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Edição 203

As cortes superiores se transformaram em tribunais de cobranças

O sistema jurídico brasileiro virou uma máquina de arrecadação para o governo federal, e os investidores estão fugindo

Carlo Cauti
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Em 2023, as cortes superiores do Brasil se transformaram em entes auxiliares da Receita Federal. Através de seus julgamentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) permitiram que o governo arrecadasse centenas de bilhões de reais adicionais, não previstos no orçamento, às custas dos contribuintes. Um aumento indireto da carga tributária que não passou pelo voto do Congresso Nacional, onde seria decerto derrotado por causa da ausência de maioria parlamentar governista. É uma aberta violação do princípio sagrado da legalidade tributária, decretado desde a Revolução Americana pelo lema “no taxation without representation” (“nenhuma taxação sem representação”).

Empresas e cidadãos saíram derrotados na maioria das decisões do STF e do STJ, e foram obrigados a forrar os cofres públicos com multas gigantes. Segundo um levantamento do escritório Machado e Associados, em pelo menos 16 importantes julgamentos das cortes superiores os contribuintes sucumbiram. Em apenas quatro deles, o impacto financeiro previsto foi de R$ 62,4 bilhões. Mas o valor total pago a mais pelos brasileiros poderia ser superior a R$ 500 bilhões, segundo outros levantamentos.

“É muito difícil calcular o impacto financeiro dessas decisões judiciais, pois existe uma incerteza profunda sobre a capacidade das próprias empresas de pagar valores tão astronômicos. Às vezes elas quebram antes”, explicou a Oeste o economista Roberto Luis Troster.

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Alguns julgamentos se tornaram alvo de intensas polêmicas no mundo jurídico brasileiro, que não poupou críticas às cortes.

Foi o caso do julgamento do STF sobre a exclusão do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do cálculo do Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) no lucro presumido. Nesse caso, o Supremo revisou uma decisão já tomada anos antes, violando abertamente o conceito de “coisa julgada”. Pior, decidiu que a cobrança tinha que retroagir até 2007, data da primeira análise do caso por parte da Corte. “Quem não se preparou fez uma aposta no escuro, e aí a gente assume os riscos das decisões que toma”, comentou na época o ministro Luís Roberto Barroso, hoje presidente do Supremo.

Para os constitucionalistas e tributaristas, a decisão foi uma violação da cláusula pétrea da Constituição Federal que preserva o conceito de coisa julgada.

Bilhões e bilhões de reais

“Esse caso acabou sendo uma grande surpresa para os contribuintes. Uma ruptura muito grande em termos de segurança jurídica”, explicou a Oeste Renato Silveira, sócio da área tributária do escritório Machado Associados. “Essas mudanças de entendimento causam prejuízos muito grandes para os contribuintes. Princípios que norteiam as regras jurídicas sendo deixados de lado por outras razões.”

Entretanto, para Barroso, a coisa julgada “vale enquanto permanecerem as mesmas condições fáticas e jurídicas”. Somente esse caso já rendeu para os cofres públicos ao menos R$ 3 bilhões em 2023. Mas existem estimativas de que a Receita arrecadaria cerca de R$ 260 bilhões a mais com a decisão.

Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal | Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Outro caso icônico foi a derrota dos contribuintes no STJ no caso sobre os incentivos fiscais de ICMS. A Corte decidiu que a União poderia tributar as empresas que receberiam esses recursos. Ou seja, o governo concede recursos, mas depois os retoma em parte via impostos. Segundo cálculos da Receita Federal, somente essa decisão poderia gerar R$ 47 bilhões de arrecadação adicional todos os anos.

O STJ também decidiu que planos de previdência privada deverão pagar CSLL e IRPJ sobre seus ganhos, o que provocará um aumento de R$ 30,2 bilhões.

As decisões das cortes superiores mostram claramente um ativismo judicial arrecadatório que visa a atender interesses do governo

Nem mesmo os bancos brasileiros se salvaram do uso da Justiça como instrumento arrecadatório. Uma decisão do STF sacramentou a incidência de PIS e Cofins sobre receitas financeiras de instituições financeiras. Uma decisão que, sozinha, deveria levar para os cofres públicos cerca de R$ 115 bilhões.

O banco mais atingido foi o Santander. Desde a decisão do STF, as ações do banco perderam cerca de 10% do valor na Bolsa de Valores de São Paulo. Em 2024, o STF e o STJ deverão julgar outros casos que poderiam representar um ganho de bilhões de reais para a União.

Sede do Banco Santander Brasil, em São Paulo | Foto: Divulgação

Entre eles, a correção monetária dos saldos de FGTS (que poderá render quase R$ 300 bilhões para o Tesouro Nacional), a Constitucionalidade da Reforma da Previdência de 2019 (com impacto de R$ 621 bilhões), o caso da “Revisão da Vida Toda” (que poderia significar mais de R$ 480 bilhões nos cofres públicos) e a incidência de PIS e Cofins sobre receitas de locação de bens móveis e imóveis, cujo impacto poderia ser de R$ 37 bilhões.

Ativismo judicial arrecadatório

Segundo Matheus Bueno, advogado tributarista e sócio-fundador do Bueno Tax Lawyers, as decisões das cortes superiores mostram claramente um ativismo judicial arrecadatório que visa a atender interesses do governo. “O Supremo ficou claramente mais simpático ao Executivo, julgando várias teses a favor do Planalto. A mais chocante foi a da coisa julgada, algo vergonhoso”, explica o advogado.

A importância das decisões judiciais para as contas públicas é tamanha que logo no começo de 2023 o governo criou via decreto um Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais. O objetivo oficial do Conselho é “fomentar a adoção de soluções destinadas a fortalecer e subsidiar as atividades dos órgãos de representação judicial da União, das suas autarquias e das suas fundações, no acompanhamento de eventos judiciais capazes de afetar as contas públicas”.

Simone Tebet, Fernando Haddad e Jorge Messias, em reunião do Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais (4/9/2023) | Foto: Diogo Zacarias/Ministério da Fazenda

Em bom português: é lobby sobre as cortes superiores para que tomem as decisões mais favoráveis possíveis para o Executivo. Em detrimento dos contribuintes. “Vamos atuar tecnicamente nos tribunais com muita força”, chegou a declarar Haddad no momento da criação do Conselho.

Para Machado, esse “é um ponto bem controverso, pois o Poder Judiciário é um órgão independente, tem sua autonomia e não deveria sofrer a influência de outro Poder, no caso, o Executivo”. Segundo Bueno, “esse governo é muito mais lobista do que o anterior”, e graças a isso o ministro Haddad está conseguido emplacar muitas pautas nas cortes superiores.

“Lula é muito mais hábil politicamente do que Bolsonaro era”, salienta Bueno. “As conversas com os ministros das Cortes superiores são muito mais frequentes. O ministro vai ao Supremo para discutir agenda. E os ministros acabam decidindo com um olhar mais favorável. No mundo jurídico isso ganhou até um apelido: embargos auriculares.”

Ministros do STF recebem o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva no gabinete da presidência da Corte (9/11/2022) | Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Segundo o tributarista, essa atuação não é necessariamente negativa. “Se os argumentos do governo são lógicos e legais, está tudo dentro da norma. Seria uma atuação até republicana, em prol das contas públicas. Mas o que acontece é que se torna muito difícil prever qual será o desfecho de uma tese. E isso gera insegurança jurídica”, salienta.

Além das cortes, o Carf

O problema é que as cortes superiores parecem ter dois pesos e duas medidas. Por exemplo, mesmo quando o governo perde os processos nos tribunais superiores, o STF faz questão de modificar o veredito por meio da aplicação do princípio da modulação, ou seja, limitar a possibilidade de os contribuintes obterem os valores integralmente ou contabilizar os anos antecedentes à decisão judicial.

“Mais de 90% das decisões do Supremo favoráveis aos contribuintes têm o princípio da modulação. No caso das vitórias do governo, esse princípio é raramente aplicado”, diz Bueno.

Além da atuação das cortes superiores, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), responsável por julgar recursos sobre atuações da Receita Federal, também se tornou um veículo arrecadatório suplementar do governo.

Uma das primeiras medidas provisórias do governo Lula após sua posse foi a reintrodução do “voto de qualidade” no Carf. Trata-se do voto de minerva do presidente da turma, que é sempre um representante da Receita, como critério de desempate. Com isso, a tendência foi uma série de decisões tomadas via desempate, sempre favoráveis ao Fisco.

Sede do Carf, em Brasília | Foto: André Corrêa/Senado Federal/Agência Senado

O voto de qualidade tinha sido criado durante o governo Vargas, em 1934, e extinto pelo governo Bolsonaro em 2020, em respeito ao conceito previsto no Código Tributário Nacional de in dubio pro contribuinte — ou seja, na dúvida, a decisão deve ser favorável ao contribuinte.

O governo Lula, evidentemente, tinha outras prioridades. E, com a reintrodução do voto de qualidade, o Carf fechou 2023 com o melhor resultado em termos de valores julgados desde 2019, com mais de R$ 230 bilhões em ações tributárias analisadas pelo órgão entre janeiro e setembro.

Insegurança jurídica amedronta investidores estrangeiros

Se por um lado o governo pode tentar arrecadar mais com decisões de cortes superiores, por outro ele paga um preço intangível, mas não menos pesado, por esse tratamento de favor: o aumento da insegurança jurídica.

No ano passado, os investimentos diretos estrangeiros caíram 17% em comparação a 2022. A formação bruta de capital fixo, que agrega investimentos em máquinas e equipamentos, na construção civil e em outros ativos fixos, recuou 6,8% no terceiro trimestre de 2023.

“Existe uma preocupação no mundo empresarial de um derrame fiscal. Não apenas entre as grandes empresas, mas também nas micro e pequenas”, explica Roberto Luis Troster.

Roberto Luis Troster | Foto: Reprodução

Segundo o economista, essa incerteza jurídica afasta os investidores. “Temos exemplos de várias empresas que foram embora do Brasil por causa disso. A Ford é um exemplo emblemático e recente. Mas ainda mais grave são as empresas que não vieram para o Brasil. E nesse caso nem sequer sabemos o tamanho da perda”, diz Troster. Para ele, o caráter extrativista da política fiscal brasileira está paralisando a economia. Sem contar que nem todas as receitas estimadas acabam entrando nos cofres públicos.

Parte do valor já foi paga pelos contribuintes que não entraram com ações judiciais. Por isso, o governo contabiliza valores maiores como previsão de receita, mas acaba recebendo quantias muito menores. Sem contar que, mesmo com essas receitas extras, o governo federal conseguiu entregar as contas públicas de 2023 com o segundo pior déficit primário da história: R$ 249 bilhões no vermelho. Sinal de que os gastos estão aumentando muito mais do que as receitas, mesmo as obtidas pela graça das cortes superiores.

Quando o mantra do Planalto é “gasto é vida” e a política fiscal é norteada pelo lema “taxa e gasta”, não há juízes que segurem o rombo fiscal. O pior legado dessas mudanças é o atropelamento das regras em prol do impacto fiscal. O sacrifício do princípio da legalidade em nome da fome do Leão.

Leia também “A insanidade de repetir o mesmo erro”

6 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Tamanha audácia pelas informações que estão neste artigo, o consórcio PT/STF tem de ser considerado uma quadrilha criminosa, atuando contra o contribuinte brasileiro. Hoje, não vale a pena ser honesto e pagar imposto neste país. Pagar para quê? Para bancar esses comunistas que vivem de saquear o dinheiro público?

  2. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Trágico

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    *perdulários.

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A nossa ruína é questão de tempo.
    Nenhuma economia, por mais pujante que seja resiste a investidas de governos perdulálios.

  5. Humberto B
    Humberto B

    Aonde Essas cabeças de bagre da economia do governo, baseadas em Teorias já comprovadamente Inúteis , não precisa dizer contra o livre mercado , Estão ? As consequências estão vindo a galope, a segurança jurídica está afastando os investimentos (veja os últimos leiloes do PT que falharam). Consequências : Afastam os bilionários do Brasil , só em 2023 foram embora do país 1200 milionários levando conselhos 60 bilhões . #ImpeachmentAlexandredeMoraes #ImpeachmentLula

  6. MNJM
    MNJM

    Cauti bom texto. O que falar mais do STF? Atua politicamente, causa insegurança jurídica, interpretam as leis de acordo com suas conveniências, Tribunal totalmente desacreditado pela grande maioria da população, as pesquisas já apontaram.
    DECADÊNCIA.

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