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Edição 204

Polícia política não é polícia

Mesmo depois de passada a tempestade, ficará uma pergunta: como continuar a confiar nas instituições que participaram da perseguição?

Roberto Motta
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Se há uma lição que a história ensina com clareza é que uma obsessão persecutória originalmente direcionada a determinado grupo ou ideia sempre se expande para atingir todos, e depois se volta contra seus autores. Se não acredita em mim, pergunte a Robespierre.

Mesmo depois de passada a tempestade, ficará uma pergunta: como continuar a confiar nas instituições que participaram da perseguição? Como se restabelece a confiança em organizações cujos integrantes estiveram dispostos a participar de uma máquina de destruição imoral e ilegal?

“Estou apenas cumprindo a minha função”, é a desculpa do burocrata ou servidor indiferente. Foi isso que Hannah Arendt chamou de “a banalidade do mal”.

Na história das democracias ocidentais há inúmeros casos em que investigações criminais foram usadas para atacar adversários políticos.

O que é uma investigação criminal? É uma atividade através da qual a polícia apura a ocorrência de um crime e tenta identificar seus autores. Em uma investigação, a polícia coleta evidências, conversa com pessoas, examina documentos e captura impressões digitais, para entender o que aconteceu. Em algum momento desse trabalho, a polícia determina que já tem um entendimento completo dos eventos e possui evidências que provam esse entendimento. 

Segundo o parágrafo 3º do artigo 5º do Código de Processo Penal, qualquer pessoa pode comunicar à polícia um crime. O delegado verifica se a informação procede e instaura inquérito. Por exemplo: vou à polícia, informo que ouvi tiros e encontrei um cadáver na portaria do meu prédio. O delegado verifica se a informação procede (manda um policial ao meu prédio, por exemplo). Confirmada a informação, o delegado instaura inquérito.

Mas o delegado também pode abrir um inquérito por achar que um crime foi cometido, com base em algo que ele viu acontecer ou em uma notícia de jornal.

A atividade policial de ouvir testemunhas, coletar evidências e produzir um entendimento é chamada de inquérito criminal. Não cabe aos policiais que conduzem um inquérito julgar se o investigado é culpado ou inocente. Ao policial cabe apenas esclarecer o que aconteceu e apresentar a explicação dos fatos e as evidências que sustentam essa explicação.

A atividade policial de ouvir testemunhas, coletar evidências e produzir um entendimento é chamada de inquérito criminal | Foto: Shutterstock

Quando a polícia termina o inquérito, ela necessariamente pega todo o pacote e entrega ao Ministério Público, independentemente de acreditar ou não que crimes foram cometidos. O Ministério Público vai examinar a história apresentada pela polícia e verificar as evidências coletadas, checando se tudo faz sentido do ponto de vista lógico e se a investigação foi feita de acordo com a lei e os regulamentos. Se achar que as evidências são sólidas (independentemente de qual tenha sido o entendimento da polícia), o promotor de Justiça vai ao Judiciário e oferece uma denúncia, ou seja, ele acusa o investigado de ter cometido certos crimes e propõe uma punição — uma pena — de acordo com o que prevê o Código Penal. 

Nesse ponto o investigado vira acusado.

O magistrado, ao receber a denúncia do promotor de Justiça, examina novamente o relato da investigação e as provas. Se a denúncia for aceita, o acusado vira réu. A essa altura da história, o relato da investigação e as provas já foram checados pela própria polícia e pelo Ministério Público. O juiz faz isso outra vez. A decisão sobre a culpa do réu é tomada pelo próprio juiz ou por um júri (nos casos de homicídio) em um julgamento. A sentença declara o réu culpado ou inocente dos crimes dos quais foi acusado e, no caso de culpa, determina a pena que deverá ser cumprida.

É importante considerar alguns elementos. Primeiro, a polícia pode ter se equivocado. Erros acontecem em todas as atividades. O policial encarregado do inquérito pode ter achado que as provas eram boas, mas, na verdade, elas não eram. O policial pode ter acreditado que um crime foi cometido, mas as descrições de crimes nas leis penais frequentemente são vagas, e possibilitam interpretações diversas. A interpretação do juiz pode ser diferente da interpretação do policial e do promotor, e o juiz pode concluir que nenhum crime foi cometido.

Imagine a situação de alguém que foi acusado indevidamente de um crime. Ele passou por todo um processo de investigação, em que sua vida foi examinada e sua privacidade foi invadida. Ele pode ter sofrido a apreensão de objetos pessoais, como aparelhos de celular e computadores. Ele precisou contratar um advogado, o que frequentemente significa uma despesa significativa. É costume que se passem muitos meses — ou até anos — desde o momento em que o inquérito é aberto até o momento em que uma sentença final, definitiva, é anunciada. 

Se o acusado for uma pessoa conhecida, ele certamente foi objeto de notícias na mídia, teve sua reputação manchada, a vida dos seus familiares foi afetada e, dependendo da repercussão do caso, até sua integridade física foi ameaçada. 

A abertura de investigações intimidatórias geralmente exige um conluio entre três Poderes: o Executivo, que controla a polícia; o Ministério Público (que no Brasil é equiparado a um Poder), onde estão os promotores de Justiça; e o Judiciário

Depois de declarado inocente, ele não é ressarcido por nenhum desses danos. Alguém que foi acusado de um crime e meses ou anos depois foi declarado inocente não tem um direito de regresso contra o Estado nem contra aqueles que o acusaram. Esse direito não existe, porque imporia um custo muito alto ao erro não intencional no trabalho policial e nos processos judiciais criminais.

Essa característica do sistema de Justiça criminal, embora seja essencial para a proteção daqueles que nele atuam, o torna vulnerável a ser usado como forma de intimidação contra adversários políticos. Como diz Alan Dershowitz no seu excelente livro A Perseguição a Trump:

“Aqueles contrários a Trump estão dispostos a usar o sistema judicial criminal americano como arma, distorcendo para atingir seu inimigo político. […] Os estatutos que preveem delitos como conspiração, obstrução, espionagem, sedição, manipulação inadequada de segredos e leis eleitorais são vagos o suficiente para permitir abuso de discricionaridade.”

Capa do livro A Perseguição a Trump, de Alan Dershowitz | Foto: Divulgação

Se autoridades mal-intencionadas conseguem a cumplicidade da mídia, a simples abertura de uma investigação contra uma figura pública é apresentada, no circo volátil da máquina de notícias, como uma condenação precoce e irrefutável. A abertura do inquérito será anunciada em manchetes. Mas a conclusão da investigação, declarando a inocência do réu, será publicada como uma nota pequena e discreta — isso se for anunciada. Mesmo que a inocência também fosse divulgada em manchetes, todo o estrago já teria sido feito. Na mente da maioria das pessoas que leram sobre a investigação, a culpa já foi estabelecida.

Em alguns países essas investigações têm uma tendência terrível de acontecer na véspera de eleições importantes.

A abertura de investigações intimidatórias geralmente exige um conluio entre três Poderes: o Executivo, que controla a polícia; o Ministério Público (que no Brasil é equiparado a um Poder), onde estão os promotores de Justiça; e o Judiciário. Estes são poderes independentes que deveriam se vigiar e se controlar. Quando eles trabalham em parceria para intimidar cidadãos e colocar a Justiça a serviço de interesses políticos ilegítimos, a liberdade corre perigo.

Como disse Alexander Hamilton no Artigo Federalista número 78:

“Embora a opressão a indivíduos possa, de vez em quando, ter origem nos tribunais de Justiça, a liberdade geral do povo nunca pode ser ameaçada pelas cortes, enquanto o Judiciário permanecer verdadeiramente separado tanto do Legislativo quanto do Executivo. A liberdade não tem nada a temer do Judiciário, a menos que ele se junte com qualquer um dos outros Poderes.”

Isso foi escrito em 1787. Continua atual.

Leia também “Uma mistura de marxismo e populismo corrupto (Parte 2)”

16 comentários
  1. Bianca Spotorno
    Bianca Spotorno

    Perfeito.

  2. Jaime Moreira Filho
    Jaime Moreira Filho

    Artigo excelente. Deveria ser lido em todo Ensino Médio e Faculdades. As pessoas deveriam conhecer o que Roberto Motta ensina. Além disso , quem gostar do artigo deve ler UM ERRO JUDICIÁRIO, de A. J. Cronin, também um livro obrigatório a todos os estudantes de Direito.

  3. ALEX
    ALEX

    Deveríamos documentar direitinho os nomes dos agentes da lei que hoje cumprem ordens constitucionalmente ilegais. Quando o vento virar, deverão ser punidos de acordo.

  4. Jorge Alberto de Oliveira Marum
    Jorge Alberto de Oliveira Marum

    O direito deve ser um escudo para proteger e não uma espada para ameaçar os cidadãos.

  5. Conta cancelada
    Conta cancelada

    Quando o partidarismo adentra a um tribunal, a verdade dos fatos é ejetada na primeira privada próxima à tribuna e condena toda uma civilização a uma história de uma latrina.

  6. Francisco de Assis
    Francisco de Assis

    “Em tempos de opressão e mentiras organizadas a verdade sempre é subversiva”!
    Maikovski

  7. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Quando o judiciário se junta a outro poder, como hoje no consórcio PT/STF, aí vira o problema.

  8. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Motta dissecou até mesmo para um leigo o trâmite de apuração de qualquer crime que trilhe os ritos processuais.
    No Brasil dos últimos 6 anos decisões monocráticas de advogados togados, integrantes de um sistema corrupto, escantearam olimpicamente a Constituição Federal, o CPP e outros atos com o silêncio sepulcral do Congresso Nacional para espanto de renomados juristas e descrédito do cidadão comum nas instituições.

  9. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Mota falou tudo certinho sobre o trâmite do crime, é uma burocracia pra chegar até a pena, mas nesse ponto o Brasil é o mais desenvolvido do mundo, Alexandre de Moraes elimina todo esse processo sozinho através da IA

  10. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Muito esclarecedor, para nos leigos, como deveria ser a atuacso dos marginais do brasil de hoje, meu caro Roberto. Uma aula em vocabulario simples e direto.

  11. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Excelente, Roberto Motta.

  12. Paulo Henrique Orlato Rossetti
    Paulo Henrique Orlato Rossetti

    Roberto Motta, parabéns pelo seu artigo. O nosso Brasil precisa de pessoas como você, explicando em detalhes os fatos que os leitores precisam conhecer, tanto para se defenderem, quanto para esclarecerem aos que não sabem como funciona todo o processo judicial.

  13. Maki K
    Maki K

    É preciso Hanna Arendt foi da escola de Frankfurt apesar de muitos usarem as suas palavras. Ou seja, neo marxista.

    1. RODRIGO DE SOUZA COSTA
      RODRIGO DE SOUZA COSTA

      A origem de Hannah Arendt não interfere na obra que publicou. Realmente a banalidade do mal ainda é realidade e está presente como nunca na nossa vida.

  14. Joao Pita Canettieri
    Joao Pita Canettieri

    *Revista Oeste – Edição 204* *Parabéns e não abandonem o Brasil* Roberto Motta saia do ninho de COBRAS. Vai de vez para a @RevistaOeste e @GazetaDoPovo

    1. Emilio Sani
      Emilio Sani

      Realmente ele é um sobrevivente no ninho, mas é bom que ainda esteja também lá para contrabalancear, e aqui é um representante importantíssimo, seus textos sempre magistrais e muitas vezes emocionantes como nunca, como alguns de Ana Paula também

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