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Foto: Bits And Splits/Shutterstock
Edição 179

Quando o dinheiro não vale mais nada

Qualquer pessoa que tenha enfrentado altas taxas de inflação nunca mais vai confiar no dinheiro como reserva de valor

Theodore Dalrymple
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“Depois que alguém é torturado”, escreveu Jean Améry, um sobrevivente da tortura pela Gestapo, “nunca mais é possível se sentir em casa no mundo”. E, de fato, Améry cometeria suicídio mais tarde.

Sem de modo algum desejar equiparar as experiências, eu diria que qualquer pessoa que tenha enfrentado altas taxas de inflação nunca mais vai confiar no dinheiro como reserva de valor. Essa pessoa sabe que o valor real de seu dinheiro pode desaparecer de uma hora para outra; como Marx colocou em outro contexto, tudo o que é sólido se desfaz no ar.

Os efeitos sociais e psicológicos da alta inflação não são triviais. John Maynard Keynes os destacou eloquentemente no livro The Economic Consequences of the Peace (“As consequências econômicas da paz”), escrito em 1919 em resposta ao Tratado de Versalhes, que encerrou a Primeira Guerra Mundial.

Capa do livro The Economic Consequences of the Peace, de John Maynard Keynes | Foto: Reprodução

Uma das consequências da hiperinflação é a proliferação de cédulas de dinheiro. Na minha cozinha na Inglaterra, tenho cédulas emolduradas de várias hiperinflações: a alemã em 1923, a húngara em 1946, a zimbabuana de 2008, entre outras. (Também tenho cédulas emolduradas com retratos de tiranos: adoro cédulas tanto como objetos físicos bonitos quanto como documentos históricos).

Parte da minha experiência de hiperinflação é sul-americana. Eu estava na Bolívia em 1985 quando cometi o erro de tentar trocar US$ 50 em um banco — que sem dúvida valiam mais naquela época, pois a inflação não poupou lugar nenhum, incluindo os Estados Unidos. Tive que voltar ao meu hotel para pegar uma mala para transportar todas as notas que recebi na operação de câmbio. Se eu tivesse sido roubado depois, os ladrões teriam descartado o dinheiro e levado a mala.

Ilustração: Shutterstock

No Peru, durante a hiperinflação, fui tomar chá com um amigo. As ruas estavam cheias de cambistas que agitavam maços de milhões de intis, cada um valendo 1 milhão (ou seria 1 bilhão?) de soles antigos, na esperança de trocá-los por dólares. Não sabíamos ao certo se tínhamos intis suficientes para o chá — de todo jeito, só era possível comprar coisas muito pequenas com eles — e pensamos em trocar algum dinheiro, mas mudamos de ideia. Ainda bem: quando terminamos o chá, o dólar tinha subido 10% em relação ao inti. Teríamos perdido 10% do valor do nosso dinheiro em questão de minutos. 

O impressionante foi que a taxa de câmbio chegou quase imediatamente às centenas de cambistas na rua — e isso foi muito antes da internet e do telefone celular.

Certa vez fui com minha mulher a uma exposição de arte conceitual em Londres. Não sou um grande entusiasta desse tipo de arte, mas a contribuição brasileira nos impressionou tão profundamente que até hoje às vezes falamos disso. 

A obra era uma cobra retorcida, com vários metros de comprimento, feita de cédulas de dinheiro brasileiras conectadas por um fio que passava por elas. Rimos, mas claro que não era engraçado, não para quem tinha que lidar com isso.

Foto: WSY imagens/Shutterstock

Mas até mesmo taxas de inflação muito mais baixas têm efeitos graves. Meu pai, que nunca foi muito interessado em questões financeiras, perdeu grande parte de seu dinheiro para a inflação, porque acreditava que ele se desvalorizaria devagar, e não a uma velocidade maior que as taxas de juros fixas. De uma situação confortável, ele se tornou não exatamente pobre, mas longe de ser próspero.

Sou forçado a especular, ou melhor (no meu caso), a contratar alguém para fazer isso por mim, com um leve receio de que a pessoa faça isso mais em benefício próprio do que para mim

O fantasma dessa inflação persiste. Ela destrói, naqueles que convivem com ela, a ideia de suficiência. Se o dinheiro mantém seu valor, você sabe de quanto vai precisar no futuro, contanto que não seja tomado por um desejo de riqueza cada vez maior. Quanto a mim, estou mais preocupado em evitar a pobreza do que alcançar riquezas: eu ficaria mais do que satisfeito em viver no meu patamar atual pelo resto da vida. Mas como garantir isso em um mundo onde a riqueza pode erodir tão rapidamente?

Sou forçado a especular, ou melhor (no meu caso), a contratar alguém para fazer isso por mim, com um leve receio de que a pessoa faça isso mais em benefício próprio do que para mim. Se eu for especular, a verdade é que posso perder dinheiro; mas, se não o fizer, tenho certeza de que vou perder.

Ilustração: Shutterstock

A inflação funciona como um transvalorizador de todos os valores, para adaptar Nietzsche um pouco. O que era prudência se torna imprudência, e vice-versa. Quando estava na casa dos 20 anos, eu basicamente poderia ter comprado um apartamento bem grande na melhor parte de Londres com um amigo. Em poucos anos, graças à inflação de ativos, o apartamento passaria a valer muito mais que a hipoteca, cujas parcelas teriam sido triviais. Se eu ainda tivesse o apartamento, para muito além dos aluguéis astronômicos que eu poderia ter cobrado nesse meio-tempo, ele hoje valeria mais do que ganhei ou acumulei desde então. Minha cautela em não fazer dívidas, não pedir dinheiro emprestado e pagar com dinheiro desvalorizado na verdade foi uma imprudência, como ficou provado. Espero não soar amargurado quando digo que não pode ser saudável que uma única especulação — nem mesmo uma muito audaciosa e certamente não produtiva — pudesse ter rendido mais do que uma vida de trabalho, ainda que eu tenha conseguido, do meu jeito modesto, me beneficiar da inflação de ativos.

Outro efeito da inflação é que ela aumentou o poder do Estado. Os funcionários do governo conseguiram efetivamente fazer pressão, o que levou a um decreto governamental, para se protegerem dos efeitos da inflação quando todos os outros tiveram que lidar com eles. Não é surpreendente que o Estado proteja os seus. Na Inglaterra, para dar apenas um exemplo, as aposentadorias não financiadas do setor público são — se capitalizadas — equivalentes ao PIB do país todo, o que se soma aos 100% da dívida amplamente reconhecida. Por causa das aposentadorias vinculadas ao índice de inflação, um aumento na inflação só faria crescer o fardo para o restante da população, que não pode se proteger tão facilmente dela.

Para adaptar um pouco o famoso ditado de Lord Acton — de que todo poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente —, poderíamos dizer que toda inflação tende a corromper, mas a alta inflação corrompe absolutamente. A única coisa que se pode dizer sobre isso é que ela pode, de maneira forçosa, aguçar o intelecto de pelo menos alguns daqueles que precisam viver com ela.

Ilustração: Shutterstock

Theodore Dalrymple é pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de 30 livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações) estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.

Leia também “O ressentimento como moeda”

5 comentários
  1. Mariana Bin
    Mariana Bin

    Queria saber que obra de arte brasileira é essa que ele cita no texto “cobra retorcida de cédulas de dinheiro brasileiro”… em breve, poderemos reutilizá-la, tristemente.

  2. Odilon Soares Teixeira da Silveira
    Odilon Soares Teixeira da Silveira

    Sarcasmo até o teto,,,

  3. Rosangela J . Dias
    Rosangela J . Dias

    Adorei o texto. Parabéns.

  4. Danilo Amaral
    Danilo Amaral

    Belo texto. Bela leitura.

  5. FERNANDO A O PRIETO
    FERNANDO A O PRIETO

    A taxa de inflação dá uma idéia do valor REAL dos governos; quanto mais alta ela é, menos eles valem…

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