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Imigrantes em um barco navegando no Mar Mediterrâneo | Foto: Alejandro Carnicero/Shutterstock
Edição 184

A crise migratória na Europa

Diferentemente do que acontecia no passado, quando os imigrantes procuravam viver conforme os costumes locais, hoje boa parte deles não busca uma assimilação da cultura e dos costumes europeus

Carlo Cauti
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“A imigração pode ser a força que provocará a dissolução da União Europeia.” Esse foi o diagnóstico de Josep Borrell, alto representante para a Política Externa do Bloco Europeu, numa recente entrevista sobre a crise migratória que a Europa vem enfrentando nos últimos anos — e que se agravou dramaticamente em 2023.

Segundo um relatório da agência de fronteiras da União Europeia (Frontex), nos primeiros sete meses deste ano o número de imigrantes que atravessaram o Mar Mediterrâneo e desembarcaram no litoral europeu aumentou 115% em relação ao mesmo período de 2022. Foi o maior índice desde 2017. 

As autoridades europeias estão preocupadas com o risco de que esse êxodo aumente drasticamente nos próximos meses. “Se não fizermos nada, poderão chegar milhões de pessoas que já estão no norte da África”. O alerta foi lançado por Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana, durante um pronunciamento televisivo nesta semana.

Georgia Meloni Itália
Primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, em entrevista coletiva: “A Itália é o único porto para refugiados” | Foto: Reprodução/Twitter
Crise social, econômica e de identidade

Para muitos europeus, os imigrantes são sinônimo de aumento da criminalidade, de mais gastos públicos em programas sociais e de uma perda da identidade nacional em seus próprios países. Isso porque os estrangeiros são cada vez mais numerosos; e os europeus “nativos”, cada vez menos. 

Em 1993, a Itália tinha menos de 500 mil estrangeiros em seu território. Cerca de 1% do total da população. Hoje, 30 anos depois, são quase 6 milhões de habitantes estrangeiros. Cerca de 10% da população. 

Sem contar o número de imigrantes de segunda ou terceira geração. Ou seja, filhos ou netos de imigrantes que adquirem a cidadania italiana depois de alguns anos. Diferentemente do que acontecia num passado recente, quando os imigrantes procuravam viver conforme os costumes locais, hoje boa parte deles não busca uma assimilação da cultura e dos costumes europeus. Por exemplo: na imprensa europeia aparecem com cada vez mais frequência notícias sobre escolas primárias que decidiram cancelar celebrações de Natal para não ofender “a sensibilidade de alunos muçulmanos”. 

Os imigrantes geram em média mais filhos do que os europeus. Na Espanha, um a cada três recém-nascidos é filho de estrangeiros. Na Catalunha, a porcentagem é de 39,4%. Na cidade de Salt, perto de Gerona, é de 75%. Mas os nascimentos totais do país estão no menor nível desde a Segunda Guerra Mundial. 

Há cidades na Europa onde os moradores estrangeiros já são maioria em relação aos nascidos naquele país. Na francesa Aubervilliers, na periferia de Paris, formalmente 40% da população é estrangeira. Mas os números reais devem ser muito maiores, já que grande parte dos imigrantes é irregular. Portanto, não registrados. Mesma coisa na italiana Castel Volturno, perto de Nápoles. 

Por último, o peso para os cofres públicos. Um cálculo recentemente publicado na França indica um custo de 54 bilhões € (cerca de R$ 290 bilhões) por ano em gastos sociais com migrantes. Sem contar os custos não contabilizados de segurança pública, alimentação, educação etc. Muito mais do que os 38,5 bilhões € gastos para a construção de casas populares, por exemplo. 

“Depois de anos em que sofremos uma imigração maciça de países do norte da África, hoje temos na França milhões de pessoas que não foram assimiladas”, disse Nicolas Bay, eurodeputado do partido Reconquista. “Eles não se sentem franceses, mesmo tendo o passaporte francês. E, na realidade, odeiam a França, detestam a civilização cristã e europeia.”

A França hoje tem cerca de 67 milhões de pessoas. Estima-se que cerca de 10 milhões sejam muçulmanos. Mas não há dados oficiais sobre esse fenômeno, pois pelas leis francesas é proibido perguntar raça ou religião no censo. 

No caso do aumento da insegurança, na Itália cerca de 34% dos crimes são cometidos por imigrantes. Uma porcentagem que aumenta para 50% no caso de furtos e assaltos.

Grupo de refugiados sírios atravessa fronteira para chegar à União Europeia | Foto: Ajdin Kamber/Shutterstock

“Este ano registramos uma explosão de violência em junho, contra a polícia, contra as escolas, contra a administração pública”, disse Bay. “Mas a razão dessas brutalidades, na verdade, é a recusa dos imigrantes a se integrarem na sociedade francesa.”

Não por acaso, a crise migratória está se tornando o tema principal da campanha para as eleições europeias de junho de 2024. Exasperados pelos efeitos negativos em sua vida cotidiana, os cidadãos europeus estão votando cada vez mais em partidos de extrema direita, cujo lema é “fora os imigrantes”. 

Na Alemanha, o partido Alternativa Para a Alemanha (AfD) não existia antes do começo da crise migratória, em 2011. Hoje controla mais de 10% dos assentos no Bundestag, o Parlamento federal alemão. É decisivo nos equilíbrios políticos dos governos das regiões (Länder), e está se preparando para ganhar ainda mais votos nas eleições europeias de 2024. 

Na Itália, o partido Fratelli d’Italia ganhou as eleições de setembro de 2022 e está solidamente no comando do país. No pleito de 2013, ele havia obtido apenas 1,96% dos votos. Hoje, conta com mais de 30% dos consensos. Na França, a líder do partido Reagrupamento Nacional, Marine Le Pen, chegou ao segundo turno nas últimas duas eleições presidenciais. E aumentou em 30% seu patrimônio de votos no período. No Reino Unido, o Brexit ocorreu essencialmente por causa da crise migratória. E os britânicos votaram para sair da União Europeia justamente para poder restabelecer as fronteiras. 

Colapso africano

Nos países do norte da África a situação é de calamidade. Centenas de milhares de migrantes oriundos de países árabes ou africanos estão se amontoando principalmente na Líbia e na Tunísia, prontos para partir em direção à Europa. 

A Tunísia está em plena convulsão social. O PIB de 2023 vai ser negativo. A inflação está fora de controle. O desemprego chega a 16%. E os cofres públicos estão vazios. Apenas isso seria suficiente para incentivar milhões de jovens tunisianos a emigrar. 

Mas o país se tornou uma autocracia governada pelo presidente Kais Saied, que começou a reprimir a oposição, prender jornalistas e demolir o Estado de Direito. Mais uma razão que leva muitos para a fuga. 

Saied também está usando os migrantes para chantagear a União Europeia e obter recursos. Ele já conseguiu centenas de milhões de euros com a promessa de limitar as partidas. Mas almeja valores bilionários. 

Nos mesmos moldes, outro autocrata, o líder turco Recep Tayyip Erdoğan, todos os anos recebe cerca de 6 bilhões € para manter centenas de migrantes sírios dentro de suas fronteiras. Todas as vezes que é criticado por governos europeus por violações de direitos humanos, contudo, deixa alguns milhares de pessoas partir em direção ao litoral grego, para aumentar a pressão. Não por acaso, a Turquia chegou a ser o país com maior número de jornalistas presos no mundo. E a União Europeia continua fazendo negócios com Ankara. 

“A guerra na Ucrânia agravou a situação”, afirmou a deputada italiana Sara Kelany, do Departamento de Migrações do partido Fratelli d’Italia. “A impossibilidade de exportar grãos por parte da Ucrânia e da Rússia aumentou drasticamente os preços dos alimentos. E os países africanos estão entre os mais dependentes dos grãos ucranianos.”

“O Egito é o maior importador de grãos russos e ucranianos”, diz Sara. “Não por acaso, em 2022 o maior número de migrantes econômicos eram cidadãos egípcios. Outro exemplo: 100% dos grãos consumidos na Somália ou no Benin chegam da Ucrânia. E os golpes de estado em vários países africanos são provocados também por essa crise alimentar.”

Racismo de africanos contra africanos

No caso da Tunísia, a situação é ainda mais grave, pois o governo também lançou uma campanha de ódio contra os africanos subsaarianos que chegaram ao país para poder alcançar a Europa. Dezenas de ataques foram cometidos por tunisianos contra migrantes de pele mais escura. O mundo conheceu um novo tipo de racismo: o dos africanos contra outros africanos. 

Na Líbia a situação é ainda mais explosiva. Aliciados por traficantes de seres humanos sem escrúpulos, que recebem entre US$ 10 mil e US$ 15 mil por cada viagem, centenas de migrantes foram trazidos de países como Nigéria, República Centro-Africana ou Chade. Reclusos em antigas prisões no litoral líbio, utilizadas pelo regime de Muammar Kadafi, aguardam que as organizações criminosas encontrem navios disponíveis para a travessia. 

França África
Presidente francês, Emmanuel Macron | Foto: Divulgação
União Europeia não sabe o que fazer

Frente a essa situação, a Europa inteira entrou na modalidade “pânico migratório”. E está respondendo a esse desafio em desordem. 

Na França, o presidente Emmanuel Macron optou pela linha-dura. Militarizou a fronteira terrestre com a Itália, chegando a usar 150 homens das Forças Especiais, para impedir a entrada de imigrantes que atravessam a península italiana para chegar ao território francês. Aumentou as expulsões de estrangeiros em situação irregular. E está enfrentando uma espécie de guerra civil em Mayotte, ilha geograficamente africana, mas politicamente francesa. Quem consegue pisar em suas praias está formalmente em território francês. Por isso, se tornou um ímã de imigrantes. 

Dos 300 mil habitantes da ilha, cerca da metade são estrangeiros irregulares provenientes dos vizinhos Madagáscar e Comores. Macron lançou a operação Wuambushu, enviando cerca de 2 mil homens das forças de segurança com a ordem de demolir bairros inteiros da capital Mamoudzou e deportar pessoas sem documentos. Objetivo: “retomar” a ordem e a segurança em “cem dias”. 

No Reino Unido, o premiê Rishi Sunak optou por algo ainda mais drástico, mesmo sendo filho de imigrantes indianos e casado com uma indiana. Construiu um gigantesco navio-prisão para os ilegais que tentarem entrar no Reino Unido. A prisão flutuante Bibby Stockholm, em operação desde junho nas docas de Portland, tem capacidade para acolher centenas de imigrantes, que logo em seguida são deportados.

O Parlamento britânico também apresentou uma nova Lei da Migração, considerada uma das mais rígidas da Europa. Entre os postos-chave está a proibição vitalícia aos imigrantes que chegam ilegalmente em solo britânico de solicitar asilo político no país. 

Foto: Hieronymus Ukkel/Shutterstock

Além disso, o governo assinou um acordo com Ruanda para enviar clandestinos ao país africano. Independentemente de eles terem vindo de lá. Uma tentativa de desincentivar a imigração de países como a Albânia ou Bangladesh, deixando uma eventual volta para casa muito mais cara. 

Medidas tão draconianas foram recebidas por parte da população britânica com protestos. Recursos apresentados no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos resultaram no cancelamento de alguns voos de repatrio de imigrantes para Ruanda. Mas Sunak decidiu continuar com sua estratégia. 

Aparentemente, não há uma solução rápida para um fenômeno tão complexo como o migratório. A única forma de inibir definitivamente as migrações de milhões de pessoas seria permitir o desenvolvimento econômico dos países de origem

Na Espanha a entrada de migrantes aumentou 25% entre janeiro e agosto de 2023 em relação ao mesmo período do ano passado. A rota migratória ibérica cresceu menos, pois os imigrantes devem passar pelo Marrocos, um país mais organizado do que a Líbia ou a Tunísia, e que impede a entrada em seu território. Mas o terremoto do começo de setembro pode provocar uma nova onda migratória de marroquinos para o território espanhol.

Na Itália, Meloni propôs um plano europeu para bloquear os desembarques. E seu governo estaria cogitando a possibilidade de um bloqueio naval nas águas do Mediterrâneo usando a Marinha Militar. Proposta da campanha eleitoral vitoriosa de 2022, mas muito complicada de realizar por causa das limitações impostas pelo direito internacional e pelos tratados europeus. 

A Grécia fechou os centros de acolhimento temporâneo dos imigrantes e iniciou uma detenção preventiva dos clandestinos. 

Sem solução à vista

Aparentemente, não há uma solução rápida para um fenômeno tão complexo como o migratório. A única forma de inibir definitivamente as migrações de milhões de pessoas seria permitir o desenvolvimento econômico dos países de origem. Mas a instabilidade crônica daquelas regiões e os problemas estruturais até agora impediram um crescimento econômico mais sustentado. 

“O governo italiano está propondo um Plano para a África para uma cooperação não predatória”, diz Sara. “A União Europeia apoia essa ideia. Mas é um projeto de médio e longo prazo. E até lá não podemos absorver todos os migrantes que estão chegando.”

Num clima como esse, muitos livros, filmes e obras de ficção estão mostrando futuros distópicos, onde os imigrantes dominarão os europeus, as cidades serão tomadas pelo caos e a substituição étnica será uma realidade. Como Submissão, de Michel Houellebecq, ou Athena, de Romain Gavras.

O longa Athena descreve os confrontos violentos entre policiais e moradores da periferia de Paris, todos imigrantes africanos ou árabes de primeira ou segunda geração. “Você não entende que a guerra já começou” é uma das frases mais icônicas da película, que foi lançada no fim de 2022. Seis meses depois, casos de violência interétnicas devastaram a capital da França.

Foto: Shutterstock

Leia também “Carro elétrico: uma aposta duvidosa”

5 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Também acredito que o caminho vai ser cada vez mais países saindo da UE.

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Se Lula for pra lá resolve na hora

  3. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    A situação da Europa é trágica, nenhum país do mundo possui condições de abrigar tantos imigrantes Como dar assistência médica, educação e trabalho a massa humana que entra em sua grande maioria de forma ilegal.Na França observei presencialmente a situação de Paris e Marceille há anos atrás. Em Portugal, Lisboa está dominada pelo tráfico de drogas ,dominado pelos romenos. Não existe saída a médio prazo A única forma de aliviar em parte esse problema é acelerar e facilitar o crescimento econômico nos países de origem dos imigrantes, como Cauti relata nesse ótimo artigo.

  4. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Ótimo artigo Carlo Cauti !

    1. Douglas Bizari
      Douglas Bizari

      Excelente matéria Carlo Cauti. É uma pena que a sua Itália esteja nesta situação.

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