Há exatos 700 anos, em 8 de janeiro de 1324, faleceu em Veneza o mercador, explorador e escritor Marco Polo, autor do Livro das Maravilhas. Dirigida a nobres, burgueses e comerciantes, a obra relatou sua experiência de mais de 20 anos na China e na Ásia. Ele descreveu pela primeira vez aos europeus as realidades chinesas: uso e emissão de papel-moeda (apenas o imperador podia acumular ouro e prata); sistema de preços e impostos; atividades portuárias e correio; lamastérios do Tibet; existência do Japão; grandes dimensões dos juncos marítimos chineses; piratas no Mar de Java etc. Para ter-se ideia de seu ineditismo, o segundo europeu a percorrer as mesmas regiões só o fez no século 19, 600 anos depois.
A família Polo detinha uma rede de comércio voltada para o Oriente, em Constantinopla, no Mar Negro e até nos locais de chegada das rotas leste da seda e norte das peles. O interesse pela Ásia residia na riqueza de seus produtos: especiarias, sedas, tecidos, diamantes… Niccolò e Matteo, pai e tio de Marco Polo, foram pioneiros no comércio com a China, aonde chegaram em 1266.
Hábeis, esses venezianos conquistaram a confiança do imperador mongol Kublai Khan, neto de Gengis Khan. Receberam a oferta do monopólio do comércio com a China e um pedido para estabelecer contato diplomático com o papa. A carta de Kublai Khan ao papa solicitava “enviar até cem homens sábios para ensinar a religião e a doutrina dos cristãos”. E obtiveram um salvo-conduto para circular em todo o Império Mongol.
Comissionados como embaixadores do imperador, eles deixaram a China em 1269. Ao chegarem ao Mediterrâneo, foram informados da morte do papa. Não havia como entregar a carta. Voltaram a Veneza para esperar a eleição do novo papa. Niccolò, ao partir para a China, deixara sua esposa grávida em Veneza. Ao retornar, encontrou um filho com 15 anos, Marco Polo, educado para o métier de mercador.
Dois anos se passaram e o novo papa não havia sido eleito. Temendo comprometer a relação estabelecida com Kublai Khan, os mercadores decidiram retornar à China. Receberam cartas e presentes do legado papal Teobaldo Visconti, depois eleito Gregório X, no conclave mais longo da história. Repartiram para a China em 1272, levando consigo Marco Polo, de 17 anos.
O mais famoso relato de viagem por séculos
Foram três anos e meio para chegarem à China, um deles aguardando na fronteira a autorização imperial para entrar no país. Marco Polo aprendeu o mongol, os usos e as regras da Corte. E entrou a serviço do imperador Kublai Khan. Circunstâncias, competência e temperamento fizeram de Marco Polo um embaixador extraordinário e um excepcional mercador. Poliglota (mongol, chinês, persa, uigur, árabe e dialetos latinos), Marco Polo dominava quatro sistemas de escrita. Em 1277, foi enviado em missão à Província de Yunnan, no sudoeste da China. Depois assumiu funções administrativas em Hangzhou, a “Cidade do Céu”. Foi como embaixador ao Ceilão (1284) e ao Vietnã (1288). Exerceu missões oficiais para o imperador por 20 anos.
Engajou sua viagem de retorno à Europa, por ocasião de uma missão diplomática, pela via marítima do Oceano Índico, até Constantinopla. Após um périplo de 24 anos, retornou a Veneza em 1295. Essa experiência poderia ter-se perdido em relatos orais, se um ano depois Marco Polo não tivesse se engajado no conflito com Gênova. Ele armou uma galé de guerra e foi aprisionado nas costas da Turquia, em combate.
Durante sua prisão no Palazzo San Giorgio, em Gênova, graças a um encontro improvável, ele ditou seus relatos de viagem ao companheiro de cela, Rustichello de Pisa. Rustichello era um escritor profissional, francófono, autor de compilações arturianas. Depois de receber do pai suas notas de viagem, Marco Polo relatava, Rustichello redigia. No texto, escrito a quatro mãos, se alternam o “eu” e o “ele”, num gênero literário novo, difícil de classificar. E completou seu livro ao sair da prisão.
Em língua d’oïl, o livro Le Divisament dou Monde (Descrição do Mundo, ou Livro das Maravilhas), sobre Rota da Seda, China, Tibet, Índia, Birmânia e Sudeste Asiático, se tornou o mais famoso relato de viagem por séculos. Ele demonstrou o imenso potencial de comércio e o interesse da troca de conhecimentos entre o Ocidente e a Ásia.
Mercador avisado, Polo destacou em seu livro as especiarias: canela (cap. 116, 68), galanga (cap. 125, 13), noz-moscada (cap. 162, 10), açafrão (cap. 154, 15), vários tipos de pimenta (pimenta branca, cap. 160, 44; pimenta preta, cap. 174, 7; cubeba, cap. 162, 10), gengibre (cap. 174, 7) e cravo (cap. 116, 7). Descreveu vários tipos de tecidos e apontou onde se fabricavam grossas sedas, laminadas a ouro, com informações sobre preços, distâncias entre cidades e outras, relevantes para comerciantes.
Atrocidades contra cristãos
Seu livro, muito antes da invenção da imprensa, deu origem a muitas cópias manuscritas, das quais 143 são conhecidas. A primeira síntese, ajustando divergências, lacunas e complementos, ocorreu no século passado. Questões geográficas e históricas do texto foram elucidadas com fontes e descobertas arqueológicas chinesas, mongóis, árabes, persas, bizantinas e outras.
A família Polo deu a primeira contribuição ao entendimento mútuo entre os continentes asiático e europeu
Marco Polo faleceu como rico comerciante, casado, com três filhas e desfrutando as honras da República Veneziana. Foi enterrado na Igreja de San Lorenzo, em Veneza.
Ele não foi o primeiro europeu na Corte do imperador mongol. Frades franciscanos, em missão papal, o antecederam. Entre 1245 e 1247, o frade franciscano, futuro arcebispo, Giovanni da Pian del Carpine foi incumbido pelo papa Inocêncio IV de uma missão diplomática e religiosa na China. A mensagem entregue ao grão-cã condenava, com base nos preceitos da Igreja, as atrocidades cometidas por mongóis contra cristãos da Europa Oriental. Sua viagem deu origem ao livro Historia Mongalorum.
A segunda viagem de um ocidental à China foi a do frei flamengo Guilherme de Rubruck, enviado por Luís IX da França, entre 1253 e 1255. Em 1289, Nicolau IV, primeiro papa franciscano, enviou Giovanni Montecorvino à China para pregar o Cristianismo. Em 1294, Montecorvino estabeleceu-se em Pequim. Cinco anos depois, construiu a primeira igreja católica do Império Mongol. Com o declínio da dinastia Yuan, em 1368, a missão católica deixou de existir.
Os relatos em latim desses viajantes destinavam-se a uma elite. Marco Polo foi o primeiro a se dirigir a um público amplo de leitores. Demonstrou grande sensibilidade à diversidade das sociedades. Quase nunca fez julgamentos negativos. Não opôs sua cultura às descobertas. Descreveu-as com respeito. Adotou um tom neutro, parecido ao das futuras enciclopédias. Não deu informações da sua viagem em si. Apresentou dados e observações sobre regiões e nações visitadas. Relatou práticas sociais e religiosas do Extremo Oriente: taoísmo (cap. 74), islamismo, budismo lamaísta, ou oriundas do cristianismo (jacobitas, nestorianos, cristãos de São Tomé) e de animistas.
Das exportações brasileiras, mais de 30% vão para a China
O Livro das Maravilhas instigou navegações, expansão marítima, cartografia e comércio internacional. O infante dom Henrique e Vasco da Gama o leram. Em sua viagem à América, Colombo levou o livro em latim, no qual registrou 366 notas da própria mão. Mais de sete séculos depois, o Livro das Maravilhas envelhece bem. E se valoriza com o tempo.
Os venezianos batizaram seu aeroporto: Marco Polo. Notas italianas de 1.000 liras carregaram sua efígie por muito tempo. O personagem Marco Polo é herói de muitos livros e filmes. Na China, Marco Polo é objeto de pesquisas. Sua estátua foi erigida em Hangzhou, sede do Grupo Alibaba. Grandes eventos terão lugar em 2024 na Itália e em Veneza, em memória do autor do primeiro relato confiável e completo do Oriente. A família Polo deu a primeira contribuição ao entendimento mútuo entre os continentes asiático e europeu.
Setecentos anos depois, China e Brasil, Oriente e Ocidente, são grandes e crescentes parceiros comerciais. Em 2021, o Brasil assumiu a posição de maior receptor de investimentos chineses do mundo. O valor aumentou 208% e alcançou US$ 5,9 bilhões. O setor elétrico respondeu por 50% dos empreendimentos chineses em 2022, seguido pelas áreas de tecnologia da informação (25%), veículos automotores (6%), obras de infraestrutura (6%), agricultura e serviços relacionados (6%), têxteis (3%) e materiais médico-odontológicos (3%). Em 2022, empresas chinesas iniciaram 32 novos projetos no Brasil, o maior valor registrado na história.
Das exportações brasileiras, mais de 30% vão para a China. Em três anos, o país se tornou o maior importador de milho do Brasil (11 milhões de toneladas). Desde 2022, o Ministério da Agricultura habilitou mais de 500 empresas para exportarem milho à China. Graças ao agro, o saldo comercial brasileiro é positivo. A China é o maior importador de soja (70% das exportações) e de carne bovina (67% em 2022), com valor 17 vezes superior ao do segundo importador.
Novos produtos emergem nas relações com o agro. Como na Ásia, o café ganha espaço entre jovens chineses e desloca o consumo do chá. A China superou os Estados Unidos como o país com maior número de cafeterias de marca do mundo: cerca de 50 mil pontos de venda. O Brasil triplicou suas exportações de café para a China com a onda das cafeterias. Em 2023, o volume foi mais de dez vezes maior na comparação com 2017, segundo dados do Cecafé.
Tudo isso, Marco Polo teria imaginado? De certa forma, patrioticamente na prisão, como bom veneto, sim. Sua história e seu livro ensinam sobre aceitar diferentes culturas e visões de mundo, o benefício da tolerância às nações e ao desenvolvimento humano, o convívio com o opositor, e não seu extermínio. Setecentos anos do 8 de janeiro da República de Veneza lembram quanto tudo isso falta aos novos e velhos “imperadores” na ré-pública do Brasil.
Leia também “Carpe diem — Velhos e novos tempos”
Excelente artigo.
Obrigado pelo lindo texto! Especialmente a “espetadinha” final nos imperadores com a “ré-pública”! Genial!
Com tantos brasileiros com o saber do Dr. Evaristo de Moraes, quem são mesmo nossos ministros da Cultura, Ciência e Tecnologia, Economia Agricultura e Meio Ambiente? E nossos ministros das Cortes Superiores?
Não consigo encontrar o artigo de Alexandre garcia da revista 198.
Mais um artigo extraordinário do Dr Evaristo de Miranda. Não fosse por ele e Revista Oeste evento como o dos 700 anos da morte de Marco Polo passaria desapercebido no campo vasto da ignorância e irrelevância da grande mídia. Aprendi muito com todas as informações e o chamado ao verdadeiro diálogo entre contrários. O artigo deu outra dimensão à data do 8 de janeiro. Que da injusta e ilegal prisão surjam maravilhas!
Excelente artigo.
700 anos de história e seu corolário.
Parabéns prof. Evaristo.
Leitura essencial, obrigatória!
Mais um maravilhoso artigo do Dr. Evaristo de Miranda. Merece ser lido por todos os brasileiros.
700 anos nao foram suficientes para as pessoas da ré- publica entenderem qto seria mais simples e produtivo o convivio civilizado com os contrarios.
Quanto aprendizado nos deixou Marco Polo e sua familia. Claro qur tem a mao de Deus nisso
Tomara tudo nao tenha sido em vão
Obrigada Evaristo por nao nos deixar esquecer essa valiosa contribuiçao
Excelente artigo!
Viajei na história! Adorei!
Este artigo dá volta ao mundo e à história! Primeiro os portugueses chegando em Veneza com as especiarias da Índia e agora o Brasil o maior exportador. Viva os Marco Polo e os missionários franciscanos.