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Loja da Target no bairro de East Harlem, em Nova York, nos Estados Unidos (25/7/2010) | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 188

Target fechada e criminosos livres

Nos últimos anos, a ideia de 'desencarceramento' ganhou força em Nova York e em outras cidades americanas. Como era previsível, o crime voltou a crescer

Gabriel de Arruda Castro
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A loja da Target no bairro do Harlem, em Nova York, fica a 4 quilômetros da prestigiosa Universidade de Colúmbia e é a mais antiga unidade da rede em Manhattan. O estabelecimento — uma mistura de Americanas com Pão de Açúcar — oferece uma larga variedade de roupas, eletrônicos, brinquedos e itens para casa a um preço razoável, o que explica o vaivém constante de clientes. Na verdade, todos os verbos deveriam estar no passado: 21 de outubro foi o último dia de funcionamento da Target do Harlem. E não pela falta de vendas. O problema eram os furtos frequentes.

Graças a uma abordagem leniente com os crimes considerados não violentos, Nova York perdeu o status de modelo no combate ao crime e à desordem. Os casos de furto, por exemplo, se multiplicaram nos últimos anos. Os lojistas que tentam confrontar os criminosos correm o risco de se ferir a troco de nada, já que normalmente esse tipo de crime não dá cadeia.

A situação era diferente três décadas atrás. Nos anos 1990, o prefeito Rudolph Giuliani decidiu implementar uma política de tolerância zero com o crime. Liderado pelo comandante (democrata) Bill Bratton, o programa comprovou, na prática, o que uma dupla de pesquisadores havia proposto anos antes: combater os delitos mais leves, como a pichação, cria uma sensação de ordem e também ajuda a evitar que pequenos criminosos se tornem grandes criminosos. A abordagem ficou conhecida como “Teoria das Janelas Quebradas”.

Comissário da polícia de Nova York, William Bratton (22/11/2015) | Foto: Shutterstock

Nos últimos anos, contudo, a ideia de “desencarceramento” ganhou força. A acusação de que a polícia é racista, alimentada mais por ficção do que por fatos, propagou-se. E a maré se inverteu. O “stop and frisk” (abordagem policial sem que haja flagrante) foi proibido. Como era previsível, o crime voltou a crescer — embora, justamente por não levarem a registros de ocorrência, os casos de furto não são adequadamente contabilizados pelas estatísticas policiais. Por isso, a decisão da Target não é de surpreender. 

Laboratórios de criminalidade

Na verdade, o caso do Harlem está longe de ser isolado. Outras oito lojas da Target fecharão as portas nos próximos dias pelo mesmo motivo nas regiões de Portland, São Francisco e Seattle. Em comum, as áreas se tornaram recentemente uma espécie de laboratório para ideias radicais de esquerda a respeito da criminalidade — a principal delas é de que não vale a pena prender criminosos que “apenas” cometem furtos.

Numa atitude rara, a companhia confirmou publicamente que a decisão se deve à criminalidade. “Não podemos continuar operando essas lojas porque o furto e o crime organizado contra o varejo estão ameaçando a segurança do nosso time e dos nossos clientes, e contribuindo para um desempenho insustentável dos negócios”, diz o comunicado da empresa.

Loja da Target em East Village, em Nova York, coberta com madeira compensada em antecipação aos tumultos e saques após a morte de George Floyd por um policial (1º/6/2020) | Foto: Shutterstock

A franqueza impressiona porque a Target, uma das gigantes do setor nos Estados Unidos, tem um histórico de alinhamento com as pautas progressistas. Se tem sofrido em alguns mercados por causa das políticas radicais de esquerda, a Target tampouco é bem-vinda em áreas mais conservadoras. O motivo é a oferta de produtos LGBT (alguns com teor sexual) para crianças e adolescentes. Em 2016, a companhia também gerou protestos ao anunciar que os seus banheiros seriam divididos de acordo com a identidade de gênero, e não o sexo biológico.

Um partido único

O Partido Democrata, que tem se tornado cada vez mais radical nas pautas de segurança pública, é o único partido relevante na maioria das metrópoles norte-americanas. Combinadas, as Câmaras de Vereadores de Chicago, Los Angeles, São Francisco, Baltimore, Seattle e Portland têm um total de… zero republicanos. Na cidade de Nova York, são 45 democratas e seis republicanos. Ainda assim, até mesmo o prefeito nova-iorquino, Eric Adams (também democrata), acredita que a situação passou do limite.

Em maio deste ano, Adams anunciou uma iniciativa para reduzir os furtos em lojas, que cresceram 44% entre 2021 e 2022. Muitas vezes, os crimes são cometidos por jovens que agem em grupo, como que por esporte. Segundo o prefeito, que também é policial, 327 pessoas foram responsáveis por 30% dos furtos em comércio na cidade em 2022. Esses indivíduos foram presos mais de 20 vezes, em média. “Não podemos continuar permitindo que esse comportamento reincidente prejudique a nossa cidade”, disse. “Não importa se é roubo ao varejo ou se são crimes violentos.”

Janela de vidro quebrada na fachada de uma loja de varejo saqueada por criminosos em Manhattan, Nova York (2020) | Foto: Shutterstock

Mas a solução anunciada por ele segue a cartilha da esquerda: instalar quiosques com informações sobre serviços de assistência social, ensinar os funcionários a evitar furtos e criar dois programas para ressocializar os criminosos sem que eles precisem passar pela cadeia. Como o comunicado da Target mostra, talvez não tenha sido suficiente.

“Sem mudanças substanciais na legislação, o máximo que podemos esperar dessas iniciativas é um impacto limitado”, diz Rafael Mangual, especialista em segurança pública. Ele é pesquisador do Manhattan Institute, um dos principais think tanks de Nova York, e acaba de lançar um livro sobre o aumento da criminalidade nos Estados Unidos.

Mangual explica que o problema de Nova York se deve a uma combinação de fatores, todos convergindo para um ponto: a opção ideológica por uma redução no rigor no combate ao crime. Em 2019, por exemplo, o Estado de Nova York aprovou uma mudança na legislação que pôs fim à necessidade de pagamento de fiança para a maioria dos crimes considerados não violentos (inclusive o furto). A nova legislação também dificultou o trabalho de promotores ao criar amarras excessivas sobre a coleta e o compartilhamento de provas. “A promotoria não consegue processar todos os casos que chegam”, conta Mangual. “É humanamente impossível.”

Manifestação da organização Picture the Homeless, em frente ao Instituto Manhattan, contra a “Teoria das Janelas Quebradas”, desenvolvida em Nova York (10/12/2014) | Foto: Shutterstock

O resultado era previsível: promotores têm que escolher estrategicamente os tipos de casos que pretendem investigar. E o roubo a lojas certamente não está entre eles. O mesmo acontece com os policiais, que gastam horas e mais horas preparando relatórios de compliance e têm uma força reduzida. A polícia de Nova York tem 33,5 mil homens, ante 40 mil no ano 2000. O recrutamento tem se tornado mais difícil a cada ano.

Donos de carros têm deixado as janelas e o porta-malas abertos para mostrar que não há nada de valor e, assim, evitar que os vidros sejam quebrados por criminosos

O consultor em segurança pública Michael Parker, policial aposentado de Los Angeles, diz que as consequências dos furtos são sentidas pelos mais pobres. “Uma das principais tragédias nisso tudo é que as pessoas que mais sofrem são as que menos têm”, afirma. “Porque, se essas lojas não estão na comunidade delas, por vezes elas têm que viajar uma hora de ônibus para fazer compras.”

Departamento de livros infantis na loja da Target, no bairro de East Harlem, em Nova York, nos Estados Unidos (25/7/2010) | Foto: Shutterstock

Parker lembra que a mudança na postura de combate ao crime foi inicialmente motivada pelo argumento de que minorias raciais estavam sendo atingidas de forma desproporcional pela abordagem de “tolerância zero”. “Mais do que apenas ideologia, foi a percepção de que pessoas pertencentes a minorias estavam sofrendo por causa de algumas práticas da polícia”, diz Parker.

Bem-intencionada ou não, a mudança de postura levou a uma alta na criminalidade. 

Nos últimos três anos, a maioria das grandes cidades norte-americanas registrou um salto no número de assassinatos. Em Chicago, por exemplo, a taxa de homicídios dobrou em menos de uma década.

Homem sentado em uma bola, em frente à loja Target, na manhã seguinte depois de o estabelecimento ser saqueado e grafitado, em uma noite de protestos em Minneapolis, Minnesota (28/5/2020) | Foto: Lorie Shaull/Wikimedia Commons

O aumento da violência, aliás, nada tem a ver com a falta de oportunidades. A economia americana vai bem. O desemprego tem se mantido no nível mais baixo em décadas, em torno de 3,5%. 

Mudança à vista?

Os sinais do fracasso da cosmovisão progressista sobre a criminalidade estão por toda parte.

No começo de outubro, o ativista Ryan Carson morreu tragicamente, esfaqueado por um rapaz de 18 anos, em uma calçada do Brooklyn. Ativista de esquerda, Ryan havia apoiado publicamente o desmonte da polícia e o uso de violência contra as autoridades policiais.

Em São Francisco, donos de carros têm deixado as janelas e porta-malas abertos para mostrar que não há nada de valor e, assim, evitar que os vidros sejam quebrados por criminosos em busca de objetos valiosos.

Carro com janelas quebradas devido a roubo e vandalismo em São Francisco, na Califórnia (2021) | Foto: Shutterstock

Na Filadélfia, no fim de setembro, um grupo de pessoas saqueou uma loja da Apple na região central da cidade enquanto alguns deles filmavam o próprio crime.

Para aumentar a sensação de desordem, grandes cidades como Chicago e Nova York também estão tendo dificuldades com o grande fluxo de imigrantes. Como o Partido Democrata dificulta a adoção de políticas mais rigorosas para impedir a chegada de imigrantes ilegais na fronteira com o Texas, o governo estadual (republicano) passou a enviar imigrantes para as grandes cidades controladas pelos democratas. 

O prefeito de Nova York não gostou. “Nunca na minha vida eu tive um problema para o qual eu não visse uma saída”, lamentou. “Mas não vejo uma solução para esse. Esse problema vai destruir Nova York. Estamos recebendo 10 mil imigrantes por mês.”

O prefeito de Nova York, Eric Adams | Foto: Wikimedia Commons

A governadora (democrata) Kathy Hochul mudou de discurso sobre o tema em menos de dois anos. Em 2021, ela disse que imigrantes ilegais seriam recebidos de braços abertos no Estado: “Nós queremos que as pessoas venham para cá. Independentemente de onde vieram ou das circunstâncias que as trouxeram a este país e a esse Estado, nós dizemos ‘você é bem-vindo aqui’”. Agora o discurso é diferente: “Lugares como Nova York estão realmente lotados. Nós estamos no nosso limite. Se você vai deixar o seu país, vá para outro lugar”.

Sinal de que os democratas parecem estar acordando para a consequência das próprias ideias? Rafael Mangual acredita que, quando o assunto é segurança pública, não há grandes sinais de mudança: “Acredito que, em alguns lugares, as coisas ainda vão precisar piorar muito antes de melhorar”.

Leia também “El Salvador: tolerância zero com o crime organizado”

5 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A rede Target é de Minnesota, um dos estados mais ”progressistas”.
    E a elite mimada finge que nada disso acontece, pois vivem em seus condomínios fechados com segurança armada.

  2. Marcelo Martins
    Marcelo Martins

    Hipocrisia é o que define as pessoas de Esquerda. São contra a polícia, mas quando um assaltante lhe rouba algum pertence, ele chama a polícia!
    É evidente que o afrouxamento das leis vai fazer com que a criminalidade aumente. Não precisa ser muito inteligente pra entender isso. Se antes a grande maioria dos presos por pequenos furtos eram de pessoas negras, qual a solução dos Democratas? Afrouxar as leis, para que a polícia pare de prender tantos negros, ou entender o porque a maioria dos presos sejam negros e com isso tentar achar uma solução pro problema?
    É mais fácil afrouxar as leis. Mas não conseguem entender porque a criminalidade aumenta.

  3. JOSE GILBERTO FERREIRA DE QUEVEDO
    JOSE GILBERTO FERREIRA DE QUEVEDO

    Os esquerdistas, estão provando do veneno plantado por eles mesmos. Os lugares públicos onde eles trabalham deveriam ser abertos para acolher os “meninos infratores”. Poderiam sentar ao lado de suas mesas de trabalho e talvez aprender um pouco como se transforma um país que era considerado “The American Dream” e era invejado em todo mundo, estar virando pior que as favelas do Rio de Janeiro!

  4. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

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  5. Valdir Nogueira
    Valdir Nogueira

    òtimo artigo. Parabéns.

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