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Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) | Foto: Divulgação/ANPR
Edição 184

‘Colocar a Lava Jato sob suspeição é um desrespeito ao Estado brasileiro’

Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República critica decisão do ministro Dias Toffoli de anular o conteúdo da delação da Odebrecht

Cristyan Costa
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“No Brasil, até o passado é incerto”, diz a frase atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Ela se aplica à Lava Jato. Quase dez anos depois do surgimento da maior operação anticorrupção da história do país, a grande mídia e o Supremo Tribunal Federal (STF), apoiados em mensagens roubadas por um hacker de cuja autenticidade a Polícia Federal (PF) duvida, tentam derrubar um legado que mostrou que todos são iguais perante a lei. O establishment insiste na tese segundo a qual um ex-juiz federal e procuradores montaram uma força-tarefa apenas para levar um ex-presidente da República à cadeia, impedindo-o de concorrer nas eleições de 2018 e favorecendo Jair Bolsonaro.

“Pôr a Lava Jato sob suspeição é um desrespeito ao Estado brasileiro”, constatou Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Cazetta critica o mais recente ataque à história da operação: a decisão do ministro Dias Toffoli de anular provas do acordo de leniência da empreiteira Odebrecht, mesmo tendo a companhia se comprometido a devolver mais de R$ 2 bilhões surrupiados dos pagadores de impostos e seus dirigentes confessado crimes. Segundo Cazetta, a canetada vai ter um efeito cascata em outros processos.

Em 6 de setembro, Toffoli invalidou evidências dos sistemas Drousys e My Web Day B — usados pela Odebrecht para registrar pagamentos de propinas a políticos. Segundo o ministro, as provas são “imprestáveis” porque os procuradores do Ministério Público Federal (MPF) teriam acessado os dois programas “clandestinamente”. Toffoli acusou, ainda, a força-tarefa de não formalizar um acordo de cooperação, que deve ser feito pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), vinculado ao Ministério da Justiça (MJ). Documentos que provavam a realização do pedido, porém, já constavam dos autos de um processo, lembra Cazetta, que decidiu entrar com um recurso no STF, via ANPR.

Ubiratan Cazetta | Foto: Divulgação/ANPR

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o senhor analisa a decisão do ministro Dias Toffoli de anular provas do acordo de leniência da Odebrecht?

Negativa. Além de tornar nulas todas as provas obtidas por meio dos sistemas Drousys e My Web Day B, utilizadas com base no acordo de leniência celebrado pela Odebrecht, o ministro determinou a investigação de agentes que atuaram no processo, como os procuradores do MPF. Toffoli mandou, ainda, a União reconhecer “o dano que ela causou”, por meio de seus servidores, e, se for o caso, ela também terá de indenizar quem foi supostamente prejudicado pelos trabalhos desempenhados pela Lava Jato. O ministro tomou uma série de medidas que não foram pedidas pela reclamante — no caso, a defesa do presidente Lula — em uma ação, lembre-se, de 2020; ou seja, não havia nenhum pedido novo no caso.

O que são os sistemas Drousys e My Web Day B, invalidados por Toffoli? Há cópias depois da destruição dos sete HDs que estavam com a PF?

São dois sistemas de controle financeiro usados por ex-executivos da Odebrecht, do “Setor de Operações Estruturadas”. Com esses programas, podia-se operacionalizar o pagamento de propinas a políticos. Resumidamente, são registros de contabilidade da empreiteira. Cumprindo termos do acordo de leniência firmado com a Justiça em 2017, a Odebrecht mandou fazer uma cópia desses softwares, hospedados na Suíça, e a entregou à PF. Com o passar do tempo e a Lava Jato chegando ao estágio atual, os procuradores acharam por bem destruir esses dados. Os documentos originais, contudo, permanecem existindo no país de origem.

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O ministro Dias Toffoli, do STF, que anulou provas da Lava Jato obtidas a partir de delações premiadas de ex-executivos da empreiteira Odebrecht | Foto: Nelson Jr/SCO/STF
O que diz o recurso apresentado pela ANPR ao STF?

Demonstramos que a atuação dos membros do MPF nesses casos já foi objeto de investigação pela Corregedoria do MPF. Não se pode investigar de novo para punir essas pessoas, pois houve inquérito que constatou não haver nada de irregular contra elas. Interpelamos, ainda, a ordem de Toffoli para que a Advocacia-Geral da União (AGU) faça uma análise da conduta de magistrados e membros do MPF. Não é papel da AGU exercer controle interno da atividade da MPF. O Judiciário é independente do Executivo. O controle do Judiciário tem de ser feito por ele mesmo, com os instrumentos à disposição, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça e da própria Corregedoria do MPF. Discordamos também do tópico citado pelo ministro dando poderes à AGU para definir valores de supostos danos ilícitos causados. Volto a lembrar que essas ordens não estão no pedido da defesa de Lula acolhido pelo magistrado.

“Muito se falou que as empresas fizeram acordos porque estavam sob pressão. Sim, estavam, mas pelos fatos. Ninguém faz um acordo se não sente o risco de ter de pagar algo muito maior lá na frente”

O que é o acordo de cooperação entre a Odebrecht e a Suíça, “achado” pelo Ministério da Justiça, depois de a pasta ter dito que não o encontrou?

É um meio de troca de informações entre a PF e as autoridades suíças. Nesse caso, que dizem respeito a questões da Lava Jato. Depois da decisão do ministro, a ANPR emitiu uma nota informando que a apuração tinha sido correta e formal. Enviamos alguns dados à pasta. A partir deles, o DRCI, do Ministério da Justiça, conseguiu fazer a pesquisa e atestou que existiu a cooperação. O que eles alegam para não terem atendido da primeira vez é que não havia nenhuma referência desse pedido com o acordo de leniência ou com o número do processo. Essa informação do DRCI apenas ressalta algo que já estava no processo, inclusive o do presidente Lula. Isso já era do conhecimento de todos.

A mulher do agora ministro Cristiano Zanin assina com ele o processo acolhido por Toffoli. Isso não seria um motivo para a Corte se negar a tratar do assunto?

Não. A ação é de 2020. O máximo que poderia ocorrer é o ministro Zanin ser declarado, automaticamente, suspeito para julgar o caso. Além disso, a ação estava com a Segunda Turma, da qual o novo juiz do STF não faz parte.

Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula e atual ministro do STF | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
A decisão do ministro vai provocar um efeito cascata em outras ações que envolvem a Lava Jato?

Sim. Na ação, o ministro usa palavras fortes para se referir a acordos de delação, como, por exemplo, “tortura”, “pau de arara”, entre outras, que põem sob suspeição toda a atuação da União. O fato de esses termos constarem na decisão de um ministro do STF certamente abrirá margem para rediscutirem-se outros processos sobre a nulidade de qualquer acordo de leniência no país, e não apenas aqueles que foram firmados pela força-tarefa da Operação Lava Jato.

Qual é a opinião do senhor sobre a Lava Jato?

Foram sete anos de trabalho de mais de cem membros do MPF, que renderam um número imenso de processos, vários acordos de colaboração e, sobretudo, a repatriação e devolução de dinheiro roubado. Esse legado precisa ser respeitado. Não podemos banalizar as coisas a ponto de considerar que todo o trabalho realizado foi ilegal. Aceito críticas porque acho que elas ajudam a aperfeiçoar as coisas. Alguns erros ocorreram, mas houve mais acertos, sem sombra de dúvidas. Colocar tudo no mesmo balaio, com acusação de suspeição, de que o trabalho da Lava Jato é fraudulento configura desrespeito ao Estado brasileiro.

Quais são as chances de o Brasil ter, novamente, uma operação anticorrupção da magnitude da Lava Jato?

Poucas, principalmente enquanto não voltarmos a ter critérios para acordos de leniência, definição clara de competências e estrutura de atuação no Executivo. De todo modo, continuaremos a combater a corrupção com a atuação do MPF, em pequenos casos, com os instrumentos que temos. Observo que, ao colocar tudo isso em risco, perde-se força no combate à corrupção. Sobre as delações, especialmente, muito se falou que as empresas fizeram acordos porque estavam sob pressão. Sim, estavam, mas pelos fatos. Ninguém faz um acordo se não sente o risco de ter de pagar algo muito maior lá na frente. Isso não deve ser desprezado. Quando se introduzem elementos de politização no processo penal, este é destruído.

Leia também “O STF está exagerando e queremos que a estabilidade volte”

4 comentários
  1. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    A impressão que temos é a de que o Brasil acabou. Zanin, Dino no STF. Que tal?

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Se o Barroso disse nos corredores do congresso que eleição não se ganha se toma e Zé Dirceu disse nós vamos tomar o poder que é diferente de ganhar eleição e um cara feito esse Tofolli com esse prontuário anula 7 anos de trabalho da lava-jato, pra quê existir outros poderes, eles fazem o que der na telha hermenêutica de cada cafajeste desse

  3. Daniel BG
    Daniel BG

    O país de banânia virou um circo completo, com uma bandinha tocando no fundo, bandinha esta que antes era uma honrada Forças Armadas Nacional.

  4. MARCIO MARQUES PRADO
    MARCIO MARQUES PRADO

    A operação Lava Jato foi ‘desmoralizada’ por vergonhosas canetadas políticas. O Estado brasileiro não suporta aperfeiçoar seus mecanismos de defesa anti-corrupção. Para que serve o MPF, para denunciar ladrão de galinheiro? Pobre Brasil e dos brasileiros de bem, que são muitos, mas não o suficiente para nos alçar, nem ao segundo mundo.

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