“Em virtude de sua falta de maturidade física e mental, a criança necessita de proteção e cuidados especiais, incluindo a devida proteção legal, tanto antes quanto após o seu nascimento”
(Declaração dos Direitos da Criança, 1959)
“Uma pequena modificação nas leis civis muitas vezes deságua numa modificação da Constituição. Parece pequena e tem efeitos imensos” — observou Montesquieu nos materiais preparatórios para a redação de O Espírito das Leis. Se isso é verdade quando a modificação se dá pelo caminho regular, via Legislativo, o que dirá então quando é introduzida por quem não é de direito — no caso, magistrados de pendor revolucionário, cujas exegeses de protesto visam a reinterpretar o texto da lei à luz do projeto político-partidário de fazer “avançar a história”? Eis o que se passa precisamente no Brasil de hoje, com essa indecorosa tentativa de legalização do aborto por meio de ativismo judicial, ignorando o Legislativo e a vontade da maioria da população, num daqueles episódios nos quais, quando o fator majoritário não favorece (e esse é claramente o caso do aborto), apela-se à função “contra-majoritária” da Corte.
Com efeito, num contexto de total colapso do princípio da separação de poderes, o voto de Rosa Weber em favor da liberação do aborto mostra quanto a atuação de um único magistrado ativista, por mais intelectualmente medíocre que seja, pode surtir efeitos danosos e anticivilizacionais de amplo alcance, que extrapolam e muito a matéria particular sobre a qual inicialmente se debruça. O arrazoado de Weber é marcado por aquele espírito militante infanto-juvenil e sentimentalista que apontamos em artigo anterior, pouco se distinguindo, afora o acréscimo de tecnicidades jurídicas, de uma retórica feminista padrão, de palanque.
Prometendo olhar para a realidade “a partir da lente da mulher” — e desconsiderando os outros sujeitos de direito envolvidos no fenômeno em tela —, a ministra ora aposentada afirma que “a maternidade é escolha, não obrigação coercitiva”, que “impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas”, e que, “nesse contexto, ao Estado, por conduta negativa, compete respeitar as liberdades individuais da mulher”.
Em seguida, recorre à disposição constitucional sobre a dignidade da pessoa humana para instituir o direito a uma liberdade pessoal irrestrita e inconsequente por parte da mulher. “O processo de conhecimento, formação e expansão da personalidade pressupõe, necessariamente, autonomia para, de acordo com a consciência individual e singular de cada um, realizar as escolhas fundamentais para o desenvolvimento de sua vida. É preciso reconhecer que a autonomia, entendida como a capacidade das pessoas de se autodeterminarem, ou seja, a capacidade dos indivíduos de definirem as regras de regência de sua própria vida particular, consubstancia o núcleo essencial e inviolável do direito à liberdade, em que se inclui a liberdade reprodutiva.”
Encarando a matéria sob a perspectiva de sua própria cultura ideológica de referência, e ignorando o princípio de isonomia no que toca ao direito à vida, Weber nega à pessoa humana em situação intrauterina tudo aquilo que outorga à pessoa adulta da mulher, a começar pela chance de existir, direito humano elementar do qual decorrem todos os demais, inclusive o direito à autodeterminação e à liberdade: “A autonomia, associada à própria liberdade, é, pois, a aptidão para tomar decisões, escolher os caminhos e direções da própria vida, adotar concepções ideológicas, filosóficas ou religiosas. Em outras palavras, definir, sob os mais diversos ângulos, as características básicas e individuais de cada um, bem como o itinerário a seguir, segundo a consciência particular e única em busca do que se considera viver bem, sem a possibilidade de interferências indevidas por parte de terceiros (sejam particulares, sejam do Estado)”. Mas, sendo lógica e cronologicamente anterior a todos os supracitados, o direito à existência é, dentre todos, o que mais deve ser protegido contra “interferências indevidas por parte de terceiros”.
Não há como dissociar o debate sobre o aborto de uma reflexão não apenas sobre direito constitucional e seus fundamentos, mas também sobre a forma e a substância da nossa sociedade política
Ao contrário do que a ministra quer fazer crer à sociedade, o problema em questão vai além do âmbito particular. Obviamente, o aborto não pode ser reduzido a uma questão de decisão individual, na medida em que estamos falando de, no mínimo (excluindo-se da equação, por ora, o pai), uma relação social entre duas pessoas distintas, pois, desde a fecundação, o nascituro já tem DNA próprio e individualizado. Portanto, o aborto diz respeito necessariamente à comunidade política ou à sociedade como um todo. A discussão sobre a sua liberalização implica uma discussão sobre a forma e a substância dessa comunidade política, a concepção das relações entre os seus membros, a natureza do Estado e a antropologia que lhe subjaz, na medida em que, como já dizia Aristóteles, o homem é um animal político.
Como argumenta o filósofo e padre jesuíta Michel Schooyans no magnífico livro O Aborto: Aspectos Políticos, há na retórica dos que defendem a liberalização um truque que é preciso desfazer, e que consiste em restringir o debate a uma discussão sobre a modificação ou revogação de uma lei de caráter penal. Tratar-se-ia simplesmente de descriminalizar a “interrupção da gravidez” (o odioso eufemismo para o assassinato intrauterino) e, como corolário, instituir arbitrariamente um novo direito atribuído à mulher, em total descompasso com os direitos naturais inalienáveis. Mas o que está em jogo é muito mais do que isso, porque não há como dissociar o debate sobre o aborto de uma reflexão não apenas sobre direito constitucional e seus fundamentos, mas também sobre a forma e a substância da nossa sociedade política.
Ao discutirmos sobre a questão do aborto, estamos, ao fim e ao cabo, nos pronunciando sobre o que o Brasil quer ser enquanto nação. Nesse sentido, é importante lembrar o que escreveu o filósofo Leo Strauss em Natural Right and History: “A necessidade do direito natural é tão evidente hoje quanto o foi por séculos e até mesmo milênios. Rejeitar o direito natural equivale a dizer que todo direito é positivo, o que significa que é determinado exclusivamente pelos legisladores e as cortes dos vários países. Ora, é obviamente concebível, e frequentemente necessário, falar em leis e decisões ‘injustas’. Ao fazer esses julgamentos, admitimos haver um padrão de certo e errado independente do direito positivo, e situado acima dele — um padrão em referência ao qual somos capazes de julgar o direito positivo”.
Ao admitirmos que leis positivas (e suas hermenêuticas) possam ser injustas, somos levados a concluir que a ordem legal não esgota as exigências da Justiça. Sendo obra humana, as leis são obviamente passíveis de correção. De acordo com seu contexto histórico, as legislações tentam assegurar condições para que os homens possam coexistir enquanto sujeitos de direitos. Mas, conquanto se traduzam mais ou menos corretamente na lei positiva, esses direitos humanos universais — começando pelo direito à existência — são anteriores a essa codificação, independem da chancela do legislador e, sobretudo, da cosmovisão particular do magistrado. Trata-se de direitos revelados, não atribuídos; proclamados, não outorgados; reconhecidos, não concedidos. São, em suma, direitos inalienáveis e imprescritíveis. Todas as declarações relativas aos direitos humanos — notadamente, a Declaração dos Direitos da Criança — têm esse caráter de reconhecimento, de revelação de algo que precede a lei positiva.
Esse princípio de reconhecimento é fundamental, porque delimita e restringe o alcance do poder do Estado. Se o Estado deve reconhecer a existência de sujeitos de direito anteriores à sua própria instauração, isso significa que, com perdão do trocadilho involuntário, o Estado não é a última instância do político. É precisamente essa concepção de Estado que tem caracterizado historicamente os regimes de natureza democrática, calcados na distinção fundamental — talvez a grande conquista política do que conhecemos por Civilização Ocidental — entre direitos humanos (naturais) e lei positiva, ou, em outras palavras, entre a pessoa e o cidadão. Nesse modelo de sociedade política, não cabe ao legislador, e muito menos ao magistrado, constituir sujeitos de direito.
Ora, eliminar a distinção entre direitos humanos e lei positiva, ou entre a pessoa e o cidadão, é justamente o que fazem os regimes totalitários, os quais, desconsiderando os direitos naturais inalienáveis, fazem dos direitos “humanos” positivos uma reles concessão estatal. O padre Schooyans descreve bem a alternativa entre uma e outra forma de conceber a sociedade política:
“Acima da variedade das formulações, o que está em jogo são as questões fundamentais relativas à pessoa e à sociedade. Será que sou eu quem constitui o outro em sua subjetividade? A existência do outro estará subordinada a meu consentimento e será condicionada pelo reconhecimento que lhe concedo ou nego? Poderei recusar-me a tomar conhecimento de sua existência? Impossível evitar esse problema de intersubjetividade. Ou bem coloco-me numa atitude que, desde o início, será de reconhecimento incondicional, de acolhida, ou até de simpatia em relação ao outro — mesmo se este ainda não é o termo de uma relação plenamente pessoal, mesmo se só é conhecido num certo anonimato; o reconhecimento do outro é então o ato supremo da liberdade humana a partir do qual pode ser fundada uma sociedade de liberdade, igualdade, fraternidade. Ou bem erijo minha subjetividade em instância soberana chamada a decidir quem será amigo, quem será inimigo, reservando-me tanto o direito de acolher como o de recusar. Eis, então, em linhas gerais, duas maneiras diferentes de encarar as relações entre os homens. É inevitável que daí decorram tipos radicalmente diferentes de Estado e de legislação: de caráter democrático, no primeiro caso; de tendência totalitária, no segundo.”
Conclui-se que, mais do que uma simples alteração na lei penal, a liberalização do aborto tem implicações políticas e históricas muito mais sérias, resultando numa verdadeira subversão da ordem democrática e liberal. Ao negar aos sujeitos direitos humanos naturais e se pretender um poder constituinte desses sujeitos, o Estado brasileiro, por meio de um Poder Judiciário que ignora os seus limites constitucionais, toma definitivamente — e possivelmente sem volta — o caminho do totalitarismo, da desumanização e da barbárie.
Leia também “Comunismo de almanaque vs. comunismo real”
BRASIL PRÓ VIDA! SEMPRE!
Flávio, o que falta para as lideranças parlamentares religiosas, conservadoras, liberais e democráticas levarem os brasileiros democratas às ruas para pacificamente demonstrar a essa gente que “viaja” na Constituição Federal irresponsavelmente como lunáticos e iluminados?
O povo ainda se sente amedrontado com esse espantoso abuso de autoridade e a nociva criatividade desses notáveis na INTERPRETAÇÃO da CF e com o FORJADO GOLPE de 8 de JANEIRO, que condena em lotes brasileiros trabalhadores, democratas, honestos a penas superiores às de MARGINAIS, ESTRUPADORES, TRAFICANTES e ASSASSINOS.
Não há mais lideranças democráticas e religiosas na OAB, nos empresários, jornalistas, militares, esportivas e culturais e políticos? Aos 78 anos nunca vi semelhantes arbitrariedades do poder EXECUTIVO abraçado ao JUDICIÁRIO. Lideranças, levem-nos de volta às ruas pacifica e democraticamente para EXIGIR REFORMAS URGENTES
Flávio Gordon como sempre, irretocável!!
Um país que não tem pena de morte para assassinos cruéis, sendo inclusive brando em suas punições não pode descriminalizar assassinato de inocentes
Não podemos esquecer que, além da mãe e do pai, existe um terceiro agente, o médico, o qual executa o assassinato
Bota metade do stablichment público na cadeia e a outra metade se não adaptar terá o mesmo caminho. Pra o país tomar seu rumo certo
Eis porque o aborto é um pecado tão grave. Não somente se mata a vida, mas nos colocamos mais alto do que Deus; os homens decidem quem deve viver e quem deve morrer.Madre Teresa de Calcutá
Perfeito!