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Edição 18

O Itamaraty e os rumos da política externa

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, diz em entrevista como o Brasil pretende aproveitar oportunidades com diferentes parceiros comerciais

Cristyan Costa
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“Desconectado da realidade brasileira”, resumiu à Revista Oeste o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ao falar sobre o Itamaraty que encontrou ao assumir a pasta no ano passado. Gaúcho de Porto Alegre, Araújo, de 53 anos, passou mais da metade de sua vida no Itamaraty. Trabalha na entidade há 29 anos e convive com diplomatas não apenas na esfera institucional, mas também socialmente. Ele diz que predominava entre os colegas de carreira uma leitura superficial das tradições diplomáticas — como, por exemplo, a ideia de que o Brasil perderia ao se relacionar com determinados países. Isso impediu a aproximação com Israel e Estados Unidos. Em contrapartida, privilegiou-se o relacionamento com países árabes e a China.

“Essa percepção mudou”, garante. “É possível promover uma relação produtiva com todos os lados.” O ministro também discorreu acerca da reorganização que fez na pasta para, segundo ele, torná-la enxuta e eficiente. Também avaliou o papel da Organização Mundial da Saúde durante a pandemia, destacou as ações do ministério contra o coronavírus, comentou a cooperação Brasil-Argentina e tratou do complicado tema da mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém.

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Araújo falou ainda de uma ação pouco conhecida por boa parte da sociedade, a repatriação de cidadãos que enfrentam situações adversas fora do país. São brasileiros que não conseguiram voltar em razão das medidas restritivas de isolamento social adotadas por governos locais, cancelamento de passagens aéreas por causa do fechamento de fronteiras — como na Austrália — ou dificuldades financeiras para sobreviver sem emprego, já que muitos bares e restaurantes fecharam no mundo todo.

Eis os principais trechos da entrevista.

Como o senhor encontrou o Itamaraty ao assumir o cargo, em 2019?

Assumimos um ministério com muitas secretarias, subsecretarias e departamentos tratando de vários temas, às vezes sob responsabilidade de uma única pessoa. Isso não nos pareceu bom do ponto de vista administrativo. Eram nove secretarias e reduzimos para sete. Também realocamos funcionários [são 1.500 diplomatas] para outros setores. Tínhamos dois departamentos que tratavam de América do Sul, ambos com várias subdivisões. Hoje temos um, para tratar de todos os países do continente. Onde foi necessário, desfragmentamos. Estávamos concentrados na exportação de bens industriais, por exemplo. Porém, precisávamos de um departamento para agronegócio. Nesse caso, criamos uma área específica com esse propósito. De modo geral, estamos conseguindo fazer mais com menos.

O que mudou na gestão dos recursos públicos neste momento de crise?

No ano passado, com tudo funcionando e viagens ocorrendo normalmente, conseguimos cortar cerca de R$ 100 milhões ao fechar embaixadas onde não era necessário e trazer funcionários do exterior para Brasília [em junho de 2019, o ministério fechou cinco embaixadas no Caribe e duas na África]. Queremos ter mais gente aqui e menos no exterior. Manter um funcionário fora é custoso. Portanto, procuramos racionalizar. Neste ano, apesar da pandemia, recebemos uma dotação orçamentária que permitiu fazer voos de repatriação, fretamento de aviões e veículos terrestres.

Como opera o gabinete especializado em ações de repatriação?

Temos cerca de 400 pessoas trabalhando exclusivamente nesse tema — tanto em Brasília como ao redor do mundo. Criamos a central aqui, mas estamos em contato permanente com nossas embaixadas. Em síntese, o trabalho é descobrir onde estão os brasileiros que precisam ser repatriados e prover os recursos para trazê-los. Além de sites oficiais na internet, ampliamos nossa presença nas redes sociais, que foram importantíssimas para que essa operação desse certo. Desde 28 de março, 38 mil brasileiros já retornaram.

“A aproximação com os EUA era vista como risco de perda de soberania”

O presidente Donald Trump tem sido um importante aliado do Brasil, mas os Estados Unidos estão em ano eleitoral e o cenário pode mudar. Já há alguma aproximação do governo brasileiro com o candidato democrata, Joe Biden?

O Brasil se relaciona com o governo que está no poder. Se ocorrer uma mudança de partido, vamos passar a trabalhar a partir das prioridades deles e das nossas. Tudo o que estamos fazendo não é com Trump, mas sim com os Estados Unidos. Acreditamos que, se houver uma mudança lá, os projetos em andamento continuam. A atitude do Brasil mudou em relação aos Estados Unidos. No passado, por exemplo, mesmo quando havia um presidente de esquerda no Brasil e um democrata lá, as coisas não avançavam, porque vigorava um pensamento muito arraigado no Brasil de não fazer negócios com os norte-americanos. Qualquer medida nesse sentido era sinônimo de “perder soberania”. Na verdade, perdemos muitas oportunidades ao longo de décadas.

Que oportunidades serão aproveitadas agora?

O governo brasileiro está estudando projetos na área de ciência e tecnologia. A área de defesa também é um terreno propício para investimentos. Nós nos tornamos aliados extra-Otan e, portanto, isso abre muitas portas para a indústria da defesa brasileira, que está entusiasmada.

E com a China, o relacionamento é amigável?

Sem sombra de dúvida. Além disso, temos um pacto comercial excelente. Insisto em dizer que é uma relação madura. Há uma série de cooperações. Nossa relação é produtiva na área tecnológica, de investimentos e no setor alimentício.

“O acordo com a UE trará benefícios também para as empresas europeias com atuação no Mercosul”

Têm avançado as negociações do acordo entre Mercosul e União Europeia?

Estamos bem avançados na parte jurídica, que deve ficar pronta ainda neste semestre. Queremos que o acordo seja aprovado quanto antes [é preciso que todos os países-membros dos dois blocos assinem]. A Alemanha, que está na presidência da União Europeia, tem muito interesse. Vamos aproveitar isso para ver se conseguimos agilizar as coisas. Vários pontos nos deixam otimistas. É interesse dos europeus, embora haja a impressão de que apenas o Mercosul vai ganhar. A aprovação beneficia empresas europeias que têm investimentos no Brasil, na Argentina e no Uruguai. Sobre a questão ambiental, existe a narrativa em parte da Europa de que o acordo aumentará o desmatamento aqui. Isso não é verdade. Ele também consolida compromissos que o Brasil terá de assumir nessa área.

Sobre a pauta ambiental, leia também o artigo de J. R. Guzzo nesta edição

Os ventos mudaram radicalmente de direção na Argentina. Há possibilidade de uma aproximação com o governo Fernández-Kirchner?

Antes de mais nada, temos uma sociedade com a Argentina dentro do Mercosul que é fundamental. Para nós, o bloco não é simplesmente um nome. Tem de ser um instrumento eficiente de integração na economia mundial. Até o momento, o governo argentino tem tido uma atitude construtiva, ao não sair das negociações em andamento, e isso é favorável. Tínhamos a preocupação de a nova gestão voltar a criar barreiras dentro do Mercosul, como fizeram os Kirchner. No entanto, isso não ocorreu. Estamos prontos para continuar negociando bilateralmente com os argentinos. Em três ocasiões, o presidente Bolsonaro garantiu que está à disposição para se encontrar com Alberto Fernández. Mas esperamos também que a Argentina mantenha o compromisso com a democracia.

Aventou-se, durante a campanha eleitoral, a possibilidade de transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. A medida ainda está no radar?

Está. Continuamos estudando isso. Já tivemos conversas com alguns países da região. Para nós, é importante que, na hipótese de fazermos a mudança, isso não seja interpretado como um gesto abrupto.

“Há uma relação especial entre o Brasil e a Índia. Temos visões de mundo muito próximas”

Quais as prioridades relacionadas à pandemia de coronavírus?

De modo geral: saúde e emprego. No Itamaraty, procuramos espelhar isso, de modo a facilitar a cooperação internacional em várias dimensões: obtenção de vacinas, equipamentos de proteção individual e capacitação de pessoas — tudo em conjunto com outros ministérios. Na parte econômica, mais do que nunca precisamos do comércio exterior. Redobramos os esforços da Apex [Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos], que está fazendo um trabalho magnífico de identificar novos mercados para investimentos aqui no Brasil. O ministério enxerga que está ocorrendo uma mudança na cadeia global de valores. As empresas estão redistribuindo seus investimentos, que não mais ficarão concentrados na China e nos Estados Unidos, mas também em outros países.

Houve alguma outra medida importante no combate à pandemia?

Nossa atuação diplomática tem produzido bons efeitos. Foi graças ao diálogo e ao bom relacionamento que conseguimos insumos para a hidroxicloroquina vindos da Índia num momento em que o mundo estava querendo esse material e tinha dificuldade para conseguir. Há uma relação especial entre o Brasil e a Índia. Tenho conversado bastante com o chanceler indiano e compartilhamos visões de mundo muito próximas. Quanto aos Estados Unidos, a mesma coisa. Graças à excelente relação que temos com o governo norte-americano, conseguimos a doação de 2 milhões de comprimidos de cloroquina, mais mil respiradores. Em muitos casos, foi importante a nossa atuação para facilitar as compras de equipamentos da China, por exemplo.

De que forma o Itamaraty avalia a atuação da Organização Mundial da Saúde?

Reconhecemos a importância da OMS, mas achamos que a instituição teve uma atuação que deixou a desejar desde o começo da pandemia. Houve muito ruído quanto a recomendações para evitar contágio, precauções, medicamentos ou tratamentos que funcionam ou não. Isso causou confusão ao redor do mundo. Pensamos que uma organização dessa natureza tem de ter transparência, mostrar como são formuladas essas recomendações, entre uma série de outros fatores.

Qual marca o senhor gostaria que sua gestão deixasse?

Fazer do Itamaraty parte do Brasil. Um instrumento do povo. Trazer o Brasil para dentro do Itamaraty. E pôr o Itamaraty dentro do Brasil.

15 comentários
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  6. Jamicel Francisco Rocha Da Silva
    Jamicel Francisco Rocha Da Silva

    Excelente entrevista!

    Continuem no mesmo molde, pois a entrevista com o Ministro do Meio Ambiente também foi ótimo!

    A gestão atual do Itamaraty é pragmática e assim deve continuar!

    1. Jamicel Francisco Rocha Da Silva
      Jamicel Francisco Rocha Da Silva

      ‘ótima’

    2. Cristyan Costa

      Caro Jamicel, obrigado pela leitura e pelo comentário. Grande abraço, amigo

  7. Jose Manuel Lima
    Jose Manuel Lima

    A Diplomacia Brasileira, esta muito bem representada..
    Hoje estamos vendo um Itamarati , trabalhando pelo Pais. c um relacionamento diplomático jamais visto.
    Parabéns pela bela entrevista e ao Ministro Ernesto Araújo

  8. Francisco Ferraz
    Francisco Ferraz

    Olá Cristyan, parabéns pela matéria!
    Minha sugestão é que a Oeste promova outras entrevistas com MInistros de Estado do governo JB, para que possamos nos interar do que está sendo feito e possamos também divulgar.
    Como sabe da imprensa lixo é que não sairá nada nesse sentido…ou se sair, será deturpando os fatos e induzindo as pessoas às conclusões que só a eles próprios interessa!
    Assim acho que a Oeste poderia sim ir nesse caminho!
    Fica a sugestão! Obrigado!

    1. Cristyan Costa

      Pode deixar, Francisco. Também vou anotar sua sugestão. Grato pela leitura e pelo comentário. Abraços

  9. Geraldo Lamounier
    Geraldo Lamounier

    Excelente entrevista!!! Parabéns pela divulgação destas informações, a maioria das pessoas tem uma visão arcaica do Itamaraty.

  10. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Cristyan, entrevistas como esta são esclarecedoras até para cidadãos simpatizantes deste governo, porque revelam a competência e o longo trabalho de ministros indicados por Bolsonaro e não pela velha classe política. Muito importante este espaço da revista oeste, que nos revela as ações desenvolvidas por um ministério severamente combatido pela imprensa tradicional, pela classe politica esclerosada e por jornalistas incendiários. Penso que seria muito importante após entrevistas com ministros deste governo, convidar para debate ex ministros que os desqualificam, como neste caso, o ex relações exteriores de FHC e Lula, Rubens Ricupero e Celso Amorim.

    1. Cristyan Costa

      Antonio, obrigado pelo comentário e pela leitura. Vou considerar sua sugestão, amigo. Forte abraço

  11. Ruy Quintão
    Ruy Quintão

    Gostei das posições do entrevistado: objetido e sem firulas. E, principalmente, da franqueza acachapante de levar o povo para o Itamaraty e trazê-lo para o Brasil. Parabéns.

    1. Cristyan Costa

      Feliz que tenha gostado da entrevista, Ruy. Abração

  12. Alex Dall Osso Minissi
    Alex Dall Osso Minissi

    Excelente entrevista!
    A diplomacia é fundamental para a inserção definitiva do Brasil no concerto das nações prosperas!!
    Foi uma área atacada pelo lulopetismo e seus agentes que destruiram a mística da diplomacia brasileira, tão respeitada no exterior!!
    A campanha do Sr Celso Amorim e asseclas contra o Brasil no exterior é abjeta e mostra claramente o quão apátridas esses seres são!
    O Barão do Rio Branco deve estar descansando em paz novamente!

    1. Cristyan Costa

      Grato pelo comentário, Alex. Abraços

  13. Anselmo Cadona
    Anselmo Cadona

    Ótima entrevista, muito importante termos este contato com os ministros.
    Parabéns a Revista Oeste pelo excelente trabalho.

    1. Cristyan Costa

      Obrigado, Anselmo. Forte abraço

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