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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 204

A realidade brasileira rasga a fantasia

Quando se calam os contrários, mata-se a democracia. Com jejum e abstinência de liberdades, todos os dias se tornam quarta-feira de cinzas

Alexandre Garcia
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A Quaresma é um período de jejum e abstinência principalmente para os católicos. No Brasil, estamos em jejum de democracia, de Estado de Direito, de devido processo legal. O jejum é seletivo; depende da “religião” política. A origem cristã do Carnaval são os excessos nos dias de despedida da abundância na mesa, antes de começarem as restrições da Quaresma. Dias de libertinagens, para ironizar, debochar, criticar — como faziam as marchinhas de Carnaval de minha mocidade. Em dias de hoje, a gente fica desejando que a permissividade do Carnaval dure o ano todo. Porque, depois do “Cala a boca já morreu”, da então presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, em 2016, e da fala anticensura (“Quem não quiser ser criticado, ser satirizado, fique em casa; não seja candidato, não se ofereça ao público para exercer cargos políticos”), do ministro Alexandre de Moraes, em 2018, muita coisa mudou. 

A principal arma da democracia não é o fuzil nem o canhão, e muito menos a violência; é a palavra, a argumentação, a opinião, a liberdade de expressão e de manifestação. Por essas armas o povo, origem do poder, expressa sua vontade todas as horas, todos os dias do ano, inclusive no Carnaval e na Quaresma. E, de tempos em tempos, nomeia pelo voto os seus representantes, transferindo-lhes poder para fazer leis e chefiar o governo de municípios, Estados e União. A escolha é feita por voto secreto e teria que ser com contagem pública e transparente, como determina o artigo 37 da Constituição. Aos eleitos como representantes do povo nos Parlamentos, é garantida a inviolabilidade penal e a civil por quaisquer palavras, opiniões e votos, para poderem bem representar seus mandantes. 

O artigo 5º, pétreo, imutável, proíbe tribunal de exceção, garante amplo direito de defesa e estabelece que só o juiz competente, também chamado juiz natural, pode processar e condenar alguém

Juízes, em tempos ideais, são nomeados por seus méritos para julgar com isenção, sem interesses pessoais e sem ter o menor envolvimento com o caso em suas mãos. A vontade dos juízes tem que ficar dentro da Constituição e das leis. O presidente, os governadores, os prefeitos não mandam nas pessoas; quem manda nas pessoas é a lei, feita pelos representantes das pessoas, que elegem constituintes para fazer a Constituição, que impõe limites aos agentes do Estado e estabelece direitos e garantias para todos. Os agentes do Estado são os mandatários ou servidores, sujeitos ao escrutínio e à crítica dos mandantes — eleitores, pagadores de impostos, cidadãos. Os excessos de expressão estão previstos em lei. Injúria, calúnia e difamação são crimes elencados no Código Penal. A Constituição garante indenização para violações da privacidade, da intimidade, da honra e da imagem. O artigo 5º, pétreo, imutável, proíbe tribunal de exceção, garante amplo direito de defesa e estabelece que só o juiz competente, também chamado juiz natural, pode processar e condenar alguém. Os direitos e liberdades fundamentais são tão essenciais à democracia que a Constituição manda punir quem atenta contra eles.

Urna eletrônica brasileira | Foto: Shutterstock

Em tempos de Carnaval, a realidade brasileira rasga a fantasia de democracia, e o público percebe que é apenas uma alegoria, usada para distrair o público do avanço do autoritarismo, enfraquecimento da representação popular, desequilíbrio de Poderes e, principalmente, controle do sagrado direito de expressão e de manifestação. O “cala a boca” ressuscitou, e autoridades públicas não aceitam ser criticadas. A alegação paradoxal é que as ações autoritárias e anticonstitucionais são para defender a democracia em perigo. O perigo é justamente calar. Quando se calam os contrários, mata-se a democracia. Com jejum e abstinência de liberdades, todos os dias se tornam quarta-feira de cinzas. E a democracia é encoberta pelo manto roxo da Quaresma.

Frases da semana
Constituição da República Federativa do Brasil | Foto: Rodrigo Viana/Senado Federal

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20 comentários
  1. SERGIO KAMADA
    SERGIO KAMADA

    Após 60 anos de vida nunca vi um roubo tão descarado na política. Cadê os códigos fontes? Cadê as imagens do Congresso?

  2. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Artigo perfeito. Descreve sucintamente o buraco em que nos enfiamos

  3. Jorge Luiz
    Jorge Luiz

    Grande aula, esfrega na cara dos politicamente corretos, que o mantra da dissimulação legislativa e cororativista não garantirão privilégios de outrora, que foram adquiridos com um endividamento brutal do povo, condenando o à miséria eterna que sustenta o paternalismo patife que reina em sistemas pseudo democráticos.

  4. Marcus Magalhães
    Marcus Magalhães

    Boa ! Mestre Alexandre Garcia, mais enquanto houver quem por interesse e falsidade na imprensa apoiando os atos desse tribunal comandado por um doente mental, não vão voltar a realidade estão desconectados da vida real.

  5. Julio Fressa
    Julio Fressa

    Alexandre, a passos largos, estamos caminhando para uma democradura” ao estilo Putin. De 2 em anos temos eleições que nada mais são que fantasia de carnaval de democracia. Parabéns pelo artigo e por sempre chamar as coisas pelo nome que elas tem.

  6. LUCIA DO PERPETUO SOCORRO CARRIJO COSTA
    LUCIA DO PERPETUO SOCORRO CARRIJO COSTA

    Texto sensacional, na forma e no conteudo! Parabéns!l

  7. LUCIA DO PERPETUO SOCORRO CARRIJO COSTA
    LUCIA DO PERPETUO SOCORRO CARRIJO COSTA

    Texto sensacional, na forma e no conteudo! Parabéns!l

  8. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Alexandre, convoque celebridades democráticas adormecidas para que unidas marchem até o STF que se entende CORTE SUPREMA, para dizer que CORTE SUPREMA é o POVO e seus parlamentares. Infelizmente temos um SENADO covarde que teria tudo para endireitar essa gente inútil e perversa.

  9. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    O consórcio ocupante atual do poder usa a palavra em nome da ”democracia” justamente para combatê-la.

    1. Cleber Luíz da Silva Ruiz
      Cleber Luíz da Silva Ruiz

      Ao conhecer o trabalho da jornalista Paula Schmidtt, concordo que seria mais apropriado sobstituir a palavra consórcio pela palavra cartel.

  10. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Brilhante artigo Alexandre Garcia, magnífico. Vamos torcer para que nesse ano de 2024,todos os brasileiros reflitam de fato nessa quaresma o significado da falta de liberdade e da real democracia.

  11. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Brilhante artigo Alexandre Garcia.
    Verdade seja dita, nunca fomos uma democracia ampla.
    Nossa República anunciada há 134 anos, mas ainda não proclamada, foi governada no seu início por dois governantes medíocres: Deodoro e Floriano Peixoto.
    De lá até os dias atuais não tivemos um período para nos orgulhar, salvo a amostragem do que foi escancarado pelo governo Bolsonaro.
    Mas sobra argumentos para dizermos que hoje habitamos as trevas da democracia e do ordenamento jurídico.

  12. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Alexandre Garcia, parabéns! Deu um banho de lógica num texto perfeito. Muito obrigada!

  13. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse Alexandre que não é de Moraes mas de Moral, sempre sabe tudo direitinho dentro dos pressupostos jurídicos e jornalísticos. Isso é um Febrento do Rato de homem, Certo que só beiço de bode

  14. Pedro Hemrique
    Pedro Hemrique

    Excelente artigo, para aqueles que pensam, entendem e enxergam o que está ocorrendo, na realidade como o país do faz de contas está sendo corroído! Só um parlamento forte e comprometido com os anseios da população poderá fazer com que a Constituição seja respeitada e aplicada!

  15. Marlos Rocha De Medeiros
    Marlos Rocha De Medeiros

    Artigo primoroso com um didatismo simplório. Explicação mais detalhada impossível. Ao final e ao cabo há uma grande razão para essa ditadura instalada: medo – medo não, TERROR ( em todos os níveis da república , de se IMAGINAR um retorno glorioso da Lava-Jato . Aí a m…. viraria boné .

  16. jorge alves
    jorge alves

    O JEJUM da DEMOCRACIA já vem desde janeiro 2023 faz o LLL rsss !!!!!!!

  17. Walter Bianchi
    Walter Bianchi

    Este artigo me fez viajar no tempo: Juiz natural, liberdades fundamentais, direito de defesa, voto secreto com contagem pública, liberdade de expressão, não a tribunais de exceção, juízes atuando dentro dos limites da Constituição e das leis. Cheguei até a sonhar com o país livre e democrático de outrora. Quero meu país de volta, lembrando a frase do querido prof. Percival Puggina.

  18. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    Parabéns caro Alexandre Garcia. Infelizmente hoje as quartas-feiras de cinzas são mais sombrias, sucedem um Carnaval contaminado pela pior política que já se viu, tornou-se o espetáculo da “lacração” mais descarada, financiada por gente que não tem “conduta ilibada”. Hoje, o outrora “país do futebol e do carnaval”, fracassa nos dois quesitos.

  19. Joao Pita Canettieri
    Joao Pita Canettieri

    *Revista Oeste – Edição 204* *Parabéns e não abandonem o Brasil* Alexandre Garcia FAROL DO JORNALISMO BRASILEIRO.

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