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Ilustração: Shutterstock
Edição 178

Crise de identidade

Se um homem pode se identificar como mulher, se um branco pode se identificar como negro, então por que um humano não pode se identificar como uma besta animal?

Rodrigo Constantino
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Por que cada vez mais gente tem se apresentado como alguém diferente do que era ao nascer, seja em questão de gênero, seja em questão de etnia? Em muitos casos há claro embuste, como gente que se apresenta como descendente de povos indígenas tendo menos de índio no sangue do que um Jeep Cherokee. Quando vêm à tona, essas farsas produzem algum constrangimento, mas não chegam a abalar a crença em novos picaretas que surgem em cena. O que está acontecendo aqui?

Brendan O’Neill, escritor britânico, trata do assunto em um dos capítulos de A Heretic’s Manifesto, livro corajoso que enfrenta as “vacas sagradas” do pós-modernismo. Há uma tendência crescente de mentiras raciais, de invenções de origens étnicas “exóticas” ou brancos se passando por negros, o que inverte um fenômeno dos tempos de leis racistas contra negros. Isso sem falar da quantidade assustadora de jovens que se “identificam” com um gênero distinto do seu sexo de nascimento. O que explica isso?

O mecanismo de incentivos importa, e não restam dúvidas de que muitos casos miram apenas um oportunismo carreirista, algum ganho imediato, holofotes midiáticos ou uma cartada de vítima para se proteger de algo. Se há privilégios para as “minorias”, se basta ser ou se dizer descendente de um povo indígena para ascender na hierarquia acadêmica, então claro que mais e mais gente vai escolher esse caminho por um simples cálculo utilitarista. Mas não é só isso.

Livro A Heretic’s Manifesto, de Brendan O’Neill | Foto: Divulgação

O buraco é mais embaixo, como explica O’Neill. A política identitária é o credo que mais divide indivíduos, gerando discórdia e grupos de “opressores” e “oprimidos”, num coletivismo que anula a pessoa. E a política identitária está em alta no Ocidente, o que vem gerando essa enorme crise de identidade. São as consequências corrosivas dessa ideologia que explicam tanta gente confusa, sem saber direito quem é e disposta a inventar novas identidades apenas para fugir da realidade, especialmente se fizer parte do grupo mais odiado atualmente: os brancos heterossexuais. 

Eis o fato: no mundo de hoje, algumas etnias são elevadas ao patamar de boas e louváveis, enquanto outras são denegridas. Em qualquer outra época isso seria chamado de racismo, mas, como é um racismo reverso, em que os brancos são demonizados e precisam pedir desculpas em público ou expiar seus “pecados” pelo simples fato de serem brancos, a coisa é tratada de forma natural pelas elites, pela Academia e pela imprensa. O “racismo do bem” é permitido. Ser contra brancos não é preconceito segundo o manual ideológico dominante, já que ser branco é um sinal de privilégio, prova de um passado sujo ou de uma alma tóxica. 

Mesmo que o branco em questão não tenha qualquer parentesco direto com donos de escravos, mesmo que ele não adote qualquer comportamento racista, ele no fundo é parte da casta de supremacistas brancos, e somente se imolando em praça pública, ajoelhando-se perante líderes do Black Lives Matter, ele poderá ser perdoado e aceito. O branco pode não estar consciente de seu racismo, mas ele existe, está internalizado em seu ser, e apenas endossando a doutrina dos “racistas do bem” ele poderá se sentir membro da sociedade.

A política identitária intensificou, portanto, o desafeto dos brancos enquanto simultaneamente imbuiu a cultura negra de um elevado status moral. Se vem do gueto, se tem origem negra, então não pode ser criticado, mesmo que seja um rap tratando mulher como objeto sexual. Se o negro da periferia quiser aprender música clássica, ler os clássicos da literatura, ele estará “agindo como branco” e será condenado por isso. Todo o cânone da cultura ocidental, no fundo, não passa de um legado da supremacia branca, um instrumento de opressão de homens cristãos e heterossexuais. 

Black Lives is Matter
Movimento Black Lives Matter | Foto/Reprodução/Flickr

Alguém fica surpreso, diante disso, com o aumento expressivo de jovens que se identificam com outras etnias, ainda que inventadas, ou que se sentem no sexo errado? Saltos exponenciais de “mudança de gênero” não podem ser explicados por fatores biológicos, claro. É tudo fruto do Zeitgeist, da cultura moderna, da campanha difamatória contra homens brancos. “Eu não sou branco”, “eu não sou heterossexual” ou “eu não sou problemático” parece gritar em desespero um número cada vez maior de jovens. 

Ao mesmo tempo, a esquerda identitária chama de “apropriação cultural” qualquer tentativa de absorção de traços de outras culturas, à exceção dos casos em que a apropriação é da cultura ocidental. Não há nada de errado em alguém admirar a cultura africana ou mergulhar em estudos sobre outras culturas, desde que seja por interesse genuíno. Da mesma forma, não deveria haver nada de absurdo em querer absorver o estoque de conhecimento da cultura ocidental, que nos deu como legado músicas como as de Beethoven ou peças como as de Shakespeare. Mas não é a isso que se refere o fenômeno.

O objetivo tem sido demonizar a cultura ocidental, tida como “branca demais”, e enaltecer as demais, mesmo que claramente atrasadas em vários aspectos humanitários. Aquele que tenta, então, abandonar qualquer traço ligado à sua própria cultura para abraçar traços de outras, muitas vezes, é movido por uma crise de identidade, por um desconforto com seu próprio eu, pela crença de que sua cultura é deficiente de alguma forma. Ele carrega uma marca do pecado pelo simples fato de ser homem branco na era moderna, e isso é insuportável. A política identitária não apenas celebra outras culturas; ela ataca algumas, em especial a ocidental. 

“Conhece a ti mesmo”, dizia o oráculo grego. Era a pedra filosofal do Ocidente. Em vez de existir uma busca interior para conhecer quem você realmente é, em sintonia com a realidade, hoje há um total descolamento da identidade e da vida real

Quando o jovem é estimulado a sentir vergonha de sua herança cultural, ele vai desejar buscar uma nova, ainda que falsa. Antes as pessoas eram definidas de forma mais objetiva, de acordo com seu sexo, sua profissão, sua nacionalidade. Hoje cada um se “identifica” com algo de forma totalmente subjetiva. Não há mais conexão entre o eu e a realidade concreta. 

Tampouco há limite para tal subjetivismo exacerbado: se um homem pode se identificar como mulher, se um branco pode se identificar como negro, então por que um humano não pode se identificar como uma besta animal? Já vemos casos de gente que se “identifica” como algum bicho qualquer. Parece loucura, e é, mas é somente o passo lógico da política identitária em curso. 

“Conhece a ti mesmo”, dizia o oráculo grego. Era a pedra filosofal do Ocidente. Em vez de existir uma busca interior para conhecer quem você realmente é, em sintonia com a realidade, hoje há um total descolamento da identidade e da vida real. As pessoas se identificavam com suas nações, igrejas, trabalhos e famílias, e tudo isso está sob ataque da política identitária. Perdidos, confusos, os jovens partem em busca de qualquer identidade então, de alguma coisa que possa defini-los e, de preferência, algo que não vá criar retaliação social.

Foto: Cristina Conti/Shutterstock

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17 comentários
  1. Lucas Cezar Parnoff
    Lucas Cezar Parnoff

    A primeira vez que tive contato com algum conteúdo de transição de Genero foi com o Anime Japonês do genero Yuri: “Kashimashi ~Girl meets Girl~”, o personagem principal tem uma personalidade bastante introverdita e chorão, porém os gostos dele não se semelham com os meus.
    A questão é que os ALIENS “reconstruiram” o corpo dele, porém só conseguiram com o sexo feminino, DNA 100% feminino neste corpo atual dele, agora ela, assim foi possível imaginar com as ações dela(agora) foram muito bem aceitas pelas próprias garotas do colégio que ele(antes) frequentava, já que ele não mostrava sua masculinidade antes desse acontecimento(com os Aliens), embora as outras garotas comentaram assim: “Se fosse outro garoto nós teríamos chutado(termo aproximado da tradução) pra fora”, o que indicava que todos os outros garotos(bem provável que era só os que elas conheciam), que já mostravam interesse sexual pelo corpo delas, não seriam bem recebidos, caso tivesse acontecido a mesma coisa.
    É bastante Ficção, mas como ficou presente demais esse assunto eu perguntaria:
    Hoje tem como trocar de sexo em 100%? ou:
    Teria alguma forma REAL de um ex-Homem receber uma nova vida em seu útero por outro Homem? ou até assim:
    Teria alguma forma REAL de uma ex-Mulher engravidar uma Mulher?
    Quiserem trocar as expressões “ex-Homem” para “Mulher Trans”, “ex-mulher” para “Homem Trans”, “Homem” para “Homem Sis” e “Mulher” para “Mulher Sis”, pra mim tanto faz, pois a questão não são as perguntas, mas sim as Respostas, até hoje não recebi noticias de que foi possível dar alguma resposta Positiva, para qualquer uma dessas questões que eu escrevi acima, quando tiver alguma positiva, esse assunto começa a tomar algum caminho decente.
    Se alguém perguntar o porquê que não tem de Trans pra Trans, eu respondo com essa outra pergunta e mais uma exclamação assim: Se vocês se amam e os dois tem gêneros diferentes, pra que complicar a vida de vocês? aprendam com suas diferenças e ajudem entre si com suas dificuldades e sejam felizes!

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.
    (Nelson Rodrigues)

  3. Douglas Gonzaga da Silva
    Douglas Gonzaga da Silva

    Parabéns Consta. Excelente texto, direto e certeiro como de costume. Obrigado por ser um farol para a nossa sociedade falida. Deus o abençoe. 🙏🏾🙏🏾🙏🏾

  4. Juliana Carvalho Pereda
    Juliana Carvalho Pereda

    Muito bom o texto! Deveria estar na própria reunião de pais no colégio. Né?

  5. FERNANDO
    FERNANDO

    O mundo está chato e habitado por uma multidão de idiotas com complexo de cretinice!!!

  6. Gilson Herz
    Gilson Herz

    Parabéns Constantino.

    Esse bando de lunáticos se identificam muito como imbecis que são.

  7. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Agora quando tenho de ser atendida em algum estabelecimento fico feliz quando é um branco hétero, porque sei o quanto é difícil para ele sustentar essa vaga no meio de tantos cotistas, logo, deve ser o mais competente.

  8. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Hoje quem é branco,heterossexual, tem profissão e vive às próprias custas sem ajuda do estado está condenado a ser ridicularizado pela maioria da população esquerdista .A vida está difícil.

  9. Elisa Carpim Corrêa
    Elisa Carpim Corrêa

    Excepcional.

  10. Jaques Goldstajn
    Jaques Goldstajn

    Gostei muito: você capta algo que a gente percebe. Só que eu e o meu irmão de qualquer raça sexo definição maioria minoria NEM me passa pela cabeça quando encontro quem quer que seja. Somos terráqueos, por enquanto.
    Qual o interesse de pulverizar grupos identitários? A serviço de que ou de quem? Política.

  11. Ed Camargo
    Ed Camargo

    O ser humano, é a única espécie viva que possui a habilidade de agir como seu próprio destruidor. Já no reino animal, passaros da mesma pena voam juntos, animais da mesma espécie se juntam e vivem com orgulho. Mas o ser humano, depois de ter evoluido dos macacos começou a ter uma crise de identidade, ele realmente não sabe quem ou oque é.

  12. JOSE TADEU MOURA SERRA
    JOSE TADEU MOURA SERRA

    BRILHANTE ,resumindo o texto numa única palavra .

  13. DAILOR FRIEDRICH
    DAILOR FRIEDRICH

    Excelente a sua abordagem em Crise de Identidade. Parabens.

  14. Jose Carlos Rodrigues Da Silva
    Jose Carlos Rodrigues Da Silva

    O mais tolo de todos os erros ocorre quando jovens inteligentes acreditam perder a originalidade ao reconhecer a verdade já reconhecida por outros.Johann Goethe

  15. Abf
    Abf

    Muito celular e pouca enxada.

  16. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Fica muito difícil numa época dessa os povos terem tanta dificuldade para discenir o certo do errado, é como se estivéssemos em um mundo paralelo

  17. Adriana Fossa
    Adriana Fossa

    Falta boletos para essa meninada pagar. Comprometimento. De outra parte, cobranças básicas (ir bem na escola/faculdade, tomar banho e se comportar como gente), passam a ser vistas como repressão. Eu falo aqui em casa, ok, vote em quem quiser, faça o que quiser. Se um dia acordar e se enxergar no espelho, um tatu, lindo, seja um tatu. Agora tem que arcar com o ônus, porque, no meu quadrado, enquanto comer a minha comida, não tem essa.

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