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Maíra Botelho, ex-secretária de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde | Foto: Isac Nóbrega/PR
Edição 182

‘A doação de órgãos precisa ser um ato voluntário’

Maíra Botelho, ex-secretária de Atenção Especializada à Saúde, fala sobre o caso do Faustão e explica como funciona o atual sistema de transplantes no Brasil

Evellyn Lima
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O transplante de órgãos voltou a ganhar o noticiário no Brasil em agosto deste ano, quando o apresentador Fausto Silva recebeu um novo coração no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Faustão estava internado com insuficiência cardíaca desde o dia 5 daquele mês — o que levantou uma série de suspeitas sobre como o apresentador havia conseguido o órgão “tão rápido”.

Dados do Ministério da Saúde mostraram que, neste ano, mais de 50% dos pacientes receberam transplante de coração num prazo de até três meses. O país tem o maior sistema público de transplantes do mundo, com lista única para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) e da rede privada.

A polêmica do caso do Faustão parecia ter acabado, até que sua mulher, Luciana Cardoso, e seu filho, João Guilherme Silva, foram ao Congresso Nacional pedir apoio para o projeto de lei (PL) do “doador presumido de órgãos”. O PL nº 1.774/2023 propõe que todos os cidadãos brasileiros sejam considerados doadores, a menos que declarem, no documento de identidade, que não o desejam. Ou seja, em vez de o cidadão declarar que quer ser doador, ele precisa declarar que não deseja doar.

Maíra Botelho, ex-secretária de Atenção Especializada à Saúde (Saes) durante o governo de Jair Bolsonaro, discorda que seja necessário mudar a legislação. Conselheira de administração do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, ela atuou no Ministério da Saúde e tem duas décadas de carreira no serviço público. “A nossa legislação é bastante consolidada para a doação e para o transplante”, diz Maíra. “A doação presumida foi uma experiência muito ruim no Brasil.”

Na década de 1990, a Lei de Doação Presumida gerou receio em parte da população, que temia ser morta para que seus órgãos fossem retirados. Muita gente lotou instituições de saúde para se declarar como “não doadora” no documento de identidade. Dessa forma, em vez de aumentar a doação, a lei incentivou que as pessoas se declarassem não doadoras. A lei de 1997 foi alterada para outro projeto, o nº 10.211, de 2001, que trouxe ao cenário atual: a família tem a palavra final sobre a doação, podendo recusá-la. 

Em entrevista a Oeste, Maíra Botelho conta detalhes sobre como funciona o Sistema Nacional de Transplantes, assim como quais melhorias precisam ser feitas. Ela também falou sobre o funcionamento e os principais problemas do SUS. Confira os principais trechos da entrevista.

Maíra Batista Botelho | Foto: Clauber Cleber Caetano/PR
A senhora acredita que a atual legislação do Brasil quanto à doação e ao transplante de órgãos precisa mudar?

A nossa legislação é bastante consolidada para a doação e para o transplante. A doação é totalmente voluntária, expressa pelo consentimento do doador no seio familiar. Por isso a gente fala tanto e trabalha em tantas campanhas de divulgação e esclarecimento todos os anos. A doação presumida existe em alguns países, mas tivemos uma experiência muito ruim no Brasil. A gente tinha um registro de doador de órgãos que era feito no RG. Essa experiência não foi positiva. Não tivemos nenhum avanço. 

“O que precisamos melhorar é a efetivação da doação. Temos potenciais doadores, mas temos ainda uma recusa muito grande. É preciso haver a conscientização da população, para que essa doação seja efetivada” 

Quem defende a mudança na legislação fala sobre a vontade da família não se sobrepor à vontade do possível doador. Precisamos de mudanças em relação a isso?

Acho pouco provável que a vontade de doar, expressa em vida, seja contrariada. Não há uma recusa da família com vontade expressa do possível doador. O que falta é essa conversa, que hoje costuma ser um tabu. Ninguém se senta para discutir e para falar sobre essa vontade. É como a morte: a gente não se senta para discutir o que ela é, porque dá medo. E o medo ainda está bastante presente no seio familiar para que se discutam assuntos tão complexos e cheios de estigmas. 

O que precisa ser feito para que haja mais doações de órgãos para transplantes no Brasil?

O que precisamos melhorar é a efetivação da doação. Temos potenciais doadores, mas temos ainda uma recusa muito grande. É preciso haver a conscientização da população, para que essa doação seja efetivada. Muitas vezes temos o potencial doador, mas a família não consente. A doação precisa ser um ato voluntário. E há, ainda, a doação em vida; o transplante com doador vivo, no caso do rim, por exemplo. A doação tem que ser abordada de uma forma muito especial, por uma equipe multidisciplinar. Os profissionais que trabalham na abordagem familiar precisam de treinamento para que essa doação seja efetivada.

A doação é totalmente voluntária, expressa pelo consentimento do doador no seio familiar | Foto: Shutterstock
A dimensão continental do Brasil impede que mais transplantes sejam feitos? 

A distância pode dificultar, mas não traz grande impacto. Contamos com o apoio da Força Aérea Brasileira (FAB) no Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Quando há essa dificuldade, a FAB é acionada, e a gente consegue fazer o transporte do órgão de avião. Muitas vezes, por condição logística, o primeiro receptor mais compatível não pode receber. Mas, se o segundo receptor mais compatível da lista está mais próximo, ele pode receber. Então, não há perda desse órgão.

Mais da metade dos pacientes receberam transplante de coração em até três meses neste ano. Desde quando o Brasil trabalha nessa velocidade?

É tudo muito ágil. O transplante de coração depende de alguns fatores, como o tipo sanguíneo. No caso específico que a mídia vem tratando, do Faustão, o grupo sanguíneo dele é B. É um sangue raro, então há poucos receptores na lista. Isso facilita e agiliza o processo de doação. A partir de 2018, a gente avançou muito. Durante a pandemia, o Brasil não suspendeu a atividade de transplante. No início, tivemos uma redução. Mas mantivemos a atividade, com a elaboração de vários documentos e diretrizes técnicas para gerenciamento do risco sanitário. Reduzimos a doação no início, por causa do risco, principalmente para o transplante de córnea. Mas continuamos fazendo, enquanto muitos países reportaram a quase suspensão da atividade.

A senhora considera o Sistema Nacional de Transplantes eficiente? 

É muito eficiente e tem uma lista que é gerada e informatizada em todo o país, em todas as centrais. Temos 26 centrais estaduais, mais uma do Distrito Federal, todas interligadas. O Ministério da Saúde tem uma Central Nacional de Transplantes que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. Ela faz toda a gestão e a logística da distribuição. A gestão do sistema informatizado gera a lista do receptor e faz a ligação entre doador e receptor, além de acionar a FAB, que participa da logística. É uma experiência positiva, muito capilarizada e de grande complexidade. Mas a própria arquitetura do sistema precisa evoluir, a integração desses dados também. Temos a oportunidade de melhorar o sistema de informação para o pós-transplante. Hoje, são poucos os dados de pós-transplante, de acompanhamento do paciente. No ano passado, lançamos um programa, chamado QualiDot, que premia os melhores resultados assistenciais no processo de doação e transplante. Promovemos essa troca de experiências e essa competição saudável entre eles, para que possam ser ressarcidos não só pelo número, mas pela qualidade do transplante realizado e pelo incentivo à doação.

Qual é a sua visão sobre o SUS?

Os princípios do SUS são fantásticos — de promover saúde com integralidade assistencial, com equidade. Mas o desafio é grande e diário de implementação, porque é preciso articular diversos interesses e níveis diferentes de governança, para gerir o sistema. É um sistema com um bom desenho, mas que carece de muito aperfeiçoamento. Os modelos de pagamento precisam ser aprimorados, precisamos de eficiência nos gastos, e alocar melhor os recursos públicos. A articulação federativa e o financiamento são os maiores desafios, pelos custos que o sistema tem. E a relação com o Legislativo precisa de constante aprimoramento. Nós temos um excesso de legislação, um excesso de políticas desnecessárias. É preciso trabalhar bastante esse arcabouço regulatório. Há uma fragilidade na definição de competências em todos os níveis.

Foto: Shutterstock

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3 comentários
  1. Indignado
    Indignado

    O problema, no atual governo, é que a FAB encontra-se dedicada quase que exclusivamente a transportar a nomenklatura petista. E que se dane o transporte de órgãos…

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O que alguém desse governo disser é mentira. Ninguém acredita em uma só palavra dita por essa mulher. Me diga o que presta nesse governo que só tem gente incompetente e ladrão. Basta olhar pra esse Lula

    1. Indignado
      Indignado

      Pelo que entendi , ela fez parte do governo anterior.

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