“Progressista” — termo com que a esquerda pós-soviética passou a se apresentar ao mundo — é uma palavra muito repetida, mas pouco compreendida. O que é um progressista, afinal? De início, posso falar que, dentro da minha área de formação, a antropologia social, a ideia de progressismo está inexoravelmente atrelada ao século 19. Nesse contexto, o progressista era o sujeito que acreditava estar em posição de apreender a totalidade (as “leis gerais”) da história, por meio da adoção, por analogia, dos métodos das ciências naturais, segundo o cânon positivista do período. Se Darwin descrevera as leis que supostamente presidiam a evolução da natureza, autores como Herbert Spencer, Henry Lewis Morgan, Edward Tylor, James George Frazer, entre muitos outros, pretendiam estar fazendo o mesmo em relação à cultura e à história, compreendidas de maneira teleológica (do grego telos: “meta”, “alvo”, “objetivo”) e unilinear, ou seja, tendo por destino comum a toda a humanidade um mesmo ponto de convergência.
Alguns daqueles autores passariam a ser conhecidos na história das ideias como “darwinistas sociais”, embora Spencer, por exemplo, tenha começado a formular suas teses antes da publicação de A Origem das Espécies. Se a obra de Darwin causou, sem dúvida, um impacto profundo em todo o universo intelectual e científico da época, o fato é que ela própria se inseria num “clima de opinião” mais amplo, que vinha desde o século anterior, e que já apostava na concepção de que a natureza — o homem, incluso — evoluía gradualmente de formas mais simples para formas mais complexas. Em 1794, por exemplo, ninguém menos que Erasmus Darwin, avô de Charles, escrevera em seu Zoonomia uma síntese do naturalismo teológico de então, advogado, entre outros, por Kant:
“O mundo mesmo deve ter sido gerado antes que criado; ou seja, deve ter sido gradualmente produzido a partir de pequenos começos, desenvolvendo-se pela ação de seus princípios inerentes mais do que através de uma súbita evolução total vinda do fiat do Todo Poderoso. Que ideia magnífica do poder infinito do grande arquiteto! A Causa das causas! O Pai dos pais! Ens Entium! Pois, se nos for permitido comparar infinitos, pareceria requerer uma maior infinidade de poder causar a causa dos efeitos do que os efeitos eles próprios.”
No contexto das ciências sociais do século 19, as diferenças observadas, num eixo espacial e geográfico, entre as muitas culturas humanas foram transpostas para uma escala temporal, na qual os homens eram classificados de acordo com o seu grau de evolução. Era comum na época a adoção de uma divisão tripartite da história cultural da humanidade, separada em “fases” evolutivas. Presente já na antropologia filosófica iluminista — embora alguns autores, dentre eles Eric Voegelin e Karl Löwith, façam recuar essa forma mentis até o século 12, com a separação proposta pelo monge calabrês Joaquim de Fiore (1131-1202) entre as “três Idades da História”, correspondentes às três pessoas da Santíssima Trindade —, essa divisão celebrizou-se no século 19 por meio da “lei dos três estados” de Augusto Comte, que influenciou a classificação evolutiva de Morgan em “selvagens” (povos caçadores-coletores), “bárbaros” (agricultores) e “civilizados” (as sociedades complexas da Europa e dos Estados Unidos); e também a de Frazer (“magia”, “religião” e “ciência”). Segundo uma famosa formulação de Morgan na obra A Sociedade Antiga (1877), o progresso de fase a fase era concebido como sendo “tão natural quanto necessário”.
Por meio da observação comparativa entre sociedades distintas no tempo e no espaço, os evolucionistas sociais acreditavam ser possível registrar a totalidade do progresso cultural humano; registrar, inclusive, os sinais de transição entre as etapas evolutivas, as quais sempre deixavam vestígios de etapas anteriores. Em A Cultura Primitiva (1871), Tylor cunhou o termo “sobrevivências” para se referir a esses vestígios. Elas eram, para o antropólogo, aquilo que os fósseis são para o paleontólogo.
Foi também no século 19 que o progresso cultural humano deixou de ser um mero objeto de estudo e converteu-se em ideologia e programa político, dando origem ao que, efetivamente, compreendemos ainda hoje por “progressismo”. Seguindo a exortação de sua famosa 11a Tese sobre Feuerbach, pela qual o filósofo já não deveria se limitar a interpretar o mundo, senão transformá-lo, Karl Marx elaborou a sua filosofia milenarista da história. Se os antropólogos sociais se limitavam à classificação e interpretação da evolução cultural, Marx queria pôr esse conhecimento a serviço da revolução. Seu companheiro Friedrich Engels baseou-se integralmente no livro de Morgan para escrever A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), projeto que Marx morrera sem conseguir realizar, e que consistia em utilizar as mais recentes descobertas antropológicas da época para comprovar a tese do materialismo histórico.
À diferença dos antropólogos sociais, para Marx e Engels as “sobrevivências” — artefatos, instituições, costumes e tradições de épocas e povos tidos por menos evoluídos — não deveriam ser preservadas e documentadas, mas superadas, por constituírem obstáculos à marcha histórica rumo ao comunismo. Surge então o anátema definidor do progressista: o “reacionário” — transposição do conceito de “sobrevivência” para a esfera do juízo político. O progressista é, essencialmente, alguém que vê com desprezo aqueles a quem considera reacionários. Ao longo da história, sempre que progressistas conquistaram meios para o exercício do poder, esse desprezo converteu-se invariavelmente em violência física ou moral. Marx e Engels levavam muito a sério — mais do que os neomarxistas contemporâneos gostariam de admitir — a noção que, inspirado em Darwin, Spencer denominou de “a sobrevivência do mais apto”.
No capítulo 14 de Revolução e Contrarrevolução na Alemanha (1851-1852), por exemplo, Marx e Engels criticam o reacionarismo do movimento pan-eslavista, fazendo uma defesa da superioridade (racial e cultural) germânica e da necessidade de esmagar a tentativa dos eslavos de recuperar uma existência nacional independente em face da unificação alemã. Os autores argumentam que o destino histórico “inevitável” daquelas “nações moribundas” (sic) era o de “permitir que se completasse esse progresso de dissolução e de absorção pelos seus vizinhos mais fortes”, a saber, os alemães. Ressaltando que aquela certamente não seria uma perspectiva agradável aos “sonhadores pan-eslavistas”, perguntavam: “Mas poderiam eles esperar que a história recue mil anos a fim de agradar alguns grupos humanos tísicos (sic) que, em toda a parte do território que ocupam, estão penetrados e rodeados de alemães?”.
Insistindo no caráter reacionário e contrarrevolucionário daquelas etnias, Marx e Engels prosseguem: “Traidores da causa popular, partidários e principais suportes da cabala do governo austríaco colocaram-se, eles próprios, aos olhos de todas as nações revolucionárias, na posição de fora da lei”. Ainda que os primeiros esforços pan-eslavistas já houvessem sido frustrados em 1848, os autores acresciam um alerta: “Se eles tentarem de novo, com pretextos semelhantes, aliar-se à força contrarrevolucionária, o dever da Alemanha é claro. Nenhum país num estado de revolução e envolvido numa guerra externa pode tolerar uma Vendeia no seu próprio seio”. Por “Vendeia”, Marx e Engels referiam-se ao motim contrarrevolucionário naquela província ocidental da França, desencadeado em 1793 pelos realistas franceses, que utilizaram o campesinato local para a luta contra a Revolução. O motim foi reprimido com brutalidade e os realistas foram massacrados, no episódio que alguns historiadores (ver, por exemplo, Reynald Secher) consideram como o primeiro genocídio moderno.
No regime soviético, desde os tempos de Lenin, e em particular durante o Grande Terror stalinista, acusações de “reacionarismo” formavam a base para toda sorte de perseguição política. Stalin e Trotsky acusaram-se mutuamente de “reacionários” até que o primeiro encerrasse de vez a discussão com o irretorquível argumento da picareta
No artigo “O Conflito Magiar”, publicado em janeiro de 1849 na Nova Gazeta Renana, periódico editado por Marx, Engels demonstrara o mesmo desprezo pelos povos “reacionários”, por ele qualificados com o termo Völkerabfälle, cuja tradução aproximada seria algo como “lixo étnico ou racial” (Völker = plural de “povo”, “nação”, “etnia” + abfälle = plural de “lixo”, “detrito”, “dejeto”). Para o autor, aqueles povos eram “fanáticos porta-estandartes da contrarrevolução”, e continuariam assim “até o seu completo extermínio ou perda de seu caráter nacional”. A expressão original em alemão que aqui traduzo por “completo extermínio” é gänzlichen Vertilgung, sendo que este último termo, um substantivo feminino, costuma ser usado para se referir ao extermínio de pragas e insetos. Segundo George Watson, historiador da literatura socialista (ver A Literatura Perdida do Socialismo, 1998), essa era uma das primeiras vezes na história contemporânea em que o genocídio era advogado de maneira tão explícita.
No regime soviético, desde os tempos de Lenin, e em particular durante o Grande Terror stalinista, acusações de “reacionarismo” formavam a base para toda sorte de perseguição política. Stalin e Trotsky acusaram-se mutuamente de “reacionários” até que o primeiro encerrasse de vez a discussão com o irretorquível argumento da picareta. Na China de Mao Tsé-Tung, os “reacionários” eram silenciados com tiros na nunca. E até as crianças eram incentivadas a “matar automaticamente os reacionários” (ver, sobre isso, Mao: A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday).
Mas não foram só os comunistas que usaram e abusaram do expediente. Os nazistas — seus “gêmeos heterozigóticos”, na expressão de Pierre Chaunu — também apontavam o dedo para os seus “reacionários”: dentre eles, é claro, os judeus. Não se pode esquecer que a Canção de Horst Wessel, hino do Partido Nacional-Socialista Alemão, começa com aquele sentimentalismo tão típico da alma revolucionária, rogando aos camaradas “fuzilados por reacionários e pela Frente Vermelha” que marchassem em espírito nas fileiras nazistas.
Donde se conclui que, diante do histórico dos dois grandes monstros totalitários do século, ambos pretensos representantes do progresso da humanidade, há que se admitir — a exemplo de Nelson Rodrigues — alguma vantagem, comparativa que seja, em ser chamado de “reacionário”. Parece restar evidente que muito pior seria identificar-se com aqueles que, ao longo da história, têm acusado os outros de sê-lo. Há quem acredite que o progressista é o sujeito de mente aberta, que ilumina o caminho necessário para chegarmos todos ao estágio final de evolução humana, o fim da história. Mas, como diria G. K. Chesterton, não devemos abrir tanto a nossa mente a ponto de o cérebro cair.
Leia também “O ataque totalitário às famílias”
Artigo bem escrito e bem fundamentado. Gostei muito. Sempre me intrigou o fato de chamarem-se “progressistas” pessoas que abraçam teoria econômica totalmente desmontada por análises econômicas básicas e sérias, imediatamente após a eclosão das atrocidades cometidas em seu nome, propõem retrocesso no processo civilizatório através da normalização das patologias sociais, culminam em violência e opressão de liberdades individuais ou coletivas (mais um retrocesso no processo civilizatório) e se mantém no poder através da falsificação de ideias e fatos. Compreende-se logo o óbvio, quando se trata de esquerdosos: é pura mentira.
Excelente artigo, como sempre! Resumo da seguinte forma: progressismo é o “progresso” ao totalitarismo.
Eu não aguento esse Flávio Gordon, é muito difícil de entendê-lo. Eu leio o século do nada, aliás começo a ler me perco, começo a ler a escola de Frankfurt, me perco, começo a ler o suicídio do ocidente, me perco. Tudo bem são livros, mas Flávio Gordon é uma reportagem, é muito intelecto pra meu micro conhecimento
Excelente artigo, informativo e interessante!
Brilhante análise !
Obrigado pela aula. Sempre um prazer intelectual ler os teus artigos. Com a apreensão desse texto, eu pude entender um pouco mais sobre a hipocrisia dos chamados progressistas. Se eu não entendi errado, poderia resumir a mensagem da seguinte forma:
Vendem-se como intelectualmente e humanamente a frente dos demais mas não passam de cínicos, sadomasoquistas e imorais.
Exato.
Linguagem hermética. Capisquei um nadica de nada. Sou burro.
Progressista é um termo ‘sequestrado’ pelos esquerdopatas porque os faz parecer ‘do bem’ e a favor de ‘modernizar’, mas eles são exatamente o oposto, e nós jamais deveríamos nos referir a eles como progressistas e sim ‘regressistas’ pois só querem regredir a sistemas que definitivamente não funcionam.
Bem colocado.
Brilhante.