“Através das areias do mundo inteiro,
seguida pela espada flamejante do sol,
ela migra, em direção a oeste,
para as terras da noite.“
(James Joyce, Ulisses)
A areia é o recurso natural mais utilizado do planeta, depois da água. Seu consumo anual supera 50 bilhões de toneladas. O suficiente para construir um muro de 27 metros de largura e 27 metros de altura em torno do globo terrestre. Todo ano. A percepção dos impactos ambientais da extração de areia, das decorrências negativas aos países fornecedores e da pressão global sobre esse recurso natural ainda é muito limitada.
Polivalente, a areia está presente na composição de chips de computadores, celulares, detergentes, papel, cosméticos, circuitos de filtragem e na exploração de petróleo. Corresponde a mais de 70% da composição do vidro e é essencial na construção civil, de casas a estradas, de pontes a edifícios.
O vidro é um material cerâmico composto de areia, calcário e feldspato. Produzir vidro é simples. Basta misturar esses componentes e fusioná-los a uma temperatura elevada. Ele se forma naturalmente no vulcanismo (obsidiana), no impacto de meteoritos (moldavita) ou se um raio atinge a areia (fulgurito).
Sua fabricação é conhecida há milhares de anos na Europa e na Ásia. Nenhuma tribo indígena ou civilização pré-colombiana (capazes até de calcular a órbita de Marte) sabia fabricar metais ou vidro. Nem inventaram a roda! Tudo era arrastado. Como segue em boa parte da América Latina.
Os vidros adquirem a forma desejada através de moldes e se dividem em três tipos básicos: plano, de embalagem e para uso doméstico. O Brasil produz 1 milhão de toneladas de vidros de embalagem por ano: garrafas de bebidas, potes de alimentos, frascos de remédios etc. Cerca de 45% da matéria-prima utilizada são cacos. Essa reciclagem permite grande economia de energia na fabricação.
O vidro para uso doméstico habita residências e restaurantes: copos, jarras, tigelas, xícaras, pratos, tupperwares, travessas refratárias (Pyrex), lâmpadas, lustres etc. Muitos vidros planos são fabricados, em chapas, para a construção civil e a indústria automobilística: lisos, impressos, refletivos, antirreflexo, curvos, temperados, laminados, aramados, cristais, serigrafados etc. Além das fibras de vidro para isolamento, espelhos e outras aplicações.
Se para vidros não falta areia, a demanda da construção civil é insaciável. Estudo na New Scientist estimou o crescimento da demanda mundial por areia em 45% até 2060. O consumo atual já ultrapassa o da renovação natural e não é sustentável. Poucos sabem ou imaginam: a areia é rara. E movediça.
Rochas se transformam em pedriscos e grãos de areia em processos erosivos milenares. A areia é arrastada por quilômetros pelos rios até chegar ao fundo dos oceanos e às praias. O barramento de rios reduziu esse processo. Quase metade da areia e do pedrisco retirados por ano não será reconstituída.
Pesquisa das Universidades de Leyde e Utrech, na Holanda, com base em projeções demográficas, do crescimento econômico e da intensa urbanização na Ásia e na África, estimou um consumo adicional de areia de 3,2 bilhões de toneladas anuais, podendo chegar a 4,6 bilhões nos próximos 40 anos.
Está errada a boutade sobre o engano de vender gelo no Ártico e areia no Saara. Vender areia é um grande negócio. A areia do Saara e de desertos da Arábia tem origem na erosão eólica. Transportada e trabalhada pelo vento, seus grãos são pequenos, lisos e arredondados. Muito finos. E se comportam como um líquido. Ela não serve como agregado na fabricação de concreto.
Apesar das dunas a perder de vista, o Catar é hoje um dos maiores predadores da areia marinha de outros países. As famosas ilhas artificiais (Palm Islands) em Dubai, com ramos articulados a uma península em forma de palmeira, exigiram a extração de mais de 100 milhões de toneladas de areia do fundo do mar e esgotaram as reservas do Emirado. O edifício mais alto do mundo, o Burj Khalifa, foi totalmente construído com areia trazida da Austrália: quase 50 mil toneladas. São 828 metros de altura, 160 andares, recobertos de 168 mil metros quadrados de vidro e armados sobre 110 mil toneladas de concreto. Os imponentes edifícios de Dubai e do Catar, a construção de suas estradas e obras de infraestrutura recorreram e recorrerão à importação de areia. Pirâmides de areia sobre a areia, como o homem néscio na parábola evangélica (Mt 7,24)?
Emirados Árabes Unidos, China e Singapura importam muita areia. Em quatro anos, a utilização de areia na construção civil na China superou a dos Estados Unidos em um século. Juntos, esses países criaram uma ameaça ecológica inédita no planeta, distante da atenção da mídia ou de ONGs: a exploração insustentável de areia. Para atendê-los, nações pobres não hesitaram em sacrificar suas praias, rios, ilhas e fundos marinhos.
Na Indonésia, o roubo e a extração de areia afetou faixas inteiras de áreas costeiras, como em Palu Bay, em Celebes. Mais de 18 milhões de toneladas de areia foram extraídas todos os anos desse litoral e de ilhotas. Parte para construir as Rodovias Trans-Borneo e Trans-Papua. Parte para exportação.
Ilhas e praias desapareceram, sobretudo no Estreito de Macáçar e em países asiáticos, devido à exploração predatória dos fundos marinhos para atender, essencialmente, a demanda da construção civil na China, nos Emirados Árabes Unidos e outros. Pelo menos 24 ilhas indonésias pereceram na ampliação de Singapura.
Em 50 anos, para acompanhar seu crescimento econômico, a cidade-estado de Singapura estendeu-se sobre o mar. Um recorde mundial de crescimento territorial: mais de 20% em 40 anos. Tudo com areia importada da Indonésia, da Malásia e do Camboja: cerca de 600 milhões de toneladas em 20 anos. Singapura adicionou mais de 80 quilômetros quadrados de terras (areia) em quatro décadas. E prevê “crescer” mais 100 quilômetros quadrados até 2030.
A areia é usada para ganhar terra no mar, ou águas territoriais, na Ásia. Prática comum da China é depositar areia em recifes de corais para ganhar terras. Essas ilhas artificiais no Mar do Sul da China, demonstração da força e da engenharia chinesas, causaram reações dos países vizinhos. As Filipinas recorreram contra a China na Corte Permanente de Arbitragem, em Haia. O tribunal decidiu a favor das Filipinas em 12 de julho de 2016. A China não reconhece nem a decisão nem a jurisdição do tribunal. Ela não escreve livros de areia, como Jorge Luis Borges, e segue militarizando as Ilhas Paracel e criando ilhotas artificiais no arquipélago Spratly.
Quando a areia é bombeada do fundo marinho, a centenas de metros ou mesmo a quilômetros de ilhas e ilhotas, formam-se depressões e crateras. A areia restante desce e escoa lentamente para preencher esses vazios, comprometendo a existência de praias, ilhas e vida marinha. Uma tragédia vivida por pescadores tradicionais e pela população litorânea nesses países.
A dragagem da areia afeta diretamente flora e fauna marinhas. Navios carregados com areia lançam ao mar as porções mais finas e deixam uma pluma de turbidez, por quilômetros no entorno das áreas de extração. Os fundos marinhos são a chave da cadeia alimentar. Ali vivem microrganismos, algas, corais, invertebrados e peixinhos. Eles são a base alimentar de peixes maiores e de outros vertebrados nos elos sucessivos da cadeia alimentar. Ao tocar o fundo marinho, impacta-se toda a cadeia alimentar, incluindo a pesca.
A situação ficou grave a ponto de os governos da Indonésia, Tailândia, Malásia, Camboja e Vietnã proibirem a venda de areia marinha. Com isso, o preço da areia subiu de forma astronômica. E também a exploração e o tráfico ilegal de areia. Surgiu outra forma de pirataria, já tradicional e antiga na região, como reportado por Marco Polo no século 13 (Revista Oeste, edição 198): a exploração e o comércio clandestinos de areia.
Nos grandes e reais desafios ambientais planetários, enquanto a produção e o acúmulo desenfreados de plásticos criam “ilhas” artificiais, a extração de areia dos fundos marinhos faz ilhas naturais desaparecerem
Em certos locais, por ser a areia tão rara e cara, as praias são literalmente roubadas à noite. Extrair e vender areia é meio de subsistência. No Marrocos, metade da areia utilizada na construção provém de retiradas clandestinas no litoral. Na Índia, com o boom imobiliário, vários cartéis controlam quase completamente o fornecimento de areia à construção civil. Na disputa por terrenos com areia, até mortes são registradas.
A oferta não acompanha a demanda. O crescimento demográfico, urbano e econômico aumentará a demanda por areia para construir casas, edifícios, escritórios, fábricas, estradas, centros comerciais etc. Todas as construções utilizam vidros e concreto. Não há convenção internacional para regular a exploração e a comercialização dessa tempestade de areia.
As resoluções da 4ª Assembleia da ONU para o Meio Ambiente trataram da relevância estratégica da areia, cuja extração, abastecimento, uso e gestão permanecem em grande parte desgovernados em muitas regiões. Os documentos “Areia e sustentabilidade: encontrando novas soluções para a governança ambiental“ e “Areia e sustentabilidade: 10 recomendações estratégicas para evitar uma crise” trazem recomendações para uma agenda global da areia, atenta à sustentabilidade ambiental, com considerações técnicas, econômicas e políticas. Incluindo o uso de novos materiais na construção civil para enfrentar a crise da areia.
No Brasil, mais de 70% da extração de areia ocorre em leitos de rios, e o restante provém de cavas secas. A atividade é pulverizada, com muitos pequenos empreendedores. O país não exporta areia nem explora fundos oceânicos. As questões ambientais, legais e econômicas da mineração de areia são de natureza diferente das abordadas neste artigo.
Nos grandes e reais desafios ambientais planetários, enquanto a produção e o acúmulo desenfreados de plásticos criam “ilhas” artificiais (Revista Oeste, edição 169), a extração de areia dos fundos marinhos faz ilhas naturais desaparecerem, bem antes de submergirem, como castelos de areia, por “mudanças climáticas”. “Uma coisa inútil a areia. Nada cresce nela. Tudo some”, advertiu James Joyce em Ulisses. Será?
Leia também “O milagre de transformar pedra em pão”
#FIM DA AULA !
IRREPREENSÍVEL !
Matéria de extrema importância. Isso, sim, tem uma importância ambiental gigantesca, e simplesmente nunca ouvimos falar sobre isso.
Quando me deparo com os artigos desse admirável Sr. Evaristo aqui na Oeste, tenho certeza de que vou aprender muito sobre algo que nem imaginava. Obrigada pelo excelente artigo!
Que interessante. Eu não fazia ideia
Ótimo assunto e conteúdo de qualidade.
Esse Evaristo de Miranda só pode ser um ET, diferente de dois queu conheço, Marina Silva e Fátima Bezerra
A Revista Oeste é a primeira a informar os brasileiros dessa crise mundial da areia, sobretudo na Ásia e Oriente Médio. A exploração do xisto para petróleo nos EUA tb enfrenta falta de areia, usada na injeção de água no craqueamento. Parabéns ao Dr. Evaristo, colunista excepcional, uma enciclopédia em comunicação, com ciência e consciência.
Quanta cultura tem o dr. Evaristo de Miranda. E nós temos Lula(sindicalista), Marina Silva(meio ambiente), Luciana Santos (Ciência e Tecnologia), Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário), Alexandre Silveira (Minas e Energia), e outros inúteis nos 37 ministérios inventados pelo sindicalista LULA quem nunca trabalhou na vida.
De cair o queixo! Sempre denso de conteúdo e criatividade, Evaristo. Deve requerer muita pesquisa. Obrigado!
Os artigos do prof. Evaristo são sempre bem embasados e muito profundos tal qual as areias oceânicas. Este levanta um tema de importância capital de que eu nunca houvera falar. Quantos desafios ainda desconhecidos teríamos pela frente? Diante do inusitado, do desconhecido, como sopesar e escolher prioridades que podem à frente tornarem-se mal definidas?
Parabéns Prof. Evaristo pelo excelente artigo e à Revista Oeste pela publicação.
De fato nunca parei pra pensar na areia e seus “derivados” . Incrivel como esse universo é imenso
Aprendi bastante hoje e estou preocupada com o pessoal que usa de forma inadequada (sempre tem alguem pra isso) as areias desse mundo
Muito interessante! Gostei!
Parabéns pela matéria.Assunto jamais visto em outros lugares. Oeste deveria reduzir matérias relacionadas a da capa. Sempre os conteúdos políticos das primeiras matérias são de mesmo teor e repetitivo.