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Foto: Shutterstock
Edição 193

Resistência individual

Toda tirania só avança porque uma maioria fica acovardada, em silêncio, passiva diante da escalada totalitária

Rodrigo Constantino
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“Foram necessários 12 anos de pesquisa sistemática e intensiva para localizar as fontes e finalmente escrever este livro sobre a resistência judaica individual contra a perseguição nazista”, diz Wolf Gruner, autor de Resisters: How Ordinary Jews Fought Persecution in Hitler’s Germany. Os historiadores, inclusive ele, pintaram um quadro de passividade dos perseguidos. À medida que a discriminação na Alemanha nazista aumentava gradualmente, os judeus adaptavam-se lentamente, assim era dito. Mas não foi bem o caso.

Os alemães judeus desobedeceram frequentemente aos regulamentos nazistas e protestaram em público contra a perseguição, apesar do perigo iminente de denúncias por parte de alemães não judeus e subsequentes punições severas. Os judeus alemães não eram vistos como cidadãos, mas, ironicamente, eram ao mesmo tempo acusados de traidores da Pátria. Qualquer crítica que faziam ao governo era tratada como uma potencial ameaça para derrubar o regime. 

Livro Resisters: How Ordinary Jews Fought Persecution in Hitler’s Germany, de Wolf Gruner | Foto: Reprodução

O cenário era de tensão constante desde a ascensão de Hitler ao poder. Em vez de serem simplesmente atirados para um campo de concentração, como muitas vezes se supõe erradamente, esses “judeus atrevidos” eram geralmente processados ​​e levados a julgamento em tribunais especiais por “ataques traiçoeiros ao Estado nazista”. Eles receberam sentenças de vários meses a anos de prisão por seus supostos crimes. Quando libertados da prisão antes da “Kristallnacht” (“Noite dos Cristais”), em 1938, muitos fugiram imediatamente da Alemanha, o que muitas vezes salvou suas vidas.

Nem todos tiveram como fugir, claro. As autoridades nazistas exigiram que os judeus que permanecessem entregassem todas as armas que possuíssem. Embora a posse de armas tivesse sido proibida na Alemanha desde a Revolução de 1918 e uma lei de 1928 previsse algumas isenções para os titulares de licenças, alguns judeus mantiveram as armas do tempo de seu serviço durante a Guerra Mundial, e outros possuíam armas para caça. Mas os nazistas eram desarmamentistas, pois temiam uma reação armada de seus alvos.

Assim como a Stasi fez depois na Alemanha Oriental, Hitler contava com um aparato de denunciantes dos judeus. Dado que a separação entre as esferas privada e pública, bem como a proteção das casas particulares, rapidamente deixou de existir no Terceiro Reich, os tribunais enviaram judeus para a prisão, até mesmo por comentários críticos que faziam na privacidade dos seus próprios apartamentos. Não havia mais esfera privada ao cidadão, principalmente ao judeu, que não era visto como cidadão. Empresários poderiam receber a polícia pela manhã e responder a inquérito por mandar um emoji num grupo fechado de WhatsApp! Ou será que estou confundindo esse evento, o país e a época?

Guardas da SS forçam judeus inocentes, presos durante a “Noite dos Cristais”, a marcharem para as “prisões” pela cidade de Baden-Baden, sob a vista de curiosos, na Alemanha (10/11/1938) | Foto: Reprodução

Mas o importante é que os judeus não ficaram passivamente assistindo a tudo isso sem qualquer reação, como reza a lenda. A fuga dos campos de trabalho forçado, a desobediência à proibição de deixar a cidade de origem, a fuga às deportações ocultando identidades e a passagem ilegal das fronteiras dominaram os anos de 1939 a 1945. O número de judeus escondidos na Alemanha é estimado entre 10 mil e 12 mil. Só em Berlim, de 5 mil a 7 mil judeus (de um total de quase 73 mil) esconderam-se depois do início dos transportes para os campos de concentração, em 1941.

Atos como se sentar em um banco proibido do parque, fotografar uma placa antijudaica, menosprezar Hitler, não usar uma “estrela amarela”, fugir e suicidar-se são realmente resistência? Pode ser considerado demasiado expansivo interpretar esses atos como resistência, mas a realidade numa ditadura é que as autoridades percebem cada expressão de uma opinião diferente, cada desvio do comportamento dominante prescrito e cada desafio a uma orientação ideológica, política, social ou econômica de forma muito diferente do que seria o caso numa sociedade aberta.

Pressionar os parlamentares para impedir a indicação de um comunista a uma Corte Suprema, por exemplo, pode surtir grande efeito. Ocupar as ruas em manifestações para deixar claro que não aceita intimidação, também

Para os nazistas, esses judeus que desafiavam o regime eram resistentes, eram “atrevidos”. Contar a história de alguns indivíduos que foram ícones desse tipo de resistência é o objetivo do livro, e isso tem relevância para desfazer a imagem de passividade atribuída aos judeus na Alemanha Nazista. Claro que podemos apenas conjecturar se uma resistência armada efetiva poderia ter impedido o Holocausto, mas é preciso fazer justiça aos corajosos judeus que se recusaram a simplesmente entregar de bandeja o pescoço para os nazistas. 

Outro ponto importante é que talvez uma resistência maior antes de Hitler acumular o poder que acumulou poderia ter impedido o pior. “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”, alertou Martin Luther King. “Para o triunfo do mal só é preciso que os bons homens não façam nada”, alertou na mesma linha e bem antes Edmund Burke. Toda tirania só avança porque uma maioria fica acovardada, em silêncio, passiva diante da escalada totalitária. Muitos só começam a reagir quando a água começa a bater em seu próprio bumbum, ou seja, quando o abuso de poder interfere diretamente em sua vida. Os tiranos contam com essa letargia.

28 de agosto
Martin Luther King fazendo seu célebre discurso | Foto: Reprodução/Agência de Informação dos EUA/Serviço de Imprensa e Publicações

Mas a resistência individual pode fazer a diferença, especialmente no começo das tiranias. Pressionar os parlamentares para impedir a indicação de um comunista a uma Corte Suprema, por exemplo, pode surtir grande efeito. Ocupar as ruas em manifestações para deixar claro que não aceita intimidação, também. E gritar contra a censura imposta na tentativa de calar as vozes dissidentes, idem. Cada indivíduo tem um pequeno poder que, somado, tira o sono dos tiranos. E, na pior das hipóteses, se a tirania for mesmo inevitável, ao menos os resistentes saberão que não se curvaram, não se venderam ao Diabo, não sacrificaram sua consciência e não traíram seus valores. Quem ficou calado durante todo o processo não poderá jamais dizer o mesmo…

Leia também “O maior desafio”

20 comentários
  1. José Pedro Scatena
    José Pedro Scatena

    Dilmo III está plagiando o III Reich descaradamente no processo e nos passos para a conquista do poder. Até o método da destruição de adversários é copiada dos nazistas. O incêndio do Reichstag foi adaptado no 8/1, com a quebradeira dos símbolos dos III Poderes e a prisão de inocentes que estavam a quilometros de distância. E podem esperar que a Kristalnacht está sendo gestada nos porões sombrios dos palácios, para a alegria de nossa Eva Braun tupiniquim. A prisão de Bolsonaro e lideranças adversárias, o fechamento dos últimos órgãos de imprensa livre, a regulamentação total das redes sociais. Nossa esperança é que o Brasil é grande demais e ainda há governadores e Polícias Militares estaduais capazes, ainda, de iniciar um desmembramento federativo para enfrentar um poder central que está ganhando o jogo no grito apenas, sem força real para impor seus desmandos. Sul e Sudeste tem esse poder e basta uma faísca para empolgar os novos judeus e enfrentar a Besta.

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Como disse Tiago Pavinatto, o Brasil prende o Alexandre ou o Alexandre vai prender o Brasil.

  3. Ligia Maria De Bastiani
    Ligia Maria De Bastiani

    Assustador ler esse texto e observar as semelhanças com o que estamos vivendo.

  4. Daniel Miranda Lewin
    Daniel Miranda Lewin

    ESTAMOS PASSANDO POR TEMPOS SOMBRIOS NO BRASIL… TRISTE…

  5. Marília Lopes
    Marília Lopes

    Jesus disse, seja bom ou seja mau mas, nunca morno! Isso tem a ver muito com o seu artigo! A maioria, infelizmente, é morna! Não reage enquanto não chegar nela ou nos seus! Aí, talvez, já seja tarde! Que Deus nos ajude pq. Infelizmente, acordados ainda são poucos!

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Estamos vivendo há 100 anos atrás

  7. COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA
    COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA

    EXCELENTE ARTIGO E ANALISE !!!
    VEJAM E COMPAREM COMO A MALDADE CRESCE E VALOR HUMANO DECRESCE E NO FINALMENTE TEMOS SITUAÇÕES ADVERSAS PARA A SOCIEDADE, MAS PARA EVITAR ISTO SEM EXISTEM CONTROLES.
    VEJAMOS O ACONTECE NO BRASIL ONDE O Sr. RODRIGO PACHECO NÃO EXERCE O CONTROLE QUE ESTA EM SEU PODER E A SITUAÇÃO SE AGRAVA A CADA CIA.
    VEJAMOS O PESSOAL QUE FOI PRESO NA LAVAJATO ESTA SOLTO E QUEM FOI A BRASILIA CONTESTAR ESTA PRESO SEM QUE HOUVESSE UMA INDIVIDUALIDADE DE CONDUTA OU SEJA QUEM DILAPOU E DESTRUIU PROPRIO NACIONAL NOS PALACIOS DO PODERES DE BRASILIA DEVERIA ESTAR PRESO MAS PRENDER UMA IDOSA COM BIBLIA ISTO É UMA AÇÃO SEMELHANTE DA ALEMANHA NAZISTA DE HITLER.

  8. JULIO CESAR PEREIRA CAMACHO
    JULIO CESAR PEREIRA CAMACHO

    “O QUE ME PREOCUPA NÃO É O GRITO DOS MAUS, MAS O SILÊNCIO DOS BONS” Martin L. King
    ESSE DESGOVERNO QUER DESARMAR A POPULAÇÃO PARA QUÊ ????

    Parabéns CONSTA. POR ESSAS E OUTRAS DEVEMOS OCUPAR AS RUAS NO DIA 10/12.

  9. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns Constantino. Obrigado por desfazer essa história de que os judeus na Alemanha nazista, ficaram assistindo de camarote a ascensão do Nazismo.

  10. Helder Gouveia
    Helder Gouveia

    Precisamos de reformas que não interessam a nenhum dos poderes, pois trata-se do desmantelamento de toda a merda que apossou do país: imprensa podre, políticos corruptos, judiciário paranóico, eleitores alienados e esquerda corrupta. O caminho é o congresso, mas um congresso honesto e intrigou, ou seja, um congresso de DIREITA

  11. Juliana saad de carvalho
    Juliana saad de carvalho

    Exit, Consta. No return. Serão anos escuros, uns 50-60 talvez. Se ainda temos algo, para lutar, lutemos pela Separação, reduzindo o poder de Brasília. Está na hora de parar de jogar o jogo deles e iniciar a resistência. É apenas separando, conseguiremos.

  12. Ed Camargo
    Ed Camargo

    O Brasileiro é estóico por natureza ele prefere sofrer calado. Portanto é muito importante alertar a população do iminente perigo e dar soluções de como combatê-lo.
    A presença de milhares de pessoas em protestos realmente deixa os tiranos apavorados. Como um exemplo podemos citar a situação da Índia e sua luta pela independência da Inglaterra. A época os ingleses tinham as armas e dominavam todos, mas sob a liderança de Gandi os indianos faziam filas aos milhares para pacificamente apanharem dos ingleses até o ponto que os ingleses se cansaram de bater e decidiram deixar o país que dominavam. Isso prova que apesar do regime ter as armas de fogo para intimidar a população, ainda existe um poder maior na presença de milhares protestando contra o regime.
    Os petralhas podem usar o povo como animais de sacrifício, mas ao mesmo tempo por serem parasitas não podem viver sem o povo. Todo parasita precisa de um anfitrião para continuar parasitando.

    1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
      Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

      Excelente colocação, Ed Camargo.

  13. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Prazer enorme em ler seu artigo brilhante Constantino. Apenas vou deixar aqui toda minha admiração irrestrita a esse povo judeu que lutou muito para ter um país que hoje podem chamar de seu.Israel é a única democracia do oriente médio. Seu exército é um dos mais importantes do mundo ocidental,sua população é uma imensa classe média onde não se vê pobreza,moradores de rua ,traficantes e ladrões roubando celular.Mas o ódio contra esse povo existe até hoje,só vermos as manifestações na Europa e EUA a favor do terror. Lula falou várias vezes que Israel ataca a faixa de Gaza com crueldade,mas esse é o nosso ignorante de plantão, infelizmente. Israel sempre defenderá seu povoe o ataque de terroristas será retaliado sim,sempre.O mundo ocidental ainda não compreendeu que Israel luta também por nós.

  14. Jaques Goldstajn
    Jaques Goldstajn

    Coisa. Boa seu artigo, principalmente porque quero compartilhar o livro da Hanna Arendt: a banalidade do mal: há momentos na descrição do terceiro reich que é idêntica a ao terceiro mandato de Lula e STF. Nas eleições chamaram o Bolsonaro de nazista e já se tratava de projeção da própria identidade.
    Agradeço seu artigo

  15. Leonardo Abreu
    Leonardo Abreu

    Às armas, cidadãos

  16. Francisco Antonio Pinheiro
    Francisco Antonio Pinheiro

    gritar contra o que esta ai, e a maior vontade de todo brasileiro de bem. eu sou um deles. tenho uma vontade ferrenha. mas sou pai de familia. se as penas (perseguicoes) fossem so a mim dirigidas, nao titubiaria. mas da pitaco no jogo dos outros so na assistencia, e facil. venha fazer isso conosco. antes de ser pai, eu respondia pelas minhas atitudes. depois de ser pai, ja nao tenho mais um so coracao para cuidar. entendeu.
    nao sou bom para digitar nesses dispositivos.
    mas da pra entender

  17. Cesar Cardoso
    Cesar Cardoso

    Resistir é necessário!

  18. Namil de Oliveira leone
    Namil de Oliveira leone

    Parabéns Constantino! Acompanho seu trabalho e aprendo muito. Obrigada.

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