No ano 44, no Senado Romano, Júlio César foi assassinado a facadas. No ano de 2016, também num Senado, a Constituição, que acaba de completar 35 anos, sofreu os primeiros cortes. “Olhai, foi no artigo 52 que o punhal de Renan penetrou. Vede este outro rasgão, no parágrafo único, em que Ricardo enfiou sua faca. Observai como o sangue da Constituição escorreu” — poderia escrever um Shakespeare de hoje. Depois vieram tantas outras agressões à nossa Lei Maior, “O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social” — como proclamou o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, brandindo a Magna Carta, em 5 de outubro de 1988. Naquele dia, os constituintes a entregaram aos zelotes do Supremo, para velarem por ela, como os que zelavam pelo Templo de Jerusalém, de onde Jesus expulsou os vendilhões. Os zelotes supremos foram feitos fiéis depositários, como estabelece o artigo 102 da Constituição.
Há 35 anos, o doutor Ulysses, erguendo um exemplar da nova Constituição, lançou uma maldição: “Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina”. Não custa lembrar a permanente atualidade das palavras de Ulysses naquele dia: “A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube — eis o primeiro mandamento da moral pública”.
É a sétima Constituição em 200 anos de Independência e já é a terceira em longevidade. A do Império durou 67 anos, e a primeira da República vigorou por 39 anos, derrubada pela Revolução de 1930. Acompanhei a Assembleia Constituinte pelos 20 meses de trabalho. Na TV Manchete, eu tinha um programa semanal chamado Brasil Constituinte, com a colega Marilena Chiarelli. O programa analisava cada questão à medida que os temas iam avançando. Em 5 de outubro de 1988, às 3h50 da tarde, o Doutor Ulysses levantou-se da cadeira de presidente do plenário da Câmara, ergueu ao alto um exemplar da nova Constituição e proclamou: “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social no Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!”.
O novo presidente do Supremo nega a hegemonia do STF sobre os demais Poderes, mas o fato é que o Tribunal tem legislado, o que é competência do Congresso
Na solenidade de promulgação, todos juraram manter, defender e cumprir a Constituição, inclusive o presidente da República, José Sarney, e o presidente do Supremo, Rafael Mayer — a quem Ulysses saudou como “pessoa austera e modelar”. Hoje, presidentes do Supremo, como os ministros da Corte, são figuras conhecidas, públicas, populares. O novo presidente do STF, ministro Barroso, no seu discurso, resumiu que cabe ao Supremo, além de interpretar a Constituição, preservar a democracia “e promover os direitos fundamentais”. Creio que ele quis dizer defender, respeitar os direitos fundamentais, já que promoções não caberiam numa Suprema Corte. Mas, ironicamente, os direitos fundamentais não têm sido respeitados pelo Supremo, como os de ir e vir, liberdade de reunião, livre expressão do pensamento, vedação à censura, além da inviolabilidade do mandato parlamentar, apenas para citar alguns.
Passados 35 anos, no Tribunal a que a Constituição deu a competência precípua de guardá-la, assume um novo presidente. O novo presidente do Supremo nega a hegemonia do STF sobre os demais Poderes, mas o fato é que o Tribunal tem legislado, o que é competência do Congresso. Isso sem falar na agenda que, no discurso de posse, ele sugeriu para o Brasil, que mais parece um programa do Executivo. E há esse “julgamento virtual” em que o Supremo é parte, pois é vítima; e é primeira e última instância ao mesmo tempo. Faz 35 anos que a Constituição estabelece, no inciso XXXVII do artigo 5, que não haverá juízo ou tribunal de exceção. Vivemos tempos à margem de preceitos fundamentais que foram promulgados há 35 anos. E a Constituição está tão rasgada quanto a toga de César.
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No antigo quarto ano primário eu estudei sobre a Revolução Constitucionalista de 1932. Também aprendi que a mais longa palavra do Brasil era : INCONSTITUCIONALISTISSIMAMENTE.
Alexandre Garcia, esperamos um senado renovado efetivamente em 2026, igualmente poder executivo, e depois conseguirmos um ambiente propício para discussão de uma nova constituição. Inclusive, sugiro acompanhar o caso do Chile, nunca mais li algo sobre.
EXCELENTE TEXTO. PARABÉNS!
Alexandre Garcia sempre esclarecedor com seus artigos.
O próprio Doutor Uliysses proclamou que a Constituição não é perfeita.
E não é.
Ela foi gerada e promulgada um ano antes da queda do Muro de Berlin que alterou toda a geopolítica.
Foi enxertada com artigos que não deveriam estar em uma Constituição como salário mínimo, direito ao lazer, etc.
E para piorar o que temos de bom na atual CF os nossos Supremos advogados togados se encarregam de alterar a seu bel prazer em total afronta ao Congresso.
Vivemos tempos estranhos e a recente posição de enfrentamento do Congresso ao STF deve ser ampliada para o bem da nação.
Ou fazemos isso ou o preço a pagar será muito alto.
Esse Barroso disse que Zé Dirceu tá chantegeando ele por ele ter participado de uma orgia gravada em Cuba. E que é que a população tem a ver com isso. Nós queremos é a soberania da nação
???????????? concordo. Sobre o que fazem fora dos tribunais deveriam dar satisfação aos fóruns competentes quando e se fosse o caso. Mas o que vemos no país é um segurando o rabo do outro com isqueiro na mão pronto pra ser aceso. Assim não dá!
Excelente Alexandre. Os togados ainda tem o desplante de dizer que atuam em defesa da democracia. Muita hipocrisia dos tiranetes.
Alguns ainda entendem como sendo “democracia”, o direito de retirar a liberdade de escolha dos outros…!Josemar Bosi