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Edição 181

O STF e a liberação das drogas

Os votos dos ministros são indistinguíveis daqueles proferidos pela militância de esquerda mais rudimentar

Flávio Gordon
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“As pessoas mais cruéis são sempre sentimentais.”
(Ernest Hemingway)

No dia 17 de agosto, participou de uma sessão no Senado Federal o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador de pesquisa em álcool drogas da Unifesp. O tema em debate era a liberação do porte de drogas, matéria ora apreciada no STF, mas que o próprio Rodrigo Pacheco — um presidente da Casa de resto destituído de fibra moral e convicções — declarou (inutilmente, por óbvio) ser prerrogativa do Poder Legislativo. Proferidas por um sujeito acostumado a lidar habitualmente com o drama de dependentes de drogas e seus familiares, as palavras do doutor Laranjeira escancaram o abismo entre o mundo real e o mundo ideal dos ativistas de toga, cada vez mais ciosos de suas opiniões próprias e, consequentemente, mais alheios à multiplicidade de aspectos do fenômeno considerado, bem como ao texto da lei. 

O psiquiatra iniciou a sua fala mencionando o quanto o ativismo pró-liberação — financiado por organizações neogovernamentais como a Open Society, de George Soros, impulsionado pela grande imprensa, na qual se destaca a Rede Globo) — contaminou o Supremo Tribunal Federal. Os votos dos ministros são “tecnicamente inqualificáveis”, disse o doutor Laranjeira. “Eu me sinto envergonhado de que as nossas leis sejam baseadas nas pesquisas mencionadas nesses votos dos ministros do STF.” Em seguida, apresentou os resultados de pesquisas de opinião conduzidas tanto entre a população em geral quanto entre especialistas no tratamento de dependentes, ambas as categorias majoritariamente contrárias à liberação, justamente por experimentarem na carne as consequências do consumo.

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O investidor e filantropo norte-americano George Soros | Foto: Reprodução/Flickr

O que o doutor Laranjeira fala acerca dos votos dos ministros do STF é realmente perturbador. Porque, afora a partidarização da corte — cujos integrantes têm adotado uma concepção cada vez mais crua, irracionalista e schmittiana de política, entendida como pura reunião dos amigos contra os inimigos —, o que temos visto ali também é uma total alienação ideológica em face da realidade, um naufrágio num universo de palavras pomposas e autoexibicionismo moral, no qual se destacam chavões sentimentais à guisa de argumentos, tal como os que se esperaria ouvir num centro acadêmico ou assembleia estudantil. Em relação às drogas, por exemplo, os votos dos ministros favoráveis à liberação não parecem muito diferentes dos que eu costumava ouvir nos meus anos de faculdade de ciências sociais, e que giram em torno de uma projetada redução no consumo (e nos danos) e de um imaginário fim do tráfico, ambos cenários utópicos não concretizados nos países que seguiram a trilha da descriminalização (veja exemplos aqui, aqui e aqui).

O psiquiatra Ronaldo Laranjeira | Foto: Marcelo Camargo/ABr

Mas o autoexibicionismo moral e o sentimentalismo pueril têm sido observados na corte já há muito tempo, em relação aos mais variados temas, tornando os votos dos ministros autoidentificados como “progressistas” discursos indistinguíveis daqueles proferidos pela militância de esquerda mais rudimentar. Ocorre que, se relativamente inócuo quando presente nas palavras de ordem da militância arraia-miúda, o sentimentalismo passa a ser um grande problema quando advindo de altos magistrados, titulares do temerário poder de consagrar a própria visão sentimental de mundo em normas constitucionais. 

Lembro-me, por exemplo, da postura dos ministros do STF quando, na disputa presidencial de 2018, a Justiça Eleitoral tomou uma série de medidas para coibir a recorrente propaganda irregular pró-Haddad e anti-Bolsonaro dentro de universidades públicas ao redor do país, conforme determina a Lei nº 9.504/1997. Na ocasião, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, não gostou das medidas e entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF, solicitando a imediata reversão da decisão dos juízes eleitorais. Deferindo a ADPF, a ministra Cármen Lúcia suspendeu liminarmente as medidas, alegando que as universidades “são espaços de liberdade e de libertação pessoal e política” e que “pensamento único é para ditadores. Verdade absoluta é para tiranos. A democracia é plural em sua essência”.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, no STF, em 2017 | Foto: Carlos Moura/STF

Os outros ministros a acompanharam, repetindo as mesmas platitudes e generalidades, sem jamais considerar a realidade concreta. Dias Toffoli defendeu “o livre exercício do pensar, da expressão e da manifestação pacífica”. Ricardo Lewandowski afirmou que “a presença de policiais nos espaços acadêmicos afronta a autonomia universitária e a liberdade de manifestação do pensamento que a Constituição garante aos professores e estudantes”. E, emulando o conhecido gesto de Pedro Calmon, então reitor da UFRJ no conflagrado ano de 1968, quando barrou policiais na entrada da Faculdade de Direito com as palavras “policial só entra na universidade se fizer vestibular”, o ultraexibicionista moral Luís Roberto Barroso declarou que “polícia só deve entrar em universidade se for para estudar”.

Belas frases de efeito pairando num éter de princípios abstratos desconectados da realidade. Porque, num contexto de décadas de sequestro da universidade pública por partidos de extrema-esquerda que a utilizam como feudo privado, falar genericamente em “democracia plural” e “livre exercício do pensar” é como omitir-se por anos a fio ante as agressões cometidas pelo forte contra o fraco e, no justo instante em que este último reage, passar a pontificar abstratamente sobre a importância do princípio da não violência. Ou como dizer “não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento” no ato mesmo de censurar sob os argumentos mais frágeis.

Pedro Calmon, ex-ministro da Educação | Foto: Domínio Público

Ora, antes de ter sido desautorizada pelos magistrados no Olimpo, a Justiça Eleitoral agia justamente para tentar corrigir a situação aberrante criada por décadas de imposição de uma tirania do pensamento único de esquerda na Academia, há muito transformada em comitê político e eleitoral de partidos como PT, PCdoB, Psol, entre outros. Decerto por partilharem desse mesmo pensamento único, os ministros ativistas sequer cogitaram a hipótese de pousar no solo da realidade para verificar por conta própria o que acontece com quem, em não sendo de esquerda, resolve exercitar a sua “liberdade no pensar e de expressar ideias” dentro de uma universidade brasileira. Sua pieguice retórica foi tudo menos inofensiva nesse caso, pois mascarava a decisão injusta de, sob o pretexto de garantir a pluralidade de ideias, chancelar justamente o contrário: a imposição violenta de um pensamento único dentro do ambiente acadêmico.

Recordo-me também de outra manifestação exemplar desse estado de espírito hiperbólico e infanto-juvenil, desse emocionalismo exacerbado e autocomplacente por parte de ministros da nossa Suprema Corte. Também em 2018, durante o 1º Congresso Internacional de Direito e Gênero promovido pela Fundação Getulio Vargas, o magistrado iluminista onipresente Luís Roberto Barroso — o ministro que tinha ideias, assim como a fada da história — fez a sua habitual propaganda pró-aborto: “A mulher não é um útero a serviço da sociedade. Se os homens engravidassem, esse problema já teria sido resolvido”.

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Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), discursa em evento da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 13 de julho de 2023 | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Lendo a declaração na imprensa, lembrei-me imediatamente de já ter ouvido esse discurso. Mas não o encontrara na obra de Rousseau, Voltaire ou Diderot. Tampouco nos escritos de algum eminente jurisconsulto contemporâneo, mesmo dos mais progressistas. Não, um argumento muito parecido com o de Barroso havia sido vocalizado pelo grupo Putinhas Aborteiras, uma banda de rock amadora formada por militantes feministas adolescentes, cuja performance circulou nas redes sociais há alguns anos. Sobre a melodia de For He’s a Jolly Good Fellow (“Ele é um bom companheiro”), as moças cantavam o seguinte verso: “Se o papa fosse mulher. Se o papa fosse mulher. Se o papa fosse mulher [pausa dramática]… O aborto seria legal”.

Terminam-se as preliminares e já é tempo de medir resultados. Notam-se muita propaganda e um sinuoso rumo político, junto com a inútil tentativa de fechar contas com gastos inchando

Começamos este artigo citando um psiquiatra. E quero encerrá-lo citando outro, talvez porque, a meu ver, o cuidado do psiquiatra para com o próximo (o seu paciente) seja o que de menos sentimental poderia haver. No livro Podres de Mimados: As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple mostrou bem a relação entre o sentimentalismo e a prática da injustiça. Perdendo a clareza dos limites entre e o permissível e o não permissível, o sujeito sentimental utiliza as próprias emoções exacerbadas como poder de pressão sobre os outros, intimando-os a uma concordância forçada e, em caso negativo, submetendo-os a uma condenação moral implacável. Nas palavras do autor:

“O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade.”

Theodore Dalrymple
O psiquiatra e escritor britânico Theodore Dalrymple | Foto: Reprodução/Flickr

Quando vemos um ministro da Suprema Corte pensando e expressando-se como militantes adolescentes sobre um tema tão sensível quanto o aborto (e, de fato, sobre tudo o mais), não podemos deixar de concluir que o país se acha num poço civilizacional sem fundo, entregue a um estado caótico não muito diferente daquele retratado no romance O Senhor das Moscas. Isso porque o sentimentalismo consiste na manifestação de emoções desordenadas, que conduzem à autopermissividade, à húbris, à irresponsabilidade e, como corolário, à prática da injustiça. Ali onde o cargo exige temperança, o que temos visto é bazófia e desprezo aristocrático pelo bom senso comum. Ali onde se espera autoconsciência e maturidade moral, o que se vê é bovarismo e infantilidade.

Não faz muito tempo, aliás, que Francisco Rezek, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal e juiz da Corte Internacional de Justiça da ONU, declarou que, em relação aos seus atuais colegas, “há um excesso de autoridade convivendo com a escassez de leitura”. Confesso não saber se o problema em tela é falta de leitura ou excesso de leitura de má qualidade. Parece-me que o problema maior é uma completa falta de senso de realidade. Lendo muito ou pouco, o fato é que, para além do problema em si do ativismo judicial, os nossos magistrados pensam mal. E, como já dizia Blaise Pascal: “Travaillons donc à bien penser. Voilá le principe de la morale” (“Esforcemo-nos, portanto, para pensar bem. Eis o princípio da moral”).

Leia também “Os deuses da democracia defensiva e a inversão moral”

8 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    O STF, atualmente, é composto em sua maioria por uma quadrilha.

  2. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Diante do que nos descreveu Flavio, aos 78 anos e assustado com nossa democracia, penso quem são os autores iluminados de uma BATIDA MUSICAL(sofrível) chamada “RAP DA DEMOCRACIA”. Assustadora e nada democrática que destila ódio a mais de 58 milhões (no mínimo) de bolsonaristas democratas, assim nos contempla sua letra:
    “Na hora da verdade a democracia fala mais alto” “Soberania e força popular: tem que respeitar”. “Liberdade de expressão não é licença para espalhar mentira, ódio, golpe e desavença”. “Democracia é conquista, não é sorte. Pode recuar que a consciência aqui é forte”.
    Flavio, você pode nos oferecer um artigo a respeito, informando os “recursos públicos” que o TSE esta consumindo para propagar em todos os meios de comunicação há mais de 2 meses, e o autor dessa obra musical?

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse Barroso tem que saber que o homem não é cavalo-marinho pra engravidar. Esse STF se fosse só pra dizer o que é constitucional ou não já não prestava pela própria constituição infinitamente prolixa e dicotômica ainda tem as hermenêuticas de cada um e esse Barroso em particular tá mais pra cavalo de carroça, simplesmente ridículo

  4. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Temos a pior composição de suprema corte do mundo

  5. Nilson Octavio Campos Lobo E Silva
    Nilson Octavio Campos Lobo E Silva

    Obrigado, Gordon, teus artigos são enriquecedores.

  6. Oldair Dorigon Bianco
    Oldair Dorigon Bianco

    Maior ajuntamento de párias corruptos que já se viu na face da terra.

  7. Sandra rego barros
    Sandra rego barros

    Barroso e sua prepotência.. não tem postura de ministro, discursando em centro acadêmico, uma vergonha

  8. Joviana Cavaliere Lorentz
    Joviana Cavaliere Lorentz

    Fui aluna do Barroso em um MBA de direito econômico. E ele com total tranquilidade, como se fossem favas contadas, ao tratar de sociedades beneficentes ele equiparou o dinheiro privado ao dinheiro público. Em um passe de mágica penalizou os investimentos privados com regras anômalas ao meio privado e liberou o dinheiro público com as regras só aplicáveis a sociedade civil (tornou o dinheiro público em dinheiro privado) isso sob os aplausos e conivência de uma turma formada no que tem de pior no estudo do direito.

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