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Henrique Prata, diretor do Hospital do Câncer de Barretos | Foto: Divulgação
Edição 178

‘Na saúde pública, os pobres morrem sem necessidade’

O fazendeiro Henrique Prata, que administra um dos principais centros de referência no tratamento do câncer, o Hospital de Amor de Barretos, explica os desafios da rede pública de saúde no Brasil

Edilson Salgueiro
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Filho de fazendeiros, Henrique Prata descobriu a verdadeira vocação na filantropia, aos 37 anos de idade. Desde 1989, o paulistano com sotaque típico do interior paulista administra um dos maiores centros de referência no tratamento contra o câncer, o Hospital de Amor, também conhecido como Hospital do cãncer de Barretos.

“O projeto existe há mais de 60 anos, quando meus pais tiveram a ideia de iniciá-lo”, diz, referindo-se a Scylla Duarte e Paulo Prata. Naquela época, o casal verificou que metade dos homens do campo com diagnóstico de câncer desistia do tratamento. “Ao observar esse cenário, meu pai decidiu abrir o primeiro centro oncológico do interior de São Paulo”.

Localizado na cidade de 120 mil habitantes do noroeste do Estado, o Hospital do Amor atende as 27 unidades da Federação. Em 2022, por exemplo, a instituição deu suporte a 2,5 mil municípios — aproximadamente 50% dos existentes no país.

De seis anos para cá, Prata administra Santas Casas, Unidades Básicas de Saúde e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) do interior de São Paulo. “Temos mais de 7 mil colaboradores”, diz o fazendeiro. “Há uma equipe de 500 oncologistas clínicos. Ao todo, o corpo clínico tem mais de 800 profissionais.”

O Hospital de Amor, localizado em Barretos, atende as 27 unidades da Federação | Foto: Divulgação

Manter tamanha estrutura custa caro, e há 20 anos a verba destinada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é incapaz de atender às necessidades do Hospital de Amor. “O congelamento dos gastos nas Santas Casas é maligno”, resume Prata, ao afirmar que a falta de apoio resulta na morte dos mais pobres.

Na entrevista, o filantropo conta sua experiência na área da saúde e critica os governos paulistas do passado. Também comenta o livro O Parque dos Lobos — A Medicina Privada do Dinheiro Limitando a Prática da Saúde Pública no Brasil, lançado recentemente, em que denuncia a mazela do Sistema Público de Saúde (SUS) e oferece possíveis soluções para o problema.

O Parque dos LobosA Medicina Privada do Dinheiro Limitando a Prática da Saúde Pública no Brasil é o mais recente livro de Henrique Prata | Foto: Divulgação/Editora Gente

A seguir, os principais trechos da conversa.

O que levou os seus pais a fundarem o Hospital do Amor?

Meus pais se formaram em medicina na Universidade de São Paulo (USP), em 1949. Naquela época, meu pai elaborou uma das teses de doutorado mais importantes da história da USP. Ele percebeu que metade dos homens do campo diagnosticados com câncer rejeitava prosseguir com os tratamentos. Eles tinham medo de tratar a doença em centros urbanos. Ao observar esse cenário, meu pai abriu o primeiro hospital oncológico do interior do Estado de São Paulo. Ele tinha cinco filhos, morava na capital paulista. Mudou para o interior apenas para abrir um hospital capaz de oferecer tratamento contra o câncer para o homem do campo.

Como está o cenário da saúde pública no país, especialmente no tratamento contra o câncer?

A verba disponível não serve nem para pagar o custo do tratamento na oncologia, um dos mais caros da rede pública. Estou há 33 anos nessa gestão. Graças à Lei de Responsabilidade Fiscal para a Saúde, criada pelo ex-senador José Serra, os governadores passaram a investir nas Santas Casas. Isso melhorou os protocolos clínicos. Em 60 anos, apenas esse homem fez alguma coisa honesta para deixar a saúde pública ter as virtudes mínimas necessárias para dar dignidade ao tratamento de câncer. Por meio daquela lei, pagava-se cerca de 80% dos custos do tratamento. Hoje, esse valor chega só a 20%. Em 1989, quando entrei no Hospital de Amor, todos os remédios contra o câncer disponíveis no Brasil eram falsificados. Os medicamentos tinham 20% dos ingredientes que deveriam ter. Quem mudou esse cenário foi Serra, que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os hospitais privados podem comprar remédio em diversos laboratórios. Já o sistema público não tem esse luxo. Mais de 80% da população se trata na rede pública.

Os investimentos na área diminuíram?

Depois do Serra, tivemos congelamento nos gastos. Deve existir uma forma de dar choque na consciência das pessoas, mostrar que os pobres morrem sem ter de morrer. Não há uma Santa Casa com financiamento, com dinheiro para pagar o médico presencial. É tão irrisório o valor que as Santas Casas recebem que não há dinheiro para pagar nada. Todas estão endividadas. O único setor da economia do país que não teve 1% de reajuste em 20 anos foi a tabela SUS. O efeito colateral da ausência de médicos especialistas nas Santas Casas é a morte da população. Não há um remédio nas prateleiras, porque falta dinheiro. Não há especialistas. Quando não havia médicos especialistas na UTI da Santa Casa de Misericórdia de Barretos, morriam quase 50% dos pacientes internados. Quando há esses médicos, o número de mortes cai para 16%. Na minha cidade, Barretos, mais de 200 pacientes deixam de morrer por ano — apenas pelo fato de existirem médicos especialistas ali. O congelamento dos gastos nas Santas Casas é maligno.

São Paulo é o Estado com mais dificuldades?

O Estado de São Paulo tem a maior lacuna entre as 27 unidades da Federação, porque deu prioridade ao financiamento de serviços de média e pequena complexidade. Em vez de criar 20 unidades desses serviços nos centros mais importantes do país, para escoar a enorme fila de pacientes, os tucanos decidiram abrir cem centros. Isso tirou R$ 6 bilhões do Orçamento do Estado. Alocaram essa verba numa medicina secundária, em que ninguém morre. Ainda congelaram o repasse para a medicina de alta complexidade, em que as pessoas morrem. Não há financiamento para comprar um copo d’água. Esses problemas inexistem em outros Estados, como Mato Grosso do Sul, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.

O senhor apresentou esse cenário para o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas?

A primeira pessoa que observou esses problemas e pretende repará-los é o governador Tarcísio. Posso afirmar para a população de São Paulo que ele tem consciência sobre a maneira de corrigir os problemas. Ele tem de colocar R$ 9 bilhões do Tesouro do Estado para financiar o atendimento de 50% dos paulistas. Isso não ocorre há mais de dez anos, porque a medicina privada tem enorme poder em São Paulo.

Henrique Prata administra um dos maiores centros de referência no tratamento contra o câncer, o Hospital de Amor, em Barretos | Foto: Divulgação
A rede pública de saúde recebe mais apoio do Estado?

Ganhei a licitação de um hospital em Bebedouro (SP), de medicina de pequena e média complexidade. Nele, o convênio do Estado me paga R$ 2,4 mil por unidade de terapia intensiva (UTI). Na Santa Casa, que tem convênio com o Estado para o financiamento de UTI de alta complexidade, o valor é de R$ 600 — ou seja, quatro vezes menos. Quem pretende corrigir esses problemas é o governador. Ele já assumiu a responsabilidade. Em 60 dias, vamos receber o mesmo valor pago para outros hospitais.

“Existe a medicina privada, com médicos humanistas; e há a medicina do dinheiro, que vê o paciente como fonte de recursos. Quando vejo esse apodrecimento das instituições filantrópicas, percebo que há interesses financeiros por trás. Eles apostam na falência do sistema público”

No livro, o senhor diz que o sistema público é ineficiente de propósito. Como essa cena acontece?

Quanto mais filas na saúde pública, mais redes privadas surgem. A alternativa foi as clínicas populares, que apareceram como solução para os pobres. Nesses locais, a consulta com hora marcada pode chegar a R$ 60. O exame é R$ 150. A fila no serviço público é resultado de uma medida criada de propósito. Os maiores fundos internacionais aplicam dinheiro nas clínicas privadas populares.

As clínicas privadas populares são um problema?

Existe a medicina privada, com médicos humanistas; e há a medicina do dinheiro, que vê o paciente como fonte de recursos. Quando vejo esse apodrecimento das instituições filantrópicas, percebo que há interesses financeiros por trás. Eles apostam na falência do sistema público. É assim que esses grupos buscam os “clientes” no SUS. Mais da metade da população busca tratamentos no SUS. O governo, por conveniência, acha que está certo. No Brasil, a fila para o tratamento de câncer é de um ano. Não dá para esperar, e o povo acaba morrendo. Esse problema me angustia. Por isso, trilhei o Caminho de Santiago. Foram 730 quilômetros de caminhada, para inspirar e ter humildade. Precisava “vomitar” tudo aquilo que sinto.

No livro, o senhor menciona os “lobos em pele de cordeiro” da saúde brasileira. Quem são esses personagens?

No discurso, muitos políticos falam de melhorar a saúde pública. Na prática, agem de maneira diferente. Há também os médicos que torcem pelo crescimento das filas das Santas Casas, para que os cidadãos migrem para os consultórios particulares.

Se fosse governador, o que o senhor faria para resolver esses problemas?

Primeiro, a correção do financiamento dos serviços públicos. A verba precisa ser igual, tanto para as instituições com gestão própria (Santas Casas) quanto para as instituições públicas. Fui uma das pessoas que pediram a Serra que fizesse o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). Esse serviço é de Primeiro Mundo. O parque tecnológico é avançado, e a medicina é de qualidade. Mas o que acontece? Ele atende 80 mil paulistas por ano. Já as Santas Casas atendem 150 mil pessoas. O Estado financia R$ 800 milhões para o serviço do Icesp e repassa apenas R$ 50 milhões para as Santas Casas. Sem a distribuição igualitária do dinheiro para todas as instituições, como exigir um serviço igualmente qualificado?

O que os leitores vão encontrar em O Parque dos Lobos — A Medicina Privada do Dinheiro Limitando a Prática da Saúde Pública no Brasil?

Será um choque para quem vai ler o livro. Ali os leitores vão entender que os pobres morrem sem necessidade. Os relatos são reais. Minha primeira obra foi despretensiosa — queria apenas contar a biografia do meu pai. Vendemos 250 mil cópias, que rendeu ao Hospital de Amor R$ 150 milhões. As pessoas leram o livro, criaram inspiração e decidiram nos ajudar. Construí um hospital na Amazônia com o dinheiro desse livro. Oito empresários financiaram os primeiros oito edifícios, que, hoje, se fôssemos erguê-los, custariam mais de R$ 200 milhões. A população, ao entender a mensagem do livro, abraçará mais a causa. A mensagem do primeiro livro contagiou um exército. A pretensão desse novo livro é encorajar as pessoas a interferir nos rumos da política e alterar o cenário desfavorável na saúde pública. Essa é a espada adequada para derrubar o touro. Não pode faltar dinheiro para tratar dos pobres, que não têm dinheiro para nada.

“Será um choque para quem vai ler o livro. Ali os leitores vão entender que os pobres morrem sem necessidade” | Foto: Divulgação

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