Pular para o conteúdo
publicidade
Foto: Shutterstock
Edição 177

Ligação direta com o cérebro

Novas pesquisas devolvem a independência a tetraplégicos e apontam para uma revolução na inteligência humana

Dagomir Marquezi
-

Julho de 2001. Matt Nagle, um atleta da região de Boston, tentou defender um amigo durante uma briga. Recebeu uma facada profunda atrás de sua orelha, que cortou sua medula. Durante três anos ele permaneceu completamente paralisado. Em 2004, concordou em ser cobaia para a empresa BlackRock Neurotech. 

O crânio de Nagle foi aberto, e um chip medindo 4 milímetros por 4, com 96 pinos metálicos, foi instalado na região de seu cérebro responsável pelos movimentos. O chip, chamado Utah Array, começou a mandar os impulsos de sua mente para um supercomputador. Foi o primeiro passo, sem grandes resultados práticos. Apenas o fato de o computador captar os impulsos cerebrais de Nagle foi um enorme salto. O atleta faleceu três anos depois, de infecção generalizada.

***

2004. Nathan Copeland dirigia debaixo de chuva de volta para casa em Pittsburgh, costa leste dos Estados Unidos. Um pneu traseiro saiu da estrada, o carro capotou, e a cabeça de Nathan bateu no guardrail. Aos 18 anos, ele estava paralisado do pescoço para baixo — o que acontece com 18 mil pessoas por ano nos Estados Unidos.

Em 2015, Nathan teve um microchip implantado no seu córtex cerebral. Ficou famoso quando, no ano seguinte, comandou um braço robótico para apertar a mão de Barack Obama e sentiu o aperto do então presidente. Hoje, Copeland é o recordista mundial com o mais duradouro implante cerebral.

YouTube video
***

2011. O holandês Gert-Jan Oskar sofreu um acidente com sua moto e quebrou o pescoço. Foi avisado de que nunca mais poderia andar de novo. Recebeu no Instituto Federal de Tecnologia da Suíça um chip no cérebro ligado ao computador, em um processo chamado “ponte digital”. Quando ele pensa em andar, seu pensamento passa por um computador e chega aos músculos de suas pernas. Neste ano, passou a andar livremente com a ajuda de um andador.

YouTube video
***

2014. Ian Burkhart passava as férias em uma praia do estado da Carolina do Norte. Uma onda mais forte o jogou num banco de areia e fraturou uma de suas vértebras. Ele recebeu um chip e ficou com ele por sete anos, treinando seus impulsos. Uma ameaça de infecção o obrigou a remover o implante. E Ian descobriu que passou a ser capaz de mandar alguns impulsos para seus braços, mesmo sem o chip. De alguma forma, ele passou a mandar seus comandos fora da medula avariada pelo acidente.

***

2017. James Johnson, 43 anos, caiu enquanto praticava paramotoring, uma espécie de paraglider com motor. Quando acordou, descobriu que estava tetraplégico. “Por que você deixou que me ressuscitassem?”, perguntou, desesperado, à esposa. Havia restado para ele alguns poucos movimentos nos braços, nada no tronco e nas pernas, e apenas com um dedo ele conseguia fazer um ligeiro movimento. 

Johnson se tornou uma das 35 pessoas que estão vivendo com uma BCI (brain-computer interface, ou interface cérebro-computador). Matéria de Danny Fortson para o jornal britânico The Times revelou que ele está jogando games complexos, como Call of Duty, usando apenas a força de seu pensamento. Ele também cria obras de arte digitais apenas imaginando o que quer.

YouTube video

Existem hoje pelo menos meia dúzia de startups desenvolvendo BCIs. As prioridades são ajudar os severamente atingidos, possibilitar aos “fechados” se comunicarem e — potencialmente — ajudar os cegos a enxergar. Mas, segundo a matéria do Times, no longo prazo essas soluções poderão fazer parte da vida de qualquer um que implante um terminal no seu cérebro. “Finalmente nos fundiremos com nossas máquinas, nos comunicaremos por telepatia e nos tornaremos super-humanos.”

O ano de 2023, segundo a matéria do Times, marcou a passagem da era dos experimentos para a transformação da brain-computer interface em um produto real à espera da aprovação do USFDA, o órgão oficial dos Estados Unidos. Segundo Marcus Gerhardt, CEO de uma das empresas envolvidas, a BlackRock, a tecnologia desenvolvida já consegue fazer uma pessoa “digitar” 90 letras por minuto, somente usando sua mente. O que a aproxima da capacidade de digitação normal, com os dedos. A conquista é uma grande esperança para aqueles com problemas graves e limitantes, como a esclerose lateral amiotrófica.

Um dos maiores entusiastas dessa tecnologia, como não poderia deixar de ser, é Elon Musk. Ele investiu mais de US$ 300 milhões para criar, em São Francisco, a Neuralink. Sua equipe desenvolveu um robô “que perfura um pequeno orifício no crânio e costura centenas de eletrodos quase invisíveis no tecido cerebral para fornecer um link direto com nossos dispositivos e, no longo prazo, com a inteligência artificial”. 

Segundo Musk, esses procedimentos vão se tornar tão comuns quanto cirurgias a laser para os olhos. Com essa tecnologia, para escrever este texto, seria preciso apenas pensar nele e redigi-lo mentalmente, sem teclado ou mouse. Com o Neuralink, Elon Musk pretende unir o cérebro humano à inteligência artificial, para que os dois processos aconteçam em parceria.

***

2020. Keith Thomas estava se divertindo com amigos e decidiu mergulhar. Sua cabeça bateu no fundo da piscina. Keith apagou. Quando abriu os olhos, estava sendo removido por um helicóptero. Thomas ficou hospitalizado por oito meses e se inscreveu para participar de um experimento no Feinstein Institutes for Medical Research de Nova York.

Os médicos e cientistas mapearam seu cérebro por meio de ressonância magnética para localizar a área responsável por seus movimentos e pelo sentido do tato. O microchip foi implantado em uma cirurgia que durou 15 horas, com o crânio aberto. Também foram instalados sensores em seus dedos para receber os sinais captados pelo cérebro. Segundo Chad Bouton, que desenvolveu a tecnologia batizada de desvio neural duplo, o sistema não só reconecta o cérebro do paciente aos membros, mas também refaz a conexão com a própria medula espinhal. Ou seja, em certo sentido, ele “cura” o dano causado pelo acidente. 

Empresas como Neuralink, BlackRock e Precision Neuroscience batalham para chegar a um ponto em que não seja mais necessário implantar um terminal na cabeça de um paciente para captar os sinais do chip

Nesta semana, Keith Thomas retomou o sentido do tato e alguns movimentos. O primeiro sinal dessa recuperação aconteceu quando ele segurou a mão de sua irmã Michelle. Segundo Chad Bouton, “ao ver o momento em que Keith sentiu o toque da mão de Michelle, acho que não havia nem um olho seco na sala, inclusive os meus”. E sua expectativa é grande: “Se a gente despertar alguns desses circuitos que foram danificados e adormecidos por anos, então o céu é o limite”. Por enquanto, Keith Thomas consegue realizar tarefas mínimas, como coçar o rosto e assoar o nariz. Mas nem isso ele conseguia fazer, o que significa um grande salto.

YouTube video
Inteligência sem fio

Empresas como Neuralink, BlackRock e Precision Neuroscience batalham para chegar a um ponto em que não seja mais necessário implantar um terminal na cabeça de um paciente para captar os sinais do chip. Eles seriam transmitidos sem fio, como em um celular. 

Marcus Gerhardt dá um passo além: o objetivo adiante é não depender de palavras nessa comunicação. O pensamento de uma pessoa, como um arquivo de computador, poderia ser transferido para outra, ou para um computador.

Os avanços estão chegando rapidamente. O primeiro Utah Array tinha 96 pinos de comunicação com o cérebro. A BlackRock anunciou um novo modelo com 10 mil “canais” de integração com o cérebro. E a Neuralink está desenvolvendo um capacete que capta as ondas cerebrais sem ter que implantar o chip dentro do cérebro. Esses cientistas estão libertando o nosso pensamento das limitações de nosso corpo.

Pessoas como Keith, Gert, Matt, Nathan, Ian e James são apenas os pioneiros. Estamos no limiar de uma nova era, que é explicada em números pela matéria do jornal The Times:

“O cérebro humano produz até 1 terabyte de informação por segundo, o equivalente a 40 filmes de alta definição, mas roda a 100 bits por segundo de fala, o que é como um modem dial-up dos anos 1980. Um supercomputador embutido poderia quebrar esse impasse de dados e, ao mesmo tempo, permitir que o cérebro se unisse a uma IA cada vez mais poderosa.”

Ou seja, o cérebro humano é poderoso, mas a comunicação com o mundo exterior continua lenta e limitada. A “parceria” com a inteligência artificial pode nos levar a um novo patamar de evolução.

Leia também “O poder do ‘x'”

2 comentários
  1. Frederico Oliveira dos Santos Melo
    Frederico Oliveira dos Santos Melo

    Muito interessante!

    1. Hans Herbert Laubmeyer Filho
      Hans Herbert Laubmeyer Filho

      Nem o céu é o limite.

Anterior:
Por que o Brasil não tem a sua Apple?
Próximo:
Nefarious e a revolta contra Deus
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.