A vitória — em 16 dos 24 distritos do país — do candidato Javier Milei nas eleições primárias argentinas traz muitos panos para mangas e dá muitos tratos à bola. Surpresa? Tem chances de vencer em outubro? Quem é ele? Quais são as suas propostas? Poderá iniciar um novo ciclo de derrotas para a esquerda latino-americana (e mandar para o merecido brejo os adoradores de ditaduras do Foro de São Paulo)?
Milei, deputado e líder do partido Libertad Avanza, praticamente desconhecido até dois anos atrás, apresenta-se como um candidato representante do libertarianismo, anarcocapitalismo ou anarquismo de mercado, uma corrente econômica defensora intransigente da economia de mercado, que segue a tradição inaugurada por alguns dos precursores da Escola Austríaca, em especial o francês Frédéric Bastiat (1801-1950) e o belga Gustave de Molinari (1819-1912), e que tem como maiores expoentes na economia o norte-americano Murray Rothbard (1926-1995), na filosofia política o alemão Hans-Hermann Hoppe e na política o ex-deputado Ron Paul, pai do atual senador Rand Paul, do Estado de Kentucky e um dos líderes do movimento Tea Party.
Com 30% dos votos, superando as duas forças políticas que governaram o país nas últimas décadas, a saber, o macrismo (Juntos por el Cambio), e a coalizão peronista-kirchnerista (Unión por la Patria), Milei, de 52 anos, tornou-se favorito para vencer as eleições presidenciais de outubro.
Surpresa?
A vitória de Milei representou uma surpresa? Nem tanto, pois ele soube explorar com um discurso firme e forte a enorme insatisfação popular com a inflação de três dígitos, a crise econômica aguda e a pobreza de 40% da população, legados do governo Fernández. Simplesmente, os eleitores argentinos estão cansados das falcatruas — de todos os tipos, intelectuais e financeiras — do peronismo e do seu ramo kirchnerista. Se os resultados das eleições primárias forem confirmados, Milei poderá literalmente sacudir a Argentina, derrotando as forças retrógradas que há décadas dominam a política no país e que o levaram da prosperidade à pobreza, caso consiga cumprir suas promessas de promover reformas fortes e reduzir drasticamente a interferência do governo na vida dos argentinos.
Chance de vitória?
Sua vitória nas primárias não surpreendeu — a não ser a velha imprensa e os militantes que povoam os institutos de pesquisas —, porque pode ser exatamente isso o que os eleitores estão buscando e porque havia motivos para crer que ele era mais competitivo do que as pesquisas mostravam. Pode-se dizer que sua eventual vitória nas eleições gerais é agora um cenário com alta probabilidade.
A característica de Milei, que influencia em particular os mais jovens, é sua postura antiestado e a condenação das elites políticas como “ladrões”, palavra que soa bem nos ouvidos de uma população que deseja mudanças.
Quem é ele?
Formado em economia na Universidade de Belgrano, Milei era colunista de publicações como La Nación e El Cronista e participou várias vezes como analista de economia em programas de televisão. Nessas participações, foi construindo o que viria a ser a base de sua proposta econômica. Passou pelo mercado financeiro e sempre foi um crítico ferrenho das duas principais correntes políticas do país.
De aparência e hábitos um tanto excêntricos, conhecido por muitos como El Peluca (“A Peruca”) devido ao seu penteado pouco convencional, parece saber como impressionar plateias e eleitores, com atos tais como sortear todos os meses o salário que recebe como deputado nacional e declarar-se pai de seus cães, uma matilha de mastins ingleses, a quem chama de “filhos de quatro patas”, batizados com os nomes de seus economistas favoritos: Milton (Friedman), Murray (Rothbard) e Lucas (Robert Lucas). Ainda é cedo, contudo, para afirmar se ele é autêntico ou apenas mais um populista como tantos outros que vêm desde os anos 1940 infestando a Argentina.
Quais são as suas propostas?
Quanto às suas propostas, muitas merecem atenção, não pelo fato de serem tratadas como “polêmicas”, mas porque, caso venham a ser postas em prática, sem dúvida, produzirão mudanças profundas. Vamos resumir em 13 blocos os principais pontos de seu “Plano de governo pragmático para a Argentina”, apresentado no último dia 2 de agosto.
(1) O primeiro bloco consiste em uma reforma do governo, passando de 18 para 8 Ministérios, a saber: Interior, Relações Exteriores, Defesa, Economia, Justiça, Segurança, Infraestrutura e Capital Humano; realocação dos funcionários públicos; forte redução das nomeações políticas; abolição dos privilégios dos funcionários públicos, como guarda-costas e motoristas, exceto nos casos em que forem absolutamente necessários; início de um processo geral de privatização ou encerramento de todas as empresas estatais.
(2) O segundo contempla uma redução significativa dos gastos públicos visando ao superávit; eliminação de 90% dos impostos que apenas arrecadam uma fração de 2% do PIB, mas têm fortes efeitos de distorção; baixa dos impostos restantes.
(3) Flexibilização da regulamentação trabalhista, com redução dos custos de demissão e implementação de um regime privado de seguro-desemprego, com o objetivo de aumentar o emprego formal no setor privado dos atuais 6 milhões de postos de trabalho para 14 milhões.
(4) Liberalização do comércio, buscando o livre comércio unilateral ao estilo do Chile, com a eliminação de todas as tarifas de importação e exportação e a redução da regulamentação.
(5) Reforma monetária, com a permissão do uso de qualquer mercadoria ou moeda estrangeira como moeda legal e a extinção do Banco Central, com a consequente eliminação do peso argentino. O principal plano para essa reforma é o desenvolvido pelos economistas Emilio Ocampo e Nicolas Cachanosky, que prevê um tempo de implantação entre nove e 24 meses, sendo a conversão feita à taxa de câmbio de mercado e, uma vez convertidos dois terços da base monetária, o acionamento de uma contagem regressiva para a última data de conversão.
(6) Reforma energética, com a eliminação de todos os subsídios aos fornecedores de energia, redução de seus custos e melhorias na infraestrutura por um sistema de declarações de interesse público para projetos a serem financiados e executados pelo setor privado, mas com uma garantia mínima de receita por parte do governo.
(7) Fomento ao investimento de longo prazo, com ênfase em mineração, combustíveis fósseis, energia renovável e silvicultura, com eliminação de restrições cambiais e impostos de exportação.
(8) Estímulos à agricultura, com eliminação do spread entre a taxa de câmbio oficial e a de mercado por meio da liquidação do Banco Central; a eliminação de todas as taxas e retenções de exportação e do imposto sobre a receita bruta; a extinção de todas as restrições ao comércio exterior, incluindo cotas e necessidade de autorização; a promulgação de uma nova lei de sementes; e a melhoria da infraestrutura rodoviária por meio da iniciativa privada.
(9) Reforma judicial, com a designação de um ministro da Justiça com o consenso do Poder Judiciário, bem como a nomeação de um ministro do Supremo Tribunal Federal sem filiação política para preencher a presente vaga existente, vedando a participação de membros do Poder Judiciário na política partidária, além da promoção da independência orçamentária do Poder Judiciário.
A imprensa já o está tratando como um “ultrarradical de direita”, termo que aplica a quem quer que não seja de esquerda ou de centro-esquerda
(10) Reforma previdenciária, mantendo os atuais benefícios, porém visando a avançar depois de alguns anos para um sistema privado.
(11) Reforma educacional, com maior grau de liberdade para currículos, métodos e educadores, lançamento de um programa piloto de vouchers escolares e de um sistema de avaliação das escolas para que possam concorrer aos incentivos.
(12) Reforma da saúde, permitindo maior liberdade de escolha e competição, e a disponibilização dos benefícios de saúde existentes em vouchers.
(13) Reforma da segurança, com mudanças nas leis de segurança interna, defesa nacional e inteligência, no sistema penitenciário, presídios público-privados e intensificação da repressão ao narcotráfico.
É óbvio que é impossível comentar em um só artigo todas essas propostas, mas a boa notícia é que isso nos abre um leque de temas para artigos futuros. Mas é perfeitamente possível comentar sobre o que o seu conjunto representa nestes tempos difíceis.
Poderá iniciar um novo ciclo de derrotas para a esquerda latino-americana?
Milei já está incomodando a esquerda, essa esquerda rupestre que caracteriza a América Latina. Certamente, a turma do Foro de São Paulo não está feliz com a possibilidade de sua vitória em outubro. Uma indicação dessa preocupação é que a imprensa já o está tratando como um “ultrarradical de direita”, termo que aplica a quem quer que não seja de esquerda ou de centro-esquerda.
Pode-se discordar do jeitão dele, do tom do discurso, e mesmo de algumas de suas ideias, excessivamente libertárias sob o ponto de vista conservador. Mas a sua mensagem de liberdade, de respeito aos direitos à vida e à propriedade, de aversão ao politicamente correto e de reforma do Estado para colocá-lo a serviço dos cidadãos, tudo isso, sem dúvida, representa uma luz de esperança nesta escuridão que vem tomando conta da América Latina.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
Twitter: @biraiorio
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A idéia de voucher na educação e saúde parecem muito boas.
Torço para que a nossa irmã Argentina saia desse buraco
Será que o Congresso vai deixá-lo governar e aplicar suas medidas?
Combater a LIBERDADE, segundo valor mais intrínseco do ser humano, logo após a própria VIDA, é como bater uma massa de pão, quanto mais os estatistas e usurpadores as combatem, mais este sentimento INATO do ser humano se fortalece e cresce. A Argentina não está somente se salvando, mas abrindo espaço para o rugido de leões e leoas em todo continente.
Mais um excelente artigo, professor!
Tomara que vença e com ele venham mudanças na forma de governar um país.
Alguns representantes da Esquerda brasileira já começam a criticar o candidato Milei, rotulando-o de extrema direita e, consequentemente, de representante do fascismo. Estão preocupados porque se Milei ganhar e conseguir melhorar em 20% a situação da Argentina, já terá valido a pena e ele servirá como exemplo para nós nas próximas eleições. Pelo que li dessas iniciativas acima elencadas, se forem implementadas, representará um choque de 1000 volts na economia Argentina. Tem tudo pra dar certo. Basta os argentinos não terem medo de tentar. Não tentar significa manter tudo como está. E se as coisas continuarem a serem feitas do mesmo jeito de antes, não adianta reclamar que nada muda. As coisas só mudarão se fizerem de um jeito diferente. Milei está oferecendo a oportunidade. Espero que los hermanos tenham a coragem de tentar algo realmente diferente!
O autor do texto deixa bem claro: Milei poderá mudar a cara da Argentina se conseguir implementar suas propostas, mas vai depender muito do Congresso argentino. Macri também veio com um discurso que era maravilhoso, mas com um Congresso dominado pelo Peronismo, não conseguiu implementar seus projetos e de apequenou!
Excelente análise, como sempre.
A luz está chegando para a América Latina
Começar a virar o jogo na Argentina.