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Foto: Shutterstock
Edição 200

A inteligência artificial nas eleições

O uso da IA precisa de regulamentação. Mas essa necessidade pode virar pretexto para mais autoritarismo

Dagomir Marquezi
Rute Moraes
Rute Moraes
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Você sabia que o transatlântico RMS Titanic não afundou por causa do choque com um iceberg em 1912? Na verdade ele foi torpedeado por um submarino alemão no Atlântico, e o incidente foi abafado para não provocar um conflito internacional. As tensões permaneceram encobertas e dois anos depois explodiram na Primeira Guerra Mundial. Fez parte do acordo a versão “oficial” de que o navio teria batido num iceberg. O cineasta James Cameron recebeu cerca de US$ 800 milhões (de uma sociedade secreta conhecida como Falsununtium) para criar um longa-metragem de ficção e um documentário destinados a reforçar o mito do iceberg.

Imagem falsa do Titanic | Foto: Montagem Revista Oeste/Dall-e
Armas biológicas em Taiwan

Claro que você, leitor de Oeste, não caiu nessa história. Ela representa a mais pura fake news, com um tom ridículo de teoria da conspiração. A imagem não engana ninguém. Foi produzida pela inteligência artificial do site Dall-E.

Mas tem gente que pode acreditar em mentira. E espalhar histórias fajutas como se fossem verdade. O uso desonesto dos recursos de inteligência artificial pode ser especialmente perigoso numa época de eleição.

Um exemplo recente: o Wall Street Journal noticiou que a China estava fazendo uma campanha de desinformação para influenciar as eleições em Taiwan realizadas no fim de semana passado. Entre outras coisas, pressionava os eleitores a escolher um candidato identificado com o regime comunista chinês para evitar uma guerra. 

O governo de Taiwan identificou um pico de 15 mil ataques diários de desinformação nas redes sociais. Uma das fake news constantemente repetida era a de que os Estados Unidos estavam montando um laboratório secreto de armas biológicas em plena capital, Taipei. 

Qual foi o resultado do bombardeio de mentiras do governo comunista chinês sobre os eleitores de Taiwan? A vitória do candidato Lai Ching-te, o mais firme opositor da China, com mais de 40% dos votos. “Entre democracia e autoritarismo, ficamos do lado da democracia”, declarou o presidente eleito no discurso de vitória. “Taiwan vai continuar a caminhar ao lado das democracias ao redor do mundo.” A implacável máquina de fake news de Pequim parece ter dado um tiro no próprio pé. 

Lai Ching-te, presidente eleito em Taiwan na semana passada (2017) | Foto: Wikimedia Commons
A prisão de Donald Trump

O que temos até hoje de concreto no terreno da inteligência artificial? Temos o papa Francisco desfilando na sua deslumbrante jaqueta térmica branca. Uma ampliação bastava para ver que a mão dele estava borrada, falsa.

Foto falsa do papa Francisco com jaqueta branca | Foto: Reprodução
Detalhe da foto falsa do papa Francisco com jaqueta branca | Foto: Reprodução

Outro caso muito citado foi o das imagens da falsa prisão de Donald Trump. Falsificação feita provavelmente por quem quer prejudicar a candidatura do ex-presidente. Resultado: ele está ganhando de lavada as primárias do Partido Republicano.

Foto falsa de Donald Trump sendo preso | Foto: Reprodução

A falsidade é claramente revelada também pela mão. A maçaroca de dedos indica que é criada por IA.

Detalhe da foto falsa de Donald Trump sendo preso | Foto: Reprodução

Claro que os recursos de inteligência artificial também vão sendo aperfeiçoados. Veremos falsificações melhores com o tempo. Mas as defesas contra a manipulação também ficam mais eficazes. Tente pedir ao programa Dall-E algo como “rei Charles de roupa punk fazendo a barba num banheiro sujo”. O aplicativo se nega a retratar qualquer pessoa real. O que dificulta o trabalho dos falsificadores.

Um podcast da revista Economist se dedicou a mostrar técnicas para identificar falsidades. Explicou como áudios gerados por IA podem ser desmascarados, como a cor do rosto das pessoas indica a manipulação da imagem. 

E existe o perigo do deepfake. Você encaixa o rosto à voz de uma pessoa no vídeo de outra. E faz, por exemplo, Silvio Santos apresentar o Jornal Nacional.

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Ou transforma Sylvester Stallone em Charlie Chaplin.

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O deepfake também está sendo aperfeiçoado, e haverá um momento em que será impossível distinguir o falso do real. É inevitável. A questão é como combater isso. Proibindo a evolução da tecnologia? Ou educando as pessoas para não caírem nesses golpes? Criminalizando ou educando os usuários de redes sociais?

Atalho para o autoritarismo

Acabou a fase em que a inteligência artificial era monopólio de nerds. Agora qualquer um tem uma inteligência artificial para chamar de sua. Todo mundo pode ter seu Bard, seu ChatGPT, seu Bing, seu Copilot, seu Dall-E. A tecnologia se popularizou tanto que a Microsoft lançou o primeiro teclado com um botão Copilot, a primeira mudança significativa no velho teclado QWERTY em três décadas. Quem ainda resiste ao mundo da IA pode entrar nele até sem querer, esbarrando no botão. 

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Quanto mais gente entender esse novo mundo, maior vai ser a consciência sobre ele e menor o risco de pessoas desonestas se darem bem. Onde há luz, existe evolução. Mas uma revolução dessas pode gerar um efeito contrário — uma onda de paranoia e repressão usando a tecnologia como bode expiatório.

Levantar o fantasma das fake news alimentada por inteligência artificial pode virar um atalho para o autoritarismo. “É perigoso deixar para o governo decidir o que é uma fake news”, disse a professora de jornalismo Pae Jung Kun, da Universidade de Seul. “Isso enfraquece a habilidade das mídias noticiosas em cobrar o governo.”

Metade do mundo vai votar

A questão ficou ainda mais séria neste ano. “Em 2024, mais da metade da população mundial vai às urnas”, diz matéria da revista Time. “4,2 bilhões de cidadãos de aproximadamente 65 países no que, à distância, pelo menos parece haver um espetáculo de governo democrático. Visto de perto, no entanto, o quadro é mais nebuloso, e luzes vermelhas de alerta piscam na escuridão.”

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Em março, por exemplo, Vladimir Putin, no poder da Rússia desde 2000, vai disputar a Presidência. E ninguém duvida de que vai ganhar, ficando no poder até 2030. Em abril, a maior democracia do mundo, a Índia, vai decidir se o atual presidente Modi permanece num terceiro mandato. Em junho haverá eleições para o Parlamento da União Europeia — e espera-se uma guinada forte para a direita, especialmente no campo da imigração. Em junho haverá eleições no México, um país hoje dominado por facções criminosas. E, em novembro, será a vez dos Estados Unidos, aparentemente com outra disputa entre Joe Biden e Donald Trump.

Uma festa democrática, certo? Nem tanto. O conceito de democracia está sendo relativizado e se tornando uma palavra vazia. As redes sociais e a inteligência artificial podem ser corretamente regulamentadas. Ou se tornar os bodes expiatórios para acabar de vez com as liberdades. “2024 pode ser o ano do vai ou racha para a democracia no mundo”, declarou à revista Time o diretor do Instituto sueco V-Dem, que monitora a “complexidade do conceito de democracia”.

O uso de inteligência artificial precisa sem dúvida ser regulamentado. Especialmente em épocas eleitorais. É preciso deixar claro se uma foto, um vídeo, uma fala foram criados artificialmente. Por exemplo com uma marca d’água que deixe claro ao usuário que ele está vendo uma mentira (como o Titanic ter sido torpedeado). E quem usar a IA com intenção criminosa tem que ser punido com a legislação comum e específica.

Imagem falsa de OVNI sobrevoando a Casa Branca | Foto: Dall-E

O problema é quando essa regulamentação é usada como censura. Isso pode virar um pântano jurídico, uma terra de ninguém, onde uma opinião contrária ao regime no poder se torna fake news por decisão de algum burocrata ou juiz militante. 

A inteligência artificial é um instrumento poderoso de conhecimento, criação, análise. Se for usada de forma criminosa em eleições, os responsáveis pelo crime devem ser responsabilizados e punidos. Mas essa realidade ainda é fluida demais. Os inimigos da liberdade estão de olho nas oportunidades de usar a IA como pretexto para tornar o ambiente ainda mais irrespirável.

***

Em dezembro de 2023, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), disse a interlocutores que a regulamentação da inteligência artificial seria a prioridade da Casa neste ano, principalmente por causa das eleições municipais. A ideia é antecipar uma possível regulamentação que pode ocorrer por intermédio do Judiciário. A preocupação maior é com a chamada “deep fake“, que usa a IA para trocar o rosto de pessoas em gravações, manipular falas ou simular a voz de alguém. Essas distorções poderiam poluir a campanha eleitoral.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também trabalha com o tema. Uma comissão especial temporária foi criada em agosto de 2023 para debater o assunto. O texto final deve ser apreciado ainda no primeiro semestre deste ano. Inicialmente, os trabalhos da comissão teriam fim em dezembro do ano passado, mas o prazo de funcionamento foi prorrogado até abril. O presidente do colegiado é o senador Carlos Viana (Podemos-MG), e o relator do texto é o senador Eduardo Gomes (PL-TO).

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Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado Federal | Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O principal texto analisado pela comissão, o Projeto de Lei nº 2.338/2023, é de autoria de Rodrigo Pacheco. A matéria é derivada de um anteprojeto apresentado por uma comissão de juristas. O PL estabelece diretrizes gerais para o desenvolvimento, a implementação e o uso de sistemas de IA no Brasil. Mas não menciona as eleições. O teor do projeto deve ter alterações até a apresentação do relatório final.

A matéria prevê a “participação humana no ciclo da inteligência artificial”. E também a “rastreabilidade das decisões como meio de prestação de contas e atribuição de responsabilidades a uma pessoa natural ou jurídica”. O texto estabelece que pessoas atingidas de “maneira significativa” por decisões da IA podem requisitar revisão humana. É prevista uma multa de até R$ 50 milhões por infração ou, no caso de empresas, de até 2% do faturamento.

Outras punições possíveis são a proibição de participar dos ambientes regulatórios experimentais e a suspensão temporária ou definitiva do sistema. O texto dá ao Poder Executivo a prerrogativa de decidir qual órgão vai tratar da fiscalização do setor. 

O crime comum e o específico

Relator da matéria, Gomes explicou a Oeste que a discussão em torno do texto tem sido “ampla” e “plural”. “Foram mais de 130 audiências públicas, entre a comissão de juristas e a Comissão Especial de Inteligência Artificial, e, mesmo assim, recebemos a cada dia a solicitação de participação efetiva de setores importantes da economia e da sociedade”, disse. O parlamentar reconhece que o assunto é “desafiador”.

Senador Eduardo Gomes (PL-TO) | Foto: Roque de Sá/Agência Senado

“Precisamos filtrar aquilo que já é crime comum, mas que fica abrigado no ambiente digital, e que insistimos em regular como uma coisa específica da internet”, continuou. “Mas os crimes de ofensa à honra, de falsidade ideológica, de fake news também encontram amparo na legislação comum. Para aprimorar uma legislação que corresponda a essa velocidade, temos que começar com o ponto principal, que é a identificação, a autoria e a responsabilidade de utilização dos meios de rede para identificar o responsável pela informação.”

A ideia é criar uma lei que acompanhe as mudanças promovidas pela nova tecnologia no mundo todo. A União Europeia se debruça sobre o tema desde abril de 2023 por meio de uma comissão especial no Parlamento. Em dezembro, a UE aprovou um acordo provisório sobre uma legislação inédita no mundo para regular a IA. O texto ainda deve ser votado pelo Parlamento e pelo conselho europeu. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden assinou, em novembro, uma ordem executiva — equivalente a um decreto — reunindo mais de 25 agências do governo para supervisionar a IA.

O presidente Joe Biden faz comentários na assinatura de uma Ordem Executiva sobre Inteligência Artificial, na Sala Leste da Casa Branca (30/10/2023) | Foto: Casa Branca/Adam Schultz/Domínio Público

A resolução da UE prevê, por exemplo, que é obrigação das empresas que produzem a tecnologia da IA serem transparentes. Nesse caso, imagens manipuladas teriam que deixar claro que o conteúdo foi gerado por inteligência artificial. As empresas também seriam obrigadas a cumprirem a legislação local sobre direitos autorais.

‘Nova maneira de legislar’

No texto do Senado, a ideia é que a regulamentação da IA fique a cargo de um órgão escolhido pelo Executivo. Mas, segundo o relator, tal organização deve ter “mandatos independentes” que ultrapassem os do Executivo. O objetivo, segundo ele, é manter a “isenção necessária”. No entanto, segundo Gomes, os detalhes sobre quem vai ser o responsável pela regulamentação serão definidos apenas no retorno dos trabalhos parlamentares, no próximo mês.

Para o relator, um dos principais pontos da proposta é a necessidade de responsabilização e de identificação da autoria das ações envolvendo a IA. “Há um consenso de que, se não tivermos responsabilização, autoria identificada, dificilmente conseguiremos frear essa avalanche que vem de tecnologias novas, cada vez mais eficientes, que contaminam o processo legítimo eleitoral e as relações comerciais no ambiente de rede.”

Gomes destacou que o projeto deve inaugurar uma “nova maneira de legislar”. O texto, segundo ele, deve remeter a uma “lei viva”, com instrumentos de “aferição” e de “atuação rápida”. Além disso, o parlamentar ressaltou que é preciso ter cuidado para o projeto não “abrir espaço” para a censura prévia e o cerceamento da liberdade de expressão. Para isso, ele acredita que o projeto deve ser “simples” e “eficiente”.

A ideia é que até abril o plenário do Senado aprove o texto e que ele seja encaminhado para a Câmara. O senador acredita que o texto deve retornar ao Senado até o fim do ano, já com a redação final. Conforme Gomes, isso não atrapalharia as eleições, pois algumas questões podem ser regulamentadas antes, como a identificação da origem dos conteúdos e a validação deles, com algum tipo de “marca d’água” para identificar e deixar o campo de debate “mais seguro”.


@dagomir
dagomirmarquezi.com

Leia também “A velha educação está morrendo”

5 comentários
  1. Jorge
    Jorge

    Hipótese da inteligência artificial na ciência política
    Parlamentares decidem regulamentar a inteligência artificial, surge um impasse, o que acontecerá quando a inteligência artificial cruzar os históricos dos parlamentares brasileiros com as notícias de jornal e chegar a conclusão detalhada de que o povo, está sendo enganado, pelos partidos, pela ocultação da necessidade de uma REFORMA PARTIDÁRIA ?
    Isso é bem possível de acontecer !

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    O que não pode acontecer é ficar centralizado em Brasília, em órgão como o TSE. Porque corre o risco de ficar na mão de figuras fora da lei como Alexandre de Moraes.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Nem se preocupe que o estadista invejado no mundos todo, Luiz Inácio Assaltante da Silva vai colocar a pessoa certa pra cuidar disso, é a mimistra da ciência e tecnologia Luciana Santos, porque de ciência e tecnologia quem entende é alí, e ela já providenciou a assistente pra dar palestras em todo Brasil até as eleições é a phd em Inteligência Artificial, Dra. Fátima Bezerra, ela é tão capaz que o cérebro dela já nasceu Artificial

  4. Cícero Ruggiero
    Cícero Ruggiero

    Muito boa análise, porém no Brasil aparelhado de hoje não adianta nenhuma regra ou lei. O consórcio Lula-STF é que vai decidir o que é fake News. Se criarem um novo órgão para fiscalizar a IA, só terá gente de esquerda, os comunistas decidindo tendenciosamente o que é Fake News.

  5. Joao Pita Canettieri
    Joao Pita Canettieri

    Revista Oeste e toda a bancada de excelentes Jornalistas *NÃO ABANDONEM O BRASIL* ????????

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