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Foto: Sanit Fuangnakhon/Shutterstock
Edição 197

Carpe diem — Velhos e novos tempos

Se nas cidades o tempo parece passar depressa, no mundo rural ele segue seu tempo. Sem acelerar ou retardar

Evaristo de Miranda
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No novo tempo
Apesar dos perigos
Da força mais bruta
Da noite que assusta
Estamos na luta
(Ivan Lins, Novo Tempo)

Com a passagem de ano, nas cidades repetem-se refrões: “Como o ano passou depressa. Como o tempo está andando rápido. Os anos parecem passar mais ligeiros”. O tempo acelerou? É possível dar tempo ao tempo? A existência não escapa dos limites impositivos, da prisão das três dimensões espaciais (distância, área e volume) e da quarta dimensão do criado: a inexorável passagem do tempo. Aqui e no mundo, a percepção e o registro temporais estão impregnados de agricultura, Ocidente e Cristianismo.

Como serão os tempos no ano próximo? Como enfrentar e transformar os tempos sombrios? Cabe lembrar o significado dos indicadores temporais e dos três tempos dos gregos antigos: Chrónos, tempo quantitativo (anos, meses, dias); Kairós, tempo apropriado (momento presente, oportunidades); e Aión, tempo cíclico, zodiacal e eterno (estações, respiração, sono).

Se nas cidades o tempo parece passar depressa, no mundo rural ele segue seu tempo. Sem acelerar ou retardar. Os agricultores observam impassíveis o giro anual de 939.885.629 quilômetros da Terra em torno do Sol, a uma velocidade de 107.219 quilômetros por hora. A agricultura segue ciclos cósmicos e deles tira proveito. Há mais de dez milênios, a agricultura é a atividade humana mais regida pelo ciclo solar, base das métricas e indicadores temporais.

Tempus fugit, expressão latina, escrita em relógios (“o tempo voa”). Sed fugit interea, fugit irreparabile tempus (“ele foge, irreversivelmente o tempo foge”). Essa frase está num livro de agricultura (livro III, 284), Geórgicas (“Trabalhos da terra”), do poeta romano Virgílio, escrito entre 37 e 30 a.C. “Geórgicas” é a latinização do grego γεωργικός / geōrgikós (geo, “terra”; ergon, “trabalho”, como em “ergonomia”). As Geórgicas são uma apologia da vida do campo e de dignificação da classe rural, dirigida aos cidadãos. Elas são necessárias no Brasil atual, onde impera, em muitos ambientes, a demonização do agronegócio. São quatro livros e 2.188 versos consagrados às culturas (anuais e perenes) e à criação animal (pecuária e apicultura).

Por milênios, mesmo ignorando a realidade física da translação e da rotação da Terra e da Lua, civilizações estabeleceram contagens do tempo associadas à agricultura. Face ao tempo em fuga constante, buscaram marcos de referência na regularidade de fenômenos naturais, observáveis a olho nu, para construir calendários: fases da lua, movimento solar, solstícios e equinócios. Atividades agrícolas foram fundamentais nessa construção. O tempo é metáfora de condição meteorológica, sobretudo no agro. Tempo de chuva, plantio ou colheita no calendário agrícola.

Foto: Shutterstock

O calendário, estruturador de agendas e expressão máxima do Chrónos, dá a impressão de domínio sobre o tempo. Em latim, cal(endário) significa proclamar ou convocar (call em inglês). No primeiro dia de cada mês, chamado calendas, os sacerdotes romanos proclamavam se as nonas (“dias de oferendas”) caíam no quinto ou no sétimo dia (nove dias antes dos idos). No livro das calendas, calendarium, marcavam-se os dias das festividades religiosas e dos compromissos (pagamentos devidos).

“Deixar para as calendas gregas” (ad kalendas graecas) significa adiar indefinidamente a realização de uma ação. Os gregos não tinham calendas. Exemplo: “A regularização fundiária na Amazônia foi deixada para as calendas gregas”. Com ironia, o ditado evoca, como o Dia de São Nunca, uma data aparentemente fixa e inexistente.

Por mais de um milênio, o Ocidente teve o calendário juliano, instituído por Júlio César, em 46 a.C. Com imprecisões e deriva temporal, os equinócios se distanciaram da data real em cerca de dez dias no século 16. Sob determinação do papa Gregório XIII, matemáticos e astrônomos jesuítas das universidades de Salamanca e de Coimbra trabalharam nas bases de um novo calendário desde 1579. Em 24 de fevereiro de 1582, pela bula Inter gravissimas, o papa lançou um novo calendário, agora o gregoriano.

Ele foi adotado de imediato em Portugal, Espanha e Estados Pontifícios. Logo, nos países protestantes e em todo o planeta. Na vida civil e civilizada, ele substituiu outros calendários (muçulmano, judaico, chinês…), hoje limitados a usos religiosos e tradicionais. Quem regula voos de aviões, satélites, tratados internacionais, GPS de máquinas agrícolas, boletos e o cotidiano de bilhões de pessoas é o calendário cristão, papal e romano, o gregoriano. Marco científico da Cristandade e de seu domínio do Chrónos.

Um ano solar tem 365,25 dias. Pelo calendário gregoriano, 2024 será bissexto, com 366 dias. Primeira consequência: feriados do 7 de setembro, 12 de outubro e 2 de novembro, ocorridos na quinta-feira em 2023, serão no sábado em 2024, para tristeza do lazer dos trabalhadores. Não fosse ano bissexto, ia dar praia. Em sendo, nada a emendar. Segunda consequência: melhorará o PIB. A abundância de feriados em 2023 foi responsabilizada pelo fraco desempenho do PIB pelo presidente Lula. Não se emenda.

Existem calendários lunares, baseados nas fases da Lua. Um mês dura 28 dias, uma lunação. Treze lunações: 364 dias. Para dar conta das estações, calendários lunares são ajustados ao solar. E se tornam lunissolares, como os calendários hebraico, chinês, tibetano e hindu. O único puramente lunar, em grande escala, é o hegírico ou muçulmano. Com 12 meses de 29 e 30 dias, seu ano é 11 dias mais curto. Suas datas vivem perene deslocamento.

Foto: Jaroslav Machacek/Shutterstock

O ano é dividido e medido em meses (mensis), do verbo “mensurar”, “medir”. O mês evoca a medida percorrida ou atravessada. Mensis vem da raiz indo-europeia mehns, cujo significado é “lua”. A mesma raiz de menstruação.

No tempo Chrónos, os meses são divididos em semanas. “Semana”, do latim eclesiástico septimana, deriva de septimus (“sétimo”), septem (“sete”). Evoca os sete dias das fases lunares. Na civilização romana, os dias da semana eram nomeados pelo Sol, Lua e cinco planetas, associados a deuses.

Em Portugal, São Martinho de Dume, bispo de Braga, no ano 560, mudou o nome dos dias. Considerou indigno de bons cristãos chamá-los pelos nomes latinos pagãos: solis dies, lunae dies, martis dies, mercurii dies, jovis dies, veneris dies e saturni dies. Ele propôs a terminologia eclesiástica para designá-los: Feria secunda, Feria tertia, Feria quarta, Feria quinta, Feria sexta, Sabbatum, Dominica Dies. Feria, como em “férias” e “feriados”, os responsáveis pelos problemas do PIB de 2023.

Daí: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado e domingo. Sinal da profundidade da evangelização em terras lusitanas, o português foi a única língua novilatina a substituir termos pagãos por cristãos nos dias da semana. Até os nomes pagãos dos planetas São Martinho tentou cristianizar, sem o sucesso obtido nos dias da semana. Pena.

Representação de São Martinho de Dume em miniatura do Códice Albeldensis, c. 976 (Biblioteca do Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial, Madrid) | Foto: Wikimedia Commons

Em 1997, no Congresso Mundial de Síndrome de Down, apresentaram um estudo sobre dificuldades das crianças no entendimento temporal dos dias da semana. Num gráfico, Portugal e Brasil apareciam fora da curva. O especialista explicou: dias em português seguem uma numeração. Pessoas com síndrome de Down em Portugal e no Brasil são as mais bem situadas nos dias da semana. Em outros países, não há lógica na sucessão dos dias. A dificuldade é grande. Sete vivas à inclusão e a São Martinho de Dume!

Problemas e dificuldades de 2023 fazem parte de ciclos. Cabe lutar. Com escolhas e ações adequadas virão tempos mais brandos. Em 2024, um Novo Tempo deve ser construído

Domingo, dies dominicus (“dia do Senhor”), surgiu no calendário cristão como didominicu e depois diominicu por dissimilação. Jesus era israelita e guardava o sábado como dia sagrado (Mt 1,21; Lc 4,16). Criticou o formalismo de doutores da lei na prática do shabat. Seus discípulos continuaram a guardar o sábado, logo após sua morte (Mt 28,1; Jo 19,42). Rapidamente, passaram a guardar o dia da ressurreição, o seguinte ao sábado, como dia do Senhor. As aparições do Ressuscitado no primeiro dia de cada semana levaram a Igreja a entender esse dia como o do Senhor. Os mais antigos textos cristãos (dos séculos 1 e 2) atestam essa prática. O imperador Constantino consagrou o primeiro dia da semana como dies dominicus. O Ocidente guarda e desfruta sábado e domingo. Parte dos agricultores, não. É preciso ordenhar vacas, alimentar suínos, irrigar plantios, socorrer égua no parto, combater pragas e alimentar cidades. Cada qual com seu Kairós.

Carpir, na roça, significa limpar o capim, o mato. “Carpir” vem do latim carpere, “colher”, “arrancar”. E pode significar arrancar os cabelos, em sinal de dor. Carpideiras eram mulheres especializadas em chorar defuntos alheios, já nos tempos bíblicos (Jr 9,17-26). Uma expressão latina muito usada é carpe diem, até por jovens distantes da agricultura. É nome de academias, bares e anda tatuada em muita gente. Ela é parte da frase carpe diem quam minimum credula postero, de uma das Odes (I, 11.8) de Horácio. Literalmente: “Aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã”. Colhe o dia, o tempo presente, Kairós.

Foto: Shutterstock

Carpe diem ganhou relevo com o filme Sociedade dos Poetas Mortos. Em uma escola conservadora, o professor (Robin Williams) estimula seus alunos a verem e viverem o mundo sob uma nova perspectiva, a do carpe diem, do tempo Kairós. A existência dura pouco e deve ser usufruída intensamente. Hoje, quem usa a expressão não pensa em aproveitar seu dia com uma enxada na mão, carpindo capim em algum terreno ou roçado. Pena. Como integrar e colher os tempos na passagem de ano? Chrónos permite planejar dias, antecipar prazos, prever objetivos e investir no tempo. Mas organizar a vida apenas com tempo cronometrado e agenda é infelicidade. Kairós traz espontaneidade, descoberta e desfrute aos momentos vividos (carpe diem). Aión coloca fatos, eventos e existências em perspectiva histórica e presença. Problemas e dificuldades de 2023 fazem parte de ciclos. Cabe lutar. Com escolhas e ações adequadas virão tempos mais brandos. Em 2024, um Novo Tempo deve ser construído, apesar dos perigos. E será, com forte participação do peso econômico, social e político da agropecuária brasileira e de suas lideranças. Panta rei.

Leia também “Floresta, sim; humanos, não”

10 comentários
  1. Edson Carlos de Almeida
    Edson Carlos de Almeida

    Fantástico ! muito obrigado !

  2. Raimundo Penaforte Dias de Sousa
    Raimundo Penaforte Dias de Sousa

    Encantado!

  3. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Impecavel !!
    Sempre aprendo com o Prof Evaristo e isso me engrandece. Muito grata por dividir conosco seus conhecimentos.
    Um Feliz 2024 à todos
    Que seja um ano de Paz e prosperidade para o o nosso Agro tao perseguido atualmente

  4. José Gilberto Jardine
    José Gilberto Jardine

    Sensacional! Última do ano , encerramento magnífico.

  5. José Menezes
    José Menezes

    Possuidor de cultura vasta, Prof. Evaristo nos brinda esta passagem de ano com uma aula de esclarecimentos e explicações que nos remete a um novo ano cientes da tarefa que nos incumbe – *cabe lutar*.

  6. JOSE CARLOS GIOVANNINI
    JOSE CARLOS GIOVANNINI

    QUE SHOW ! QUE AULA !

  7. Josué Corrêa Fernandes
    Josué Corrêa Fernandes

    Apreciei bastante o texto. Seja pelo estilo do autor (brando, suave), seja pelos conhecimentos que transmitem. Parabéns!

  8. Giselle garau batista
    Giselle garau batista

    Amei o texto! Uma aula!!!!

  9. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    940 milhões de km percorridos a 207.000 k/h, órbita da terra em volta do sol e os ladrões comunistas terroristas da Nova Ordem Mundial vim culpar seres humanos por mudanças climáticas é muita idiotice

  10. Guilhermina Gomes De Menezes Montenegro
    Guilhermina Gomes De Menezes Montenegro

    Adorei! Muitos termos cujo significado desconhecia agora fazem sentido. Obrigada!

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