economia nacional e um grande presente para os bancos. 

Há alguns meses, Gleisi Hoffmann, presidente do PT, afirmou: “Parem de mimimi. Esse mercado é uma vergonha. Ninguém está passando fome no mercado”. Ela tem razão. Com mais de R$ 50 bilhões na mesa, ninguém vai passar fome na Faria Lima.

Lula Gleisi Hoffmann
Lula e Gleisi Hoffmann | Foto: Ricardo Stuckert/Flickr

Leia também “Petrobras: o PT volta ao ataque”

20 comentários
  1. carlos roberto de moura
    carlos roberto de moura

    Degringola, Brasil!

  2. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Nossa economia já está indo para o fundo do poço, inflação em alta e desemprego também. Como vai desenrolar aluma coisa nesse governo?consumo sustentável?

  3. Gustavo de Carvalho Barcelos
    Gustavo de Carvalho Barcelos

    É uma vergonha.

  4. Paulo Roberto Oliveira
    Paulo Roberto Oliveira

    Bom dia!
    O enrolado que se cuide, uma bomba na economia, anunciada pelo governo. Moral da história, ” o futuro repetindo o passado”.

  5. Enio Lourenco
    Enio Lourenco

    Os PTralhas retribuindo o apóio dos endinheirados da Faria Lima. Abutres, hipócritas. Mas a conta virá. A lei do retorno é suprema e incontrolável.

  6. Marcelo DANTON Silva
    Marcelo DANTON Silva

    Esquece ram. …… das locadoras de veículos é!?!
    Levaram sozinhas toda a grana do incentivo automobilístico….
    Já esqueceram…..vão lembrar quando os impostos aumentar.
    Ou o Brasil quebrar novamente…..PAREM de CONSUMIR! JÁ!!!

  7. Marcelo DANTON Silva
    Marcelo DANTON Silva

    NÃO É só os bancos não…tem um segmento da economia que lucra absurdos….
    As biqueiras… os pontos de drogas…o PCC…o CV…Bolívia…Colômbia….
    Vcs anotem ideia…. Vocês fazem um vaga, pequena ideia do quão é lucrativo a venda de drogas….o pessoal deixa de comer para comprar….depois pedem marmitex nas ruas…a ajuda de 400-600 reais da época da pandemia…..no centro de Sampa…viu-me monte esperando cair o dinheiro e entupir o nariz….30% dessa grana foi para o PCC

  8. Ana Cláudia Chaves da Silva
    Ana Cláudia Chaves da Silva

    Que política vergonhosa. Sempre a mesma fórmula.

  9. Enoch Bruder
    Enoch Bruder

    Esses caras vão ficar agarrados ao poder mais 50
    anos!!! By By Brasil!! O maior canavial de idiotas imbecís da galáxia!

  10. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Vamos pagar as dívidas dos trambiqueiros.

  11. Marcelo Martins
    Marcelo Martins

    Mais um capítulo na falácia de que a Esquerda ajuda os pobres. Na verdade, está ajudando o mercado financeiro, e colocando uma corda no pescoço do pobre, como foi nos governos Lula 1 e 2, quando todo mundo comprou tudo que podia no parcelado, acreditando que a economia iria bombar nos anos seguintes. Mas veio a recessão causada por Dilma e essa turma toda ficou negativada! Agora, o ciclo se repete, e as consequências aparecerão daqui a alguns anos.

  12. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O desenrola virou se enrola pra toda população

  13. PEDRO JAMES DE SOUZA GUEDÊLHA
    PEDRO JAMES DE SOUZA GUEDÊLHA

    Parabéns pela técnica e oportuna matéria, caro articulista.
    Eis por que é bom, saudável e necessário a sociedade poder contar com um veículo de informação livre, corajoso e atuante, de modo a contribuir com informações que desnude as propagandas caras e mentirosa dos governo de planta, sobretudo considerando -se que a atual “dirigente” da Nação é um contumaz amiga da Não Verdade.

  14. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Desde o Estado Novo da era Vargas até os dias atuais o erário é o pai dos pobres e a mãe dos muito ricos.

  15. José Camargo
    José Camargo

    O nome “Desenrola” já é coisa de vigarista.Por si só, já denota a picaretagem da medida.

  16. Edson TC
    Edson TC

    FAIZUELI !!!!

  17. Oldair Dorigon Bianco
    Oldair Dorigon Bianco

    Mas é tudo com amooorrrr.

  18. MNJM
    MNJM

    Nenhuma novidade PT sendo PT, muita demagogia e o benefício como sempre fizeram as instituições financeiras.

    1. Leila marta Vieira Lima
      Leila marta Vieira Lima

      Devemos aprender a controlar nossos impulsos , comprar somente o necessário, não gastar além do que se recebe.

      1. Lauro José Amaral Santiago Ramos
        Lauro José Amaral Santiago Ramos

        O povo estúpido aderindo ao “Desenrola” para pagar mais caro na dívida, depois que fizer o “carnezinho gostoso” da Magalu.

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