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Bandeira da Alemanha | Foto: Shutterstock
Edição 204

A agonia da Alemanha

Entre os sintomas, PIB negativo em 0,3% em 2023, desemprego, inflação, criminalidade em alta e imigração descontrolada

Carlo Cauti
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A Alemanha é o “homem cansado” da Europa que precisa de “uma xícara de café forte”. A definição sobre o atual momento do mais importante país do Velho Continente parece de autoria de um “germanofóbico”. Não é. Quem a pronunciou foi o ministro da Economia alemão, o liberal Christian Lindner, durante o Fórum Econômico Mundial de Davos deste ano, em frente a uma plateia de investidores e economistas internacionais.

Poucos dias depois das declarações de Lindner, foram divulgados dados sobre a produção industrial alemã: um desastre. Queda de 3% em janeiro. Números que vieram muito piores do que as previsões. E para um país onde a manufatura é parte integrante de sua identidade, representando cerca de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) — o dobro dos Estados Unidos —, essa queda é mais do que uma má notícia. É quase uma tragédia wagneriana.

“Não somos mais competitivos”, diagnosticou Lindner em um evento organizado pela Bloomberg no começo de fevereiro. “Estamos ficando mais pobres porque não temos crescimento. Estamos ficando para trás.”

Christian Lindner, ministro da Economia alemão | Foto: Shutterstock

Por isso, segundo alguns analistas, a Alemanha seria o “homem doente da Europa”. Entre os sintomas, PIB negativo em 0,3% em 2023, desemprego em alta, inflação maior que a do Brasil (5,9% lá ante 4,6% aqui), criminalidade em alta, imigração descontrolada. O governo de coalizão é incapaz de dar um rumo ao país e tem dificuldade até em aprovar a lei orçamentária anual.

Até o PIB da Grécia, com uma alta de 1,2%, cresceu mais do que o alemão em 2023. É uma humilhação para a potência que liderou o resgate da economia helênica apenas uma década atrás. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), nos próximos cinco anos a Alemanha crescerá menos do que os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e até a Espanha.

Mais do que a economia periclitante, o que preocupa os vizinhos europeus é o futuro político da Alemanha. Seu chanceler, Olaf Scholz, é absolutamente inadequado para liderar o país em tempos instáveis. O partido de direita Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão) poderia se tornar a maior força política nas próximas eleições europeias. Seus líderes já estão falando em uma Dexit, uma possível saída da Alemanha da União Europeia. Um pesadelo para os países do bloco, que mais do que uma Alemanha enfraquecida temem uma Alemanha sem os freios das regras europeias. Memórias tenebrosas voltam à mente.

Rückkehr in die Vergangenheit

Em alemão, a expressão Rückkehr in die Vergangenheit significa “retorno ao passado”. E o que a Alemanha está vivenciando hoje parece o prelúdio de um passado prestes a se repetir. Em 1999, a revista britânica The Economist publicou uma matéria definindo a Alemanha como “o homem doente do euro”. Segundo a publicação, a combinação da problemática reunificação das duas Alemanhas, em 1989, com um mercado esclerosado por regras trabalhistas antiquadas e contração das exportações atingiu em cheio o modelo econômico teutônico, levando à taxa de desemprego de dois dígitos.

Os alemães conseguiram dar a volta por cima, e o país voltou a crescer no começo dos anos 2000, depois de intensas reformas econômicas liberais. A principal delas foi o Plano Hartz, elaborado por um comitê presidido por Peter Hartz (então diretor de recursos humanos da Volkswagen), que flexibilizou o mercado de trabalho alemão.

Foto: Shutterstock

Por ironia do destino, o chanceler que assinou esse pacote de reformas liberais foi o líder do Partido Social-Democrata (SPD, na sigla em alemão) Gerhard Schröder. Para a economia alemã, o pragmatismo político de Schröder foi a salvação. Para o eleitorado de esquerda, uma traição. E Schröder acabou perdendo as eleições seguintes para Angela Merkel, do partido de centro-direita União Cristão Democrata (CDU).

Neue Kurs

Naquele momento, Berlim reformulou seu modelo econômico. Adotou um neue Kurs (“novo curso”), que baseou o sucesso das duas décadas seguintes em um tripé: energia barata importada da Rússia; exportações maciças para a China; e austeridade das contas públicas.

Deu certo. E a Alemanha inaugurou uma era de ouro que durou duas décadas. Sua economia tornou-se modelo para países semelhantes, especialmente entre os pares europeus. Graças à sua engenharia de ponta, modelo exportador e sociedade dinâmica. Entre 2006 e 2017, o país superou seus homólogos e acompanhou o ritmo de crescimento dos Estados Unidos. Entretanto, nos últimos quatro anos todos esses pilares acabaram ruindo, provocando uma nova crise existencial parecida com a da virada do século. Mas muito mais difícil de ser solucionada.

Rússia, kaputt

Por mais de 20 anos a Rússia garantiu energia a preço camarada para a indústria teutônica ganhar competividade em escala global. Mas, após a invasão da Ucrânia em 2022, Moscou se tornou inimiga do Ocidente, e a Alemanha foi forçada a não comprar mais gás e petróleo russo.

O Nord Stream, gasoduto submarino que transportava 110 bilhões de metros cúbicos de gás por ano do território russo para o alemão passando por baixo do Mar Báltico, não funciona mais. Foi destruído em setembro de 2022 com uma explosão cujos responsáveis não foram identificados. No dia do ataque, o ex-ministro do Exterior da Polônia, Radoslaw Sikorski, comentou no Twitter um irônico “Obrigado, EUA”.

Representação do Nord Stream 2, o principal gasoduto entre a Rússia e a Alemanha, através do Mar Báltico | Ilustração: Shutterstock

Um dos setores mais atingidos pela perda do gás russo foi o químico. Quase uma em cada dez empresas alemães está prestes a encerrar permanentemente suas produções, de acordo com a associação industrial VCI. A Basf, maior indústria química da Europa, vai cortar 2,6 mil funcionários. A Lanxess vai reduzir em 7% sua força de trabalho. 

Zeitgeist da China

O Zeitgeist — “espírito do tempo” — da geopolítica contribuiu para piorar as coisas. A desglobalização, especialmente a “nova guerra fria” entre Estados Unidos e China, atingiu em cheio a Alemanha. Em meados dos anos 2000, Pequim se tornou o principal parceiro comercial de Berlim, com cerca de 20% das indústrias alemãs dependentes da exportação para o mercado chinês. Sem esses compradores, elas simplesmente não existiriam. Pior do que isso, cerca de 46% da manufatura alemã depende da importação de insumos da China, especialmente de metais de terras raras, para poder realizar suas produções.

Desde a pandemia de covid-19 a Alemanha começou a mudar sua postura em relação à China. O fechamento repentino do mercado chinês por causa dos lockdowns paralisou a indústria alemã em 2020. A palavra de ordem agora é “reduzir o risco”. A possível invasão de Taiwan também não melhorou o clima entre as duas potências econômicas.

Em 2023, pela primeira vez na história, a Alemanha elaborou sua própria “estratégia para a China”, definindo Pequim como um rival e concorrente. “A China mudou — isso e as decisões políticas da China tornam necessário mudar a forma como abordamos o país”, afirma em documento o governo alemão, que vê com preocupação a conduta cada vez mais agressiva da ditadura chinesa.

A China não gostou, e respondeu reduzindo as compras de produtos alemães. E o déficit comercial em favor dos chineses disparou em 2022, chegando a quase 90 bilhões de euros.

China quer proibir roupas
Xi Jinping, presidente da China | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Empresas chinesas também começaram a fazer concorrência em vários setores em que os alemães se destacavam mundialmente, muitas vezes por meio de práticas comerciais desleais, como o dumping (quando uma empresa exporta um produto a um preço menor do que o preço cobrado no mercado interno). A lista inclui carros elétricos, painéis solares, aço e maquinários industriais, entre outros. A estratégia condenou dezenas de empresas teutônicas, especialmente as médias e pequenas, a fechar as portas e demitir seus funcionários.

A Solarwatt GmbH, sediada em Dresden, já cortou 10% da sua força de trabalho e poderá transferir a produção para o exterior se a situação não melhorar. O GEA Group AG, produtor de maquinas de Düsseldorf cujas raízes remontam ao final do século 11, não aguentou e já encerrou sua produção. 

Weltanschauung orçamentária

Por último, a Weltanschauung — “conjunto de valores” — que norteou a gestão pública da Alemanha desde o final da Segunda Guerra Mundial, principalmente as contas públicas em ordem, começou a ser questionada. Com consequências desastrosas.

A austeridade fiscal transformou a antiga moeda alemã, o marco, em sinônimo de estabilidade. Uma referência para o mundo inteiro. O euro foi criado com base nessa divisa, e as regras do Banco Central Europeu são idênticas às do Bundesbank, o Banco Central alemão. A Alemanha chegou a colocar em sua Constituição a obrigatoriedade de manter o orçamento público em equilíbrio e o endividamento público limitado a 0,35% ao ano.

Pesquisas recentes mostram que os alemães se queixam cada vez mais de seu país não estar funcionando tão bem como deveria. Quatro em cada cinco cidadãos declararam que a Alemanha não é um bom lugar para se viver

Entretanto, os partidos da esquerda alemã, principalmente Os Verdes, que integram a atual coalizão de governo, estão buscando mais dinheiro para financiar a chamada “transição energética”. Em bom português, um aumento dos gastos públicos em subsídios e benesses.

Pressionado, o governo Scholz tentou aumentar as despesas em mais de 60 bilhões de euros para financiar um novo “fundo de investimento verde”. Mas a Corte Constitucional alemã proibiu a manobra, e o Executivo foi forçado a uma humilhante renegociação da lei orçamentária para 2024. Chegando perto de não conseguir aprovar o documento, com o risco de uma crise política.

Já os partidos tradicionais alemães têm um medo visceral de acabar com o governo Scholz e convocar novas eleições. O risco de um triunfo da AfD é concreto. Mas, se o terror mantém o governo artificialmente unido, sua litigiosidade o impede de administrar a coisa pública com eficácia.

Geopolitische Herabstufung

Pesquisas recentes mostram que os alemães se queixam cada vez mais de seu país não estar funcionando tão bem como deveria. Quatro em cada cinco cidadãos declararam que a Alemanha não é um bom lugar para se viver. Até os trens da Deutsche Bahn, orgulho da pontualidade alemã, agora circulam tão atrasados e desorganizados que a Suíça proibiu que entrassem em sua rede ferroviária. E por duas vezes a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, ficou bloqueada em outros países por causa de avarias em seu avião oficial, chegando a renunciar em cima da hora a uma viagem à Austrália.

A fraqueza do governo está começando a ser percebida em nível internacional. O exemplo prático desse geopolitische Herabstufung (“rebaixamento geopolítico”) foi o episódio grotesco ocorrido no Aeroporto de Doha, no Catar, em novembro passado, quando o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier chegou em visita oficial. Ele ficou esperando na pista de pouso por mais de meia hora até ser recebido pelos dignitários locais, que simplesmente tinham “esquecido” do mandatário. As fotos de Steinmeier de braços cruzados no topo da escada do avião são eloquentes. Em resposta às reclamações sobre essa afronta protocolar, os árabes alegaram que, se o presidente alemão quisesse tomar um chá no aeroporto, a coisa passaria despercebida. Sinal dos tempos.

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10 comentários
  1. Luiz Antônio Pratali
    Luiz Antônio Pratali

    Sempre a Dimitri a Alemanha! Mas tanto ela com is EUA, na ganância de faturar , CHICARAM O OVO DA SERPENTE, pior, do DRAGÃO.

  2. Francisco Daniel de Souza
    Francisco Daniel de Souza

    Uma Nação símbolo da organização, dedicação, capacidade produtiva e orgulhosa do ‘HERGESTELLT IN DEUTSCHLAND” tem todo direito de estar seriamente preocupada.

  3. Anderson Fernando da Silva
    Anderson Fernando da Silva

    Faz-se necessário homens de pulso firme, nacionalistas e conservadores para retirar a Alemanha da União Européia (UE) e da ONU’s, que apenas servem para engessar o engrandecimento do país com suas pautas anti-nacionais, fomentando a imigração de inúteis, o enfraquecimento do espírito alemão com suas pautas ESG, a cultura WOKE. A Alemanha será uma nação de não se reconhecer.

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Alemanha tem grandes mentes e não merece esta decadência. Olhem as empresas alemãs e vejam sua eficiência. Coloco no topo desta cadeia o tripé EUA – Alemanha – Japão. Como potências industriais.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A Alemanha tão desenvolvida ainda não percebeu que só existe prosperidade quando o socialismo desaparece, onde tem socialismo a nação desfalece, imagine se China e Rússia continuassem com a economia social democrática? O capitalismo é o melhor modelo porque aumenta a competição, o socialismo só leva ao caos

  6. jose carlos gomes
    jose carlos gomes

    Tudo passa!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  7. Daniel BG
    Daniel BG

    A ironia que fica visível é a Alemanha ter experimentado sua divisão em ocidental e oriental, ter constatado o ruim que foi o lado oriental e errar tão largamente ao firmar laços comerciais com um estado (então as URSS) que, sabiam, não merecia confiança.

  8. Rosely M G Goeckler
    Rosely M G Goeckler

    Excelente, Cauti!
    Tenho parentes e amigos e, dos problemas apontados, a imigração descontrolada está abatendo o ânimo dos alemães que trabalham para sustentar imigrantes com gordas ajudas sociais, que incluem moradia, preferência nas matrículas em escolas, tratamento médico, etc em detrimento dos alemães! Sem contar que a violência chegou com estupros, assassinatos, terrorismo, assaltos e roubos, até com explosões de caixas eletrônicos (técnica importada do Brasil?)!!!!

  9. Joao Pita Canettieri
    Joao Pita Canettieri

    *Revista Oeste – Edição 204* *Parabéns e não abandonem o Brasil* Carlo Cauti estrangeiro com o Coração brasileiro.

    1. Marcus Borelli
      Marcus Borelli

      João faço minhas as suas palavras

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