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Parlamentares que são contra o PL nº 2.630, durante coletiva no Salão Verde, em Brasília (2/5/2023) | Foto: Lula Marques/Agência Brasil
Edição 196

‘Cala a boca já morreu’

Não podemos aceitar ser uma sociedade meio escrava e meio livre, autorizando agentes governamentais, mesmo que veladamente, a escolher o que pode ser dito ou não

Ana Paula Henkel
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Quem não se lembra desta célebre frase dita por Cármen Lúcia, em 2016, referindo-se ao direito da imprensa de repassar informações aos cidadãos? O “cala a boca já morreu”, proferido com ares que a gente só vê naqueles filmes bonitos que falam sobre “democracia” e “liberdade”, foi uma resposta a uma jornalista que questionou a ministra sobre restrições às informações que, em alguns casos, são impostas sob o argumento de necessidade de sigilo.

Na ocasião, a então presidente do Supremo Tribunal Federal bradou que a Corte, aquela, daria cumprimento ao exercício de uma imprensa livre, “não como poder, mas como uma exigência constitucional para se garantir a liberdade de informar e de o cidadão ser informado para exercer livremente a sua cidadania”.

Em um passado não muito distante, mas que soa como uma eternidade, a ministra afirmou que “não há democracia sem uma imprensa livre” e que “não há democracia sem liberdade”. Ela também declarou que “ninguém é livre sem acesso às informações” e, citando uma crônica do escritor e jornalista Fernando Sabino, bradou:

— Deixa o povo falar!

Cármen Lúcia, presidente do STF na época, faz palestra sobre liberdade de expressão na comunicação tecnológica, no 10º Fórum Aner de Revistas, na Escola Superior de Propaganda e Marketing (20/10/2016) | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Mas a defesa da demogracinha de dona Cármen, que já mostrou em vídeos para o Brasil que não deixa o samba morrer, não durou muito. Em 2022, ela não apenas deixou nossa Constituição estatelada no chão e mortinha da silva, como sambou em cima da coitada. Em um julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante a corrida presidencial no ano passado, a ministra votou a favor da suspensão da monetização de canais de direita e impediu a exibição de um documentário sobre a facada em Jair Bolsonaro em 2018, antes de a peça ser lançada.

Votando de mãozinhas dadas com os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, que também integravam tanto o STF quanto o TSE, Cármen Lúcia fez coro o ministro Benedito Gonçalves — não o do samba, mas o dos tapinhas — e disse que “não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento no Brasil”, MAAAAAS… que o caso “era uma situação excepcionalíssima” e que, embora aquele tipo de decisão pudesse “ser um veneno ou um remédio”, que ela… ah… ia censurar, sim.

7 de setembro
Lula, em clima amistoso com Benedito Gonçalves, ministro do TSE, durante a posse de Alexandre de Moraes no comando do TSE (17/8/2022) | Foto: Reprodução/Twitter

A bipolaridade jurídica de nossos supremos é tanta que, minutos depois de encantar os bobocas que tinham um fio de esperança no começo de um discurso bonito, citando, inclusive, uma jurisprudência do STF (“na esteira da Constituição e no sentido do impedimento de qualquer forma de censura” — favor não bocejar), a ministra patinou e disse que ia acompanhar o relator “com todos os cuidados” para não parecer censura. Ruth e Raquel perdem feio para Cármen Lúcia e Lúcia Cármen. 

Desde o “cala a boca já morreu”, lááá nos primórdios de 2016, o Brasil testemunhou a batida contra a liberdade de expressão no país tomar ares sérios, daqueles que só vemos em páginas de livros de história sobre regimes totalitários. O “sistema”, seja na Rússia, na China, seja no Brasil, não gosta da internet, da liberdade de expressão, da liberdade para questionar, debater, sugerir, cobrar…. Deus me livre! O “cala a boca já morreu”, na verdade, anda de mãos dadas com o “eu tenho nojo da classe média”. Povo chato que resolveu gostar, mesmo se aborrecendo todo dia, de política.

YouTube video

Nos últimos anos, vimos um corrupto sair da cadeia em uma manobra sem-vergonha e se tornar presidente do país em eleições cheias de questionamentos que não podem existir. Temos testemunhado uma Corte feita para olhar as leis e apenas checar se elas estão sendo respeitadas em um completo desarranjo institucional. Na semana passada, vimos um comunista entrando pela porta da frente dessa mesma Corte e debochando da nação. O que mais pode dar errado? O Legislativo calar a nossa boca com leis.

Sim, lá vem ele de novo. O capitão “quem paga mais”. A sanha de Arthur Lira para passar, ou melhor, para enxovalhar, o PL nº 2.630 — sim, aquele mesmo que cala a boca de todo mundo — parece imparável. Depois de ter colocado o projeto para ser votado em caráter de urgência em 2022, e depois da pressão da população para que ele não passasse — e essa pressão funcionou! —, Lira agora tenta articular a volta da vergonhosa institucionalização da censura no país na marra. Como sabemos, o sistema não gosta de ouvir o que nós, que sustentamos toda aquela máquina abarrotada de parasitas, sanguessugas e inúteis, temos para perguntar e cobrar.

Arthur Lira em sessão da Câmara que tentou votar o PL nº 2.630, em Brasília (2/5/2023) | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

É no mínimo curioso passar os olhos nas redes sociais, no noticiário e, como na semana passada, na mais recente sabatina “chá das cinco”, ver políticos e ministros (and ministros to be) falando das leis norte-americanas pra cá… dos pais fundadores da América pra lá… a Suprema Corte dos Estados Unidos isso… os justices aquilo… Pensando bem, não tem nada de curioso nisso. É esquizofrenia pura. A turma made in Brasília que vive em rede social defendendo “os pilares da democracia”, tais quais os norte-americanos, está doida por um esparadrapo em nossa boca. E eles não gostam de ser questionados. A verdade é que eles não têm o menor respeito por quem discorda deles, embora batam no peito, com atuações dignas de Oscar, para dizer que o problema não é discordar, mas o tal do “discurso de ódio” — balaio maroto que pode receber até xingamentos de 5ª série.

Benjamin Franklin, um dos pais fundadores, escrevia constantemente em seus artigos que a liberdade de expressão é o principal pilar de um governo livre e que, quando esse apoio é retirado, a Constituição de uma sociedade livre é dissolvida e a tirania é erguida em suas ruínas

A história dos Estados Unidos mostra que os pais fundadores da América discordavam em vários pontos na estruturação do novo país pós-revolução e em mais um punhado de coisas. Thomas Jefferson, por exemplo, almejava maior independência e autonomia dos estados, o Federalismo que vemos hoje. Já Alexander Hamilton acreditava que o governo federal deveria ser o centro do poder. As discordâncias entre eles eram comuns e, talvez por isso, na respeitosa e rica troca de ideias por um bem maior, a nação mais livre do mundo tenha se formado em pilares sólidos de puro republicanismo — e não de democracia relativa.

Assinatura da Constituição dos Estados Unidos, com George Washington, Benjamin Franklin e Alexander Hamilton (da esquerda para a direita, em primeiro plano), pintada por Howard Chandler Christy (1940) | Foto: Wikimedia Commons

Mas havia um ponto na formatação do que seria vital na nova nação que era defendido por todos eles: a absoluta liberdade de se expressar. A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade de expressão, religião e imprensa. Também protege o direito a protestos pacíficos e a peticionar ao governo. A emenda foi adotada em 1791, juntamente com outras nove emendas que compõem a Declaração de Direitos (Bill of Rights) — um documento escrito que protege exatamente as liberdades civis. A emenda, com 232 anos e uma das mais protegidas até hoje, diz:

O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou abreviando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de pedir ao governo uma reparação de queixas.”

Benjamin Franklin, um dos pais fundadores, escrevia constantemente em seus artigos que a liberdade de expressão é o principal pilar de um governo livre e que, quando esse apoio é retirado, a Constituição de uma sociedade livre é dissolvida e a tirania é erguida em suas ruínas. E ainda acrescentava: “Se todas as impressoras estivessem determinadas a não imprimir nada até terem certeza de que não ofenderiam ninguém, haveria muito pouco para impressão”.

Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos | Foto: Shutterstock

Não podemos aceitar ser uma sociedade meio escrava e meio livre, amarrada a meias verdades ou autorizando agentes governamentais, mesmo que veladamente, a escolher o que pode ser dito ou não, o que pode ser ouvido ou não. A liberdade não é um luxo que podemos desfrutar quando atingimos um grau satisfatório de segurança e sólida prosperidade. A liberdade antecede tudo isso e sem ela não podemos ter segurança nem prosperidade.

A América não é um país livre porque é próspero. É um país próspero porque é livre.

Leia também “Um comunista no STF. E agora?”

19 comentários
  1. Ezriel da Silveira Barros Cardoso
    Ezriel da Silveira Barros Cardoso

    Disse Arnaldo Jabor um dia, “Tudo vai melhorar quando a maioria das pessoas de bem forem mais ousadas que as canalhas.” Gostaria de salientar que ousar, na minha modesta opinião, é quando uma pessoa tem coragem de falar “a verdade” em público, ou de agir em favor do próximo, sem temer seja quem for, e que sabe argumentar, com conhecimento de causa, sabedoria e amor! Agora, como falar (E EU OUSO FALAR SEMPRE) nesse momento atual que vivemos no Brasil se a plateia, que tem coragem de ouvir o “ousado”, “não pode”, ou não tem a coragem de ousar contra as “ameaças”, cada vez maior, daqueles que juraram defender a Constituição do Brasil, e agora a colocam num museu? Ela já morreu, e virou passado?! Deus, afasta de nós este cálice de amargura!

  2. Francisco Wilton Lopes do Carmo
    Francisco Wilton Lopes do Carmo

    Ana Paula, você ainda está escrevendo o livro sobre Ronald Reagan ou desistiu?. Se não, pergunto quando será lançado…

  3. Ivan Alberto Hasse
    Ivan Alberto Hasse

    Parabéns pelo artigo!!!!

  4. Ligia Maria De Bastiani
    Ligia Maria De Bastiani

    Ana Paula, parabéns pelo conhecimento histórico e jurídico em suas análises.
    Será que o Brasil ainda tem jeito?

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Ana Paula que beleza de reportagem, fico sonhando essa equipe da revista oeste governando esse país com Jair Messias Bolsonaro

  6. Rodrigo Otavio Xavier Leão
    Rodrigo Otavio Xavier Leão

    Agora, querem aproveitar de forma nefasta o caso da Choquei para empurrar o PL 2630 goela abaixo. Essa turma de oportunistas é covardes do congresso não perde uma chance para tolher as liberdades individuais em nome daquilo que bradam mas não exercem: a democracia. Basta um passo em falso de alguns congressistas e uma gaveta no STF se abre. Aí, vem aquele processo empoeirado, que estava parado. A relação é de promiscuidade e chantagens de ambos os poderes – legislativo e judiciário.

  7. CAIO TACLA
    CAIO TACLA

    Tinha um ditado que as crianças usavam na minha escola, quando eu era bem criança, não me lembro muito bem mas era algo como “Cala boca já morreu, agora. quem cala sua boa sou eu”. Sinceramente, não lembro mais do que isso, mas tenho certeza que tinha algo assim. Isso era na década de 80. Tipo aquela musiquinha da “vaca amarela” ou da “vaca vermelha”, infelizmente também não me recordo ao certo do adjetivo que era utilizado. Enfim, a Cármen Lúcia está perdendo o posto de Bruxa-Mor da eterna Colònia Brasileira para a Janja. Coitada da Dona Clotilde, essa nem com mil vassouras de bruxa faria tanto mal ao Brasil como suas colegas acima citadas.

  8. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Ana, sou um crítico de Brasília. Um oásis sem povo onde a casta política faz o que quiser no centro do Brasil. Gostaria de ler um artigo sobre isso, fazendo um paralelo com a criação de Washington.

  9. Marcos Bovolon
    Marcos Bovolon

    Estamos bem longe da América, por aqui a única coisa que se compara com os americanos é o salário dos ministros do supremos e todo barnabé do judiciário acha que tem o mesmo direito.

  10. Daniel Miranda Lewin
    Daniel Miranda Lewin

    EXCELENTE TEXTO!!! LIBERDADE SEMPRE!!!

  11. Frederico Oliveira dos Santos Melo
    Frederico Oliveira dos Santos Melo

    Muito bom!

  12. gustavo reboucas da palma
    gustavo reboucas da palma

    Gostei do “. Bipolaridade jurídica de nosso supremo” . Parabéns!!!

  13. Ed Camargo
    Ed Camargo

    Por que a política de hoje e os políticos são tão horríveis, CORRUPTOS e excecráveis?
    Como mostra a nossa história, ao abordar questões importantes, é humano concentrar-se na discórdia e nas divisões à medida que as debatemos. Somos cidadãos soberanos, únicos e raros e por debater sobre assuntos que afetam a todos, estamos cumprindo o nosso dever cívico e obrigação moral – e por enquanto não temos em nosso país, apesar dos esforços do STF, um tirano capaz de silenciar este debate público e impor a sua vontade caprichosa e capciosa ao povo. Estas brigas dentro da nossa família nacional são necessárias e adequadas, porque é assim que nós, pessoas livres, formamos uma união mais perfeita e avançamos na busca pela nossa felicidade. É a beleza da democracia, enquanto ela durar, mas esta beleza não passa despercebida aos inimigos da nossa nação que sorrateiramente chegaram ao poder, ( Eleição não se ganha, se toma, ou em outras palavras essencialmente se rouba) pois constitui uma ameaça existencial as suas intenções de estabelecer em nosso país, um regime totalitário e autocrático. Assim, e dessa forma o consórcio Luladrão – STF continuarão a denegrir a beleza da Democracia e da Liberdade e a rotulá-las de fraqueza e decadente.
    Podemos argumentar que o aumento da visibilidade e do envolvimento nas questões políticas, facilitado pelas modernas tecnologias de comunicação, é um desenvolvimento positivo. Permite vozes e opiniões mais diversas, potencialmente levando a uma população mais informada e engajada na esperança de transcender a terrível política de hoje; restaurar e redimir a experiência revolucionária deste país em autogoverno; buscar a felicidade e formar uma união mais perfeita continua sendo o objetivo do povo brasileiro, sem mostrar desânimo devido as circunstâncias do momento que vivemos.

  14. Yara
    Yara

    E essa do Rumble, hein?
    O povo brasileiro, em sua grande maioria, está adormecido.
    Se não acordar a tempo e começar a se manifestar grandemente contra o concluio STF-ladrão, quando acordar será tarde.

  15. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Não sei se vou comentar…. a gente nem sabe se é lido e ouvido…
    Existem centenas de processos no STF “correndo em sigilo”. Tem alguns que já atingiram a prescrição e são arquivados sem ninguém saber, nem os advogados. Por que sigilo? A imprensa não pode nem pedir em que estado está o processo, quando foi último despacho ou intervenção de advogados e MPF (isto sem exigir o texto ou o que está escrito nos autos). Então, na tua análise seria importante lembrar os processos hiper-sigilosos que nem se sabe a quantidade. O processo da Rosi Noronha certamente já prescreveu como outros recursos de mensaleiros e corruptos, todos amigos dos membros do STF. Por que desejam a censura? Uma das resposta está aqui neste modesto comentário.

  16. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Parabéns, Ana, pela lucidez e contundência

  17. Stella Maris Falcão Marques Pereira
    Stella Maris Falcão Marques Pereira

    A verdade! Perdemos a liberdade e vivemos sob censura . Nada acontece e o povo obrigado a conviver com um senado inútil e parasita , que é quem poderia pautar e começar pela reforma e investigação do STF

  18. Andre mendonça
    Andre mendonça

    Ana Paula, parabéns pelo artigo brilhante!
    O DNA dos genitores marca a sua descendência. Comparando o DNA dos pais da república americana com o DNA dos pais da república brasileira, e suas circunstâncias de “parto” (vide 1889, de Laurentino Gomes), a gente perde qualquer esperança de que um dia poderemos ter orgulho do nosso país, como uma instituição decente.
    A república tupiniquim teve alguns pequenos hiatos de decência, logo desmontados pelo “sistema”. O resto, só o esgoto e a sarjeta como companhia.
    Depois das atitudes de Sérgio Moro na votação do comunista ao supremo, chegamos ao fundo do fundo do fundo do fosso. Ou da fossa sanitária…

  19. Andre mendonça
    Andre mendonça

    Parabéns, Ana Paula, pelo brilhante artigo.
    Ao comparar os pais dos Estados Unidos e os “país”

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