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Bandeira brasileira tremula atrás de vidros quebrados no prédio do Supremo Tribunal Federal, após vandalismo do 8 de janeiro em Brasília | Foto: Reuters/Ricardo Moraes
Edição 198

Depois do 8 de janeiro

O tumulto em Brasília completa um ano com centenas de presos sem julgamento — e um cadáver estendido na entrada do Supremo Tribunal Federal

Cristyan Costa
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No dia 7 de janeiro de 2023, a dona de casa Renata Cruz, de 50 anos, embarcou num ônibus na cidade de Pindamonhangaba, no interior paulista, rumo a Brasília. A intenção era protestar contra o recém-empossado Luiz Inácio Lula da Silva, que retornava ao poder depois da eleição mais turbulenta da história do país. Ao chegar à capital federal no dia seguinte, juntou-se a centenas de pessoas em frente ao Quartel General (QG) do Exército. Foi de lá que partiu a marcha até a Praça dos Três Poderes, que se transformou num tumulto generalizado e terminou em depredação de prédios públicos.

Quando o quebra-quebra começou, Renata decidiu voltar ao QG do Exército para escapar da confusão. Ela foi presa pela Polícia Militar do Distrito Federal na manhã seguinte, 9. Os agentes a levaram para um ônibus sem informar o destino. Renata lembra que os ponteiros do relógio pararam numa interminável espera até receber a ordem para desembarcar no abafado ginásio da Polícia Federal. Só saiu de lá para uma cela no presídio da Colméia.

Na cadeia, Renata ficou em uma cela pequena e superlotada, dividiu banheiro com outras presas e tomou banho frio. Desenvolveu crises de ansiedade, perdeu peso e diz ter ficado sem notícias da família do lado de fora.

Renata Cruz, dona de casa | Foto: Arquivo Pessoal

Renata diz que o mês que passou na Colméia deixou sua saúde fragilizada. “Sai de lá com gastrite nervosa, adquiri dermatite e meus cabelos começaram a cair”, afirmou. “Estou fazendo terapia. Minha vida virou de ponta cabeça.”

Centenas de pessoas que participaram dos atos em Brasília naquela tarde tiveram suas vidas transformadas. O pesadelo do cárcere continuou com as limitações impostas pelo uso de tornozeleiras eletrônicas.

Alguns presos têm medo de sair de casa ou da exposição pública. É o caso de uma vendedora de salgados em Limeira (SP) que conversou com Oeste. Ela pediu para não ser identificada. Também presa no QG, a mulher de 33 anos afirma que tem dificuldades para ganhar dinheiro, devido às restrições, e queixou-se do tratamento aos presos. Segundo ela, às segundas-feiras, quem usa tornozeleira tem de ir à comarca local para “bater ponto”.

“Nem os bandidos de verdade fazem isso”, disse. “Não podemos sair aos finais de semana nem para trabalhar. Está bem complicado. Contas atrasadas e geladeira vazia.”

Detida dentro do Palácio do Planalto, a professora aposentada Iraci Nagoshi, de 71 anos, passou oito meses na Colmeia, apesar de ter problemas de saúde. Ao ser solta, passou a fazer tratamento para tentar reverter a paralisia que teve em um dos lados da face.

Iraci Nagoshi, professora aposentada | Foto: Arquivo Pessoal
Purgatório dos inocentes

Há um ano, milhares de vidas seguem sob a tormenta de medidas cautelares arbitrárias. As restrições, como tornozeleira eletrônica e a proibição de uso de redes sociais, não pouparam sequer um autista, de 28 anos, uma idosa septuagenária com extenso prontuário médico de comorbidades e outras dezenas de doentes. Uma das poucas saídas desse purgatório dos inocentes tem sido um “acordo de não persecução penal” da Procuradoria-Geral da República (PGR), oferecido depois de o relator dos casos no Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, autorizar as tratativas dos procuradores com os presos que estavam em frente ao QG do Exército. Assim que foram presos, Moraes inseriu os manifestantes em um dos inquéritos perpétuos que administra no tribunal.

A negociação obriga o réu a assumir uma série de crimes, estabelece o pagamento de multa de R$ 10 mil e submete o “paciente” a um “curso em defesa da democracia brasileira”. Ou o manifestante aceita os termos da PGR, ou corre o risco de seguir para julgamento num dos “lotes” no STF.

Cerca de 30 pessoas já foram condenadas a penas que chegam a 17 anos. As sessões, que inicialmente ocorreram no plenário físico, acabaram transferidas para o virtual, sem transmissão da TV Justiça. Os ministros apenas depositam os seus votos nesse ambiente, que não tem garantias de que as sustentações orais dos advogados são assistidas pelos juízes do STF. Para os detidos na Praça dos Três Poderes, resta esperar a Corte bater o martelo. Mesmo depois de todo esse martírio, ainda há 66 presos na Colmeia e Papuda.

Cleriston pereira da Cunha
Cleriston Pereira da Cunha estava preso desde o dia 9 de janeiro | Foto: Reprodução/Facebook/Cleriston Cunha
O cadáver do 8 de janeiro

Além de violações a direitos de quem não tem foro e o desrespeito a advogados, o primeiro ano depois do 8 de janeiro também ficou marcado pela morte de Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão. Em novembro, ele teve um mal súbito enquanto tomava banho de sol. A defesa tentava tirá-lo há meses da cela por causa do estado de saúde delicado.

No período em que ficou preso, Clezão emagreceu 20 quilos, comia pouco e chegou a usar cadeira de rodas na Papuda. A viúva dele, Jane, relatou que o marido sofreu outros abusos no cárcere, como ficar em um “lugar de castigo”, chamado de “corró”. O empresário de 46 anos tinha também um parecer de soltura da PGR. Desde setembro, a Procuradoria não via mais necessidade de mantê-lo atrás das grades.

Atualmente, dezenas de presos aguardam análise de pedidos de soltura por motivos de saúde similares, todos parados no gabinete de Alexandre de Moraes.

O que mostrariam as imagens que sumiram do Ministério da Justiça? Mais: por que registros de uma data tão importante foram apagados?

Deixaram acontecer?

Após as manifestações, o presidente Lula é cobrado por parlamentares por ter sido omisso. Isso porque a inteligência do governo federal foi alertada mais de uma vez do risco de ataques a Brasília. Ou seja, os congressistas afirmam que o governo poderia ter evitado as depredações.

Em meio à busca por culpados, a pedido do senador Randolfe Rodrigues, o STF afastou do cargo o governador do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha, reeleito três meses antes em primeiro turno. Lula decretou intervenção federal no DF e o então secretário de Segurança do DF, Anderson Torres, foi parar na cadeia.

Devido à pressão da oposição, o Congresso instalou, em maio, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar o que ocorreu no 8 de janeiro. Capturada por governistas, contudo, a CPMI terminou com muitas perguntas sem respostas. Uma delas parece gritante: o que mostrariam as imagens que sumiram do Ministério da Justiça? Mais: por que registros de uma data tão importante foram apagados?

Governador
Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal | Foto: Paulo Henrique Carvalho/Agência Brasília

O ministro Flávio Dino, que relatou ter assistido à confusão de camarote, em entrevista à Rede Globo, disse que a guarda dos vídeos cabia à empresa terceirizada.

O golpe que não existiu

Também não ficou claro por que o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional, G.Dias, aparece nos vídeos do circuito interno do Palácio do Planalto guiando algumas pessoas. G.Dias deixou o governo mas foi blindado e, provavelmente, o episódio será esquecido pelos investigadores.

Sem sucesso para desvendar o lado oculto do 8 de janeiro, as atividades da oposição no Poder Legislativo para interromper o martírio dos inocentes agora recaem sobre três projetos que podem anistiar os detidos, se aprovados. Na virada do ano, Lula optou por deixar os presos de fora do indulto natalino.

Para que a anistia repare as vidas suspensas pelo tumulto do ano passado, é necessária a ação direta do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Os dois estarão ao lado de Lula e dos ministros do Supremo num teatro armado para relembrar a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro — que nunca existiu.


Com reportagem de Tauany Cattan.

Leia também: “O lado oculto do 8 de janeiro”

18 comentários
  1. Ricardo José Dias Fernandes
    Ricardo José Dias Fernandes

    Nunca na história do mundo, um povo foi oprimido sem se revoltar. O que está acontecendo em nosso pPais podem ter certeza não durará muito tempo. Estamos todos atentos e livres, podemos ir e vir ao contrário de alguns.
    Jamais os homens de bem, que prezam a família e seguem os ensinamentos de Deus serão subjugados

  2. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Pois é Cristlyan, tudo isso poderia ter sido evitado se tivessem implantado o voto impresso para auditar e recontar essas urnas nada transparentes. Lamentavelmente, as verdadeiras democracias mundiais que não as utiliza sequer manifestam solidariedade aos 60 milhões de eleitores que não estão convencidos dessa estranha recuperação de um criminoso autoritário e cheio de ódio que no passado destruiu o pais.

  3. Apolinário de Almeida
    Apolinário de Almeida

    Esses desgraçados que tomaram de assalto o poder e colocaram esse ex-condenado na presidência, cometeram o maior erros de suas vidas. Pagarão caro por isso, também em vida. Já que o inferno os aguarda!!! O país humilhado de ter no comando gente que foi presa por roubar o país, isso é um absurdo. Uma mácula indelével dos 524 anos de nossa história. Maldita seja essa gente maligna que prende e tortura inocentes.

  4. Ricardo Leite de Sousa
    Ricardo Leite de Sousa

    Pedimos justiça contra os atos totalitários do Judiciário (STF) do BR.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Na minha opinião, os parlamentares de direita tem o dever de prestar apoio a estes injustiçados.

  6. Paulo César da Conceição
    Paulo César da Conceição

    Estaremos vivos pra ver o Dino preso.

  7. Ana Kazan
    Ana Kazan

    …. E o incrível é que o discurso torto foi de “preservar a democracia”…..

  8. Frederico Oliveira dos Santos Melo
    Frederico Oliveira dos Santos Melo

    Situação complicada e muito triste!

  9. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O Brasil certamente vive o pior momento político e jurídico da sua história de 134 anos de anúncio da república. Ela ainda não foi proclamada.
    O cenário é de total desrespeito à Constituição Federal e Código de Processo Penal além de outras travessuras do Imperador Alenxandrus I, o Calvo, como por exemplo submeter cidadãos comuns a julgamento pelo STF.
    Ou o Congresso, engessado pelos processos engavetados no próprio STF ou agraciados com as verbas das emendas parlamentares alteram os rumos do país, ou os riscos estarão cada vez maiores.

  10. João Brito
    João Brito

    O que me espanta é que não teve um único jurista na elaboração da constituição que prevesse os poderes exacerbados dados ao ministério público e stf. Estamos pagando muito caro por esse deslize dos constituintes.

    1. Herbert Gomes Barca
      Herbert Gomes Barca

      o verdadeiro golpe é desse desgoverno petista aliado aos ditadores de toga

  11. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Governo mais podre da historia. Cada um que depositou seu voto nessa quadrilha deveria se envergonhar para sempre por ter dado um cheque em branco na mão de estelionatários. Infelizmente , o restante da população, que é a maioria, sofrerá as consequencias junto. Queria muito que os ” fazedores de L” tivessem um emblema na testa que os identificassem para serem tratados com a cordialidade que merecem . Alguns até têm, mas outros são enrustidos e fingem surpresa com a desgraça que está assolando o país.

  12. Domingos Henrique Fazan Caramano
    Domingos Henrique Fazan Caramano

    Que triste, Brasil!
    Quando foi que o povo deixou as rédeas de seu destino na mãos de pessoas tão inescrupullosas?
    Um “justiça” que deveria guardar os direitos básicos, de acordo com a Constituição, cometendo tais barbaridades como fariseus vendilhões do templo…
    Ninguém reage?
    Cadê a imprensa, OAB, Direitos Humanos?
    Todos já receberam suas 30 moedas de prata?

  13. MNJM
    MNJM

    Parabéns Chrystian foi td uma grande armação dessa corja q tomou o poder Consórcio Lula/STF.
    Agiora o tirano vem a público declarar q tinham 3 planos p matá-lo, sem apresentar provas.. Um grande artista, p tentar justificar as maldade q inclusive levou um cidadão a morte e as famílias q foram devastadas. Falta dignidade.

  14. RODRIGO DE SOUZA COSTA
    RODRIGO DE SOUZA COSTA

    Quem armou isso para dar legitimidade a um governo que até agora não mostrou a que veio vai pagar caro.

  15. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Se for considerar as penas proporcionais ao atos antidemocráticos, Lula, os tribunais superiores, e os ministros do governo, terão pena de morte e a cambalhada da esquerda perpétua

  16. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Parabéns Cristyan Costa por mais um artigo esclarecedor dos fatos ocorridos em oito de janeiro de 2023.Apenas cito um fato que ocorreu em uma visita de Alexandre de Moraes na Colmeia e na Papuda. Estava acompanhado de Rosa Weber. Experimentou com atitude de sarcasmo a “quentinha”dos.presos políticos, dizendo ser de boa qualidade. Essa não era evidentemente a alimentação que os presos tinham acesso, era de fato uma “marmita falsa”.Nunca vi tamanha atrocidade,Esse ainda é o calvário que os presos políticos enfrentam até hoje no Brasil.

    1. Misampri10
      Misampri10

      E tem gente grande que aprendeu a mentir com cara deslavada.

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