Procura-se um inimigo

— Você curte futebol feminino?

— Curto.

— Como assim?

— Ué? Curto. Gosto.

— Só isso?

— Não entendi.

— Te achei um pouco tímido.

— É. Sou tímido.

— Não, te achei tímido pra falar de futebol feminino.

— Por quê?

— Só você pode dizer por quê. 

— Não tenho nada pra dizer.

— Sei. O famoso “nada a declarar”.

— O que você quer que eu diga?

— Você é que tem que querer.

— Mas eu já disse.

— “Disse” mais ou menos, né? Murmurou.

— Não, não murmurei. Você perguntou se eu curto futebol feminino, e eu respondi que sim. O que ficou faltando?

— Não fica nervoso. Por que esse ódio pra falar de futebol feminino?

— Estou tranquilo e não odeio futebol feminino. Inclusive já disse que gosto.

— Então prova.

— Hein?!

— Ué, por que o espanto? Se você gosta mesmo, prova que gosta.

— Não tenho que te provar nada.

— Imaginei. É típico.

— Típico de quê?

— Mais um caso típico de preconceito velado.

— Que preconceito?! Você tá delirando, criatura.

— Olha aí. O mesmíssimo padrão: primeiro nega, depois agride. A camada de serenidade do preconceituoso é sempre fina, não tem erro.

— Preconceito contra quem, meu caro? Onde você viu preconceito no que eu falei?

— “Meu caro”. Mais um padrão típico: ódio controlado. Se eu continuar aqui democraticamente tentando tirar a sua máscara com certeza vou acabar sendo xingado.

— Que máscara, amigo? Eu lá preciso de máscara?

— Uso invertido da palavra “amigo” para hostilizar. Mais um sintoma típico de quem se esconde sob a máscara do preconceito.

— Olha quantas acusações você já me fez em tão pouco tempo de conversa: preconceituoso, dissimulado, raivoso, murmurante, mascarado, agressor… Não seria você o agressor?

— Eu tinha certeza que em algum momento você ia se fazer de vítima. É normal em casos como o seu, quando a pessoa se vê diante de alguém capaz de enxergar tudo que ela é (e acha que esconde bem), se vitimizar e acusar o outro de opressor.

— Ok. Desisto. Este diálogo é inútil.

— Não é, não. Pelo menos você aprendeu que é impossível esconder o seu preconceito contra o futebol feminino.

— Você é que deveria provar essa sua acusação paranoica.

— Ok. Vou relevar mais essa agressão e provar o seu preconceito: você acordava às 6 da manhã pra ver os jogos da Copa do Mundo feminina?

— Acordei uma vez.

— Ainda tem a cara de pau de falar “uma vez”! Um momento histórico de afirmação das mulheres como representantes desta nação contra tudo e contra todos, e o sujeito tem a coragem de falar que acordou “uma vez” pra apoiar as nossas guerreiras. Quer saber? Elas entraram em campo contra você!

— Não foi contra a Jamaica?

— A Jamaica e qualquer outro time se tornam imbatíveis se a nossa seleção tem que jogar contra cinco séculos de preconceito e desprezo machista como o seu.

— O futebol feminino já tem cinco séculos?

— Não foge do assunto. Vou te fazer a pergunta derradeira: quem foi Pelé?

— Pelé foi o Rei do Futebol.

— Pronto! Caiu a sua máscara. Pelé foi o Rei do Futebol masculino. Você omitiu essa classificação porque pra você o futebol feminino não existe.

— Existe sim. Apesar de você.

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