“Em resumo: para a Nova Esquerda, o sionismo é aproximadamente o que, na Alemanha, há cerca de 30 anos, era chamado de ‘Judaria Mundial’ (…) Como, pergunta-se, chegamos a isso? O que foi necessário para que a esquerda global (repito: para os propósitos desta discussão, por esquerda, refiro-me à Nova Esquerda) abraçasse um ódio a Israel que, se deixado correr seu curso, disso estou certo, só pode servir ao flagelo do antissemitismo, que é mau e injusto? Como o pensamento dialético marxista chegou a se prestar à preparação do genocídio iminente?”
(Jean Améry, Ensaios sobre Antissemitismo, Anti-Sionismo e a Esquerda)
Em L’Imprescriptible: Pardonner? Dans l’Honneur et la Dignité, publicado em 1971,o filósofo francês Vladimir Jankélévitch, descendente de judeus russos, anteviu uma conexão cada vez mais sinistra entre Israel, o antissemitismo e o Holocausto, hoje tornada mainstream nos meios progressistas do Ocidente. De acordo com Jankélévitch, o genocídio dos judeus europeus lançou sobre os eventos da Segunda Guerra Mundial, bem como sobre a era contemporânea como um todo, um manto silencioso e recalcado de culpa. Tal era o “segredo vergonhoso” (“ce secret honteux”) por trás da aparente “boa consciência contemporânea”: a ansiedade oculta que se apossara do espírito de tantos europeus diante da tardia realização da enormidade do crime no qual, seja como perpetradores, seja como espectadores omissos, estiveram tão profundamente implicados.
O que fazer diante de um remorso tão penoso e incubado? Para Jankélévitch, o antissionismo surgiu como a solução, criando uma providencial oportunidade para tão necessário alívio, ao oferecer a liberdade, o direito e talvez até o dever de ser antissemita em nome dos direitos humanos. O antissionismo tornou-se o novo antissemitismo “justificável”. Afinal, se os judeus eles próprios não fossem melhores que os nazistas, não seria mais tão necessário ter pena deles. Que melhor álibi psicológico poderia haver para esquecer o crime indescritível e seguir adiante, diluindo todas as responsabilidades individuais e coletivas num caldo de relativismo moral no qual se confundem vítimas e agressores?
A fala abjeta do atual mandatário brasileiro — que mergulha o país num dos mais graves incidentes diplomáticos de nossa história, levando-nos às raias da ruptura de relações com Israel e para o colo dos terroristas do Hamas — advém desse caldo. Hoje, diante do recrudescimento da hostilidade a Israel que se tornou mainstream na assim chamada “comunidade internacional”, as observações de Jankélévitch soam até óbvias, embora não o fossem na época. Pelo menos parte da judeofobia contemporânea bem como o antagonismo em relação ao Estado nacional judaico servem psicologicamente como um mecanismo de compensação para descarregar sentimentos de culpa latentes e muitas vezes não confessados sobre os judeus. Na verdade, aqueles que rotulam Israel como um Estado nazista matam dois coelhos com uma cajadada só. Ao mesmo tempo que apontam o dedo para as vítimas de outrora — que não seriam melhores do que ninguém (e, a bem da verdade, seriam até piores, haja visto não terem aprendido com sua própria história) —, ficam livres para expressar, em linguagem antissionista e politicamente correta, sentimentos de antipatia aos judeus que já são seriam francamente aceitos entre as pessoas educadas. Transformando a Estrela de Davi na suástica, os adeptos dessa retórica mudam as vítimas em perpetradores, legitimando o ato de vilipendiar como “racistas”, “fascistas” e apologistas da “limpeza étnica” os judeus e os simpatizantes do Estado “nazista” de Israel. De fato, em muitos países europeus (notadamente na Bélgica e na França), estudiosos relatam ser cada vez mais difícil discutir o Holocausto sem equilibrá-lo com referências obrigatórias à Palestina, destinadas a equiparar os horrores da Alemanha Nazista com os da Nakba (“catástrofe”) palestina desde 1948.
Falamos acima do antissionismo como uma oportunidade de descarregar sentimentos de culpa latentes e muitas vezes não confessados sobre os judeus. No caso do mandatário brasileiro, um comunista orgulhoso (alguém para quem, portanto, “a nossa moral é diferente da deles”), obviamente não há qualquer sentimento de culpa envolvido, coisa que, aliás, os comunistas desconhecem. O que há é a tentativa deliberada — ao contrário do que alegam os sicofantas da imprensa amestrada do regime, que atribuíram a fala antissemita a um “deslize” decorrente de um discurso “improvisado” — de explorar politicamente essa culpa, com vistas a um movimento geopolítico calculado em favor do eixo totalitário que inclui regimes ditatoriais como os da Rússia, China e Irã (este, sim, oficialmente genocida) e no qual, junto com Venezuela, Cuba, Nicarágua e outros países latino-americanos governados pelo Foro de São Paulo, o Brasil agora se insere de maneira oficial.
A equiparação do sionismo ou judaísmo à ideologia nazista é um tópos antigo e persistente no discurso comunista desde os tempos de Stalin, tendo sido exportado da URSS para o Oriente Médio. Entre os radicais islâmicos, o moto foi celebremente consagrado numa declaração de Mamduh al-Shaykh, integrante do Estado Islâmico: “O sionismo não passa de nazismo com um rosto judeu, enquanto o nazismo é na verdade sionismo com uma aparência secular”. Também nos anos 2000, o aiatolá Ali Khamenei, líder do Irã, já havia esposado essa forma de negacionismo do Holocausto, criticando as “estatísticas exageradas sobre mortes de judeus” durante o período nazista, e enfatizando o que chamava de uma estreita simbiose entre os sionistas e os nazistas alemães (uma campanha de desinformação soviética formulada e amplamente disseminada nos tempos de Brejnev). E, nos anos 1980, em sua tese de doutorado (defendida em Moscou), Mahmoud Abbas repetiu a peça de desinformação soviética durante a guerra fria, segundo a qual o sionismo havia inspirado o racismo de Hitler. A mesma peça de desinformação que pautara a infame resolução 3.379 da ONU, que apontava o sionismo como uma forma de racismo.
Essa tese, que aparece de forma agressiva no establishment cultural e político no mundo islâmico, surge também fortemente no Ocidente dos anos 1960, no discurso da assim chamada nova esquerda, e no vocabulário das organizações internacionais. Trata-se daquilo que estudiosos do antissemitismo — a exemplo de Deborah Lipstadt, Robert S. Wistrich, Jeffrey Herf, Esther Webman, Yehuda Bauer, entre outros — têm chamado de “inversão do Holocausto”, narrativa na qual o antissemitismo se adorna numa terminologia de direitos humanos que, conquanto repudiando explicitamente o legado nazista, evoca o Holocausto mais como uma vara com a qual bater no Estado Judeu em nome da “humanidade universal” e dos direitos do “outro” — que, por alguma estranha razão, se tornou quase que exclusivamente identificado com o palestino.
Exemplos do amálgama “nazista-sionista” são abundantes na internet, na televisão, na imprensa e nas artes. O tom desse discurso fora estabelecido, por exemplo, já em abril de 2002, quando um tabloide grego de esquerda, o Eleftherotypia, apresentou uma caricatura de um soldado nazista, rotulado com uma Estrela de Davi, ameaçando um árabe, vestido como um prisioneiro judeu de campo de concentração. A manchete falava em “Holocausto II”, e a imagem se fazia acompanhar da seguinte legenda: “A máquina de guerra de Sharon está tentando realizar um novo Holocausto, um novo genocídio”.
A vanguarda intelectual e artística europeia, desde o vencedor do Prêmio Nobel português, o falecido José Saramago, até o recentemente falecido gigante literário alemão Günter Grass, também não é menos culpada pela “inversão do Holocausto”. Escrevendo no jornal espanhol El País no mesmo ano de 2002, como já mencionei numa de minhas colunas aqui em Oeste, Saramago comparou grotescamente a capital da Cisjordânia, Ramallah, com Auschwitz.
As origens desse desenvolvimento remontam ao surgimento de um esquerdismo militante na maioria das sociedades ocidentais no final da década de 1960, o surgimento de uma geração radical para quem, segundo o esquematismo anticolonialista, os palestinos eram retratados como pertencentes à onda do futuro. Os novos profetas da esquerda todos vieram do Terceiro Mundo — Ho Chi Minh, Che Guevara, Fidel Castro, Frantz Fanon, Mao tsé-Tung e, por último, mas não menos importante, Yasser Arafat, uma figura inteiramente fabricada pelo serviço secreto soviético para avançar a agenda antissionista (equiparada à luta anticolonialista). Desde então, o antissionismo se tornou parte integrante da cultura política da esquerda como um todo, contaminando os partidos social-democratas mainstream, os sindicatos, a intelligentsia de esquerda, bem como o meio estudantil tradicionalmente receptivo, as seitas trotskistas e a subcultura anarquista.
Daí que o surgimento do terrorismo palestino estivesse destinado a ganhar o aplauso da nova esquerda, dada sua cultura romântica de guerrilheiros, sua atração pela ação direta e pelo extremismo político. Ao longo dos últimos 20 anos, o antissionismo de esquerda baseou-se nessas afinidades, que vão além da simples doutrina ideológica, e levaram ao estabelecimento de vínculos organizacionais entre grupos terroristas palestinos e árabes radicais da Síria, Iraque e Líbia, por um lado, e extremistas militantes no Ocidente, por outro. Não é por acaso que grupos como a Fração do Exército Vermelho, na Alemanha Ocidental, as Brigadas Vermelhas, na Itália, o IRA e os extremistas neofascistas, na Europa, tenham cooperado no passado com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) ou com Kadafi, da Líbia, assim como mantiveram contato com os serviços secretos soviéticos e do Leste Europeu. Para todas essas organizações terroristas, o antissionismo é um elo importante em um padrão maior de busca por minar o próprio tecido das democracias ocidentais por meio de uma campanha de terror, intimidação e desinformação. O fato de que entre os alvos desses grupos violentos estejam tanto instituições judaicas quanto israelenses da diáspora é um lembrete de como a luta para desestabilizar Israel requer que a posição dos judeus como um todo seja minada. Pois o antissionismo extremo da esquerda, em última análise, não distingue entre os israelenses e a “judeidade” sionista, assim como não o fazem os palestinos, os iranianos ou os árabes radicais.
Trata-se de uma das maiores ignomínias cometidas por um chefe de Estado brasileiro em toda a nossa história. O povo brasileiro, mundialmente reconhecido por sua relativa tolerância cultural e abertura ao outro, não merece ser aviltado dessa forma
Ninguém descreveu melhor esse novo antissemitismo — do qual o mandatário brasileiro é um agressivo porta-voz — do que Irwin Cotler, membro do Parlamento canadense, ativista dos direitos humanos e outrora advogado de Nelson Mandela e Andrei Sakharov:
“As Nações Unidas estão apartando Israel e o povo judeu como merecedores de tratamento discriminatório na arena internacional. Sob o propósito de proteger os direitos humanos internacionais, o que fazem é dar cobertura ao antijudaísmo… O antissemitismo tradicional consiste na discriminação contra os judeus e na negação de seu direito de viverem como iguais em suas nações hospedeiras. O novo antijudaísmo faz o mesmo vis-à-vis o direito de Israel e do povo judeu de viverem como iguais em meio à família das nações. O que há de comum às duas formas de antijudaísmo é a discriminação. O que se passou é que, em lugar de discriminar os judeus como indivíduos ou grupos em sua sociedade hospedeira — num processo voltado à diáspora —, agora se os discrimina enquanto povo, num processo voltado contra Israel.”
Portanto, não. Não há improviso no antissemitismo do mandatário brasileiro. Por trás de sua fala indecorosa, há toda uma cultura política e uma estratégia geopolítica em curso. Ao lançar mão do velho amálgama “nazista-sionista”, o político que, segundo seus entusiastas, foi reconduzido ao poder para “salvar a democracia” leva o Brasil para o lado das ditaduras mais brutais e criminosas do mundo contemporâneo. E, como bem disse hoje uma sobrevivente brasileira do 7 de outubro, que perdeu o seu companheiro no pequeno Holocausto promovido pelo Hamas, a aproximação do regime brasileiro com o terrorismo antijudaico põe em risco os judeus brasileiros. Trata-se, sem sombra de dúvidas, de uma das maiores ignomínias cometidas por um chefe de Estado brasileiro em toda a nossa história. O povo brasileiro, mundialmente reconhecido por sua relativa tolerância cultural e abertura ao outro, não merece ser aviltado dessa forma.
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Não saberia identificar com precisão as raízes desse antissemitismo. Algumas a gente identifica até com alguma facilidade. O revolucionário em geral e o esquerdista em particular nutrem uma revolta profunda contra as instituições consolidadas nas tradições, menos pelas instituições tradicionais do que por uma amargura interior, por um desgosto íntimo que lhe dilacera a alma em afecções crônicas, geralmente de natureza sexual, com destaque para o homossexualismo, que o revolucionário acaba deixando-se trair, não conseguindo conter a avalanche que lhe irrompe das potências inferiores da alma, projetando-se no meio externo sob a forma de revolta contra a família, contra o sionismo e o semitismo, contra o cristianismo; enfim, contra tudo aquilo que representa os preceitos morais, os alicerces culturais, as ordens constituídas e os estamentos.
Melhor artigo que li sobre o fato ! Todos os judeus brasileiros de esquerda deveriam ler
Verdade. E eles estão espalhando suas ideologias
Q texto esclarecedor! Ele precisa ser levada para as aulas de história em nossas escolas O povo judeu é o povo pai de uma nação cristã como o Brasil
Ele está sempre nos envergonhando.
Muito esclarecedor o artigo, é o mesmo que dizer que a escravidão hoje pode ser boa pois escravizará brancos e não uma fala abjeta e sem sentido, para o que historicamente representou para a humanidade. Eu não sei a intenção de tudo isso só acho que é isso que estão fomentando para um futuro próximo.
Os judeus são vítimas do holocausto da Alemanha nazista, isso sem sombra de dúvida. Os alemães que nasceram pós segunda guerra,estão imune a essa tragédia humana, mesmo assim tem sentimentos de culpa pelos seus gestos comportamentais. A nova esquerda ocidental tomou o rumo da ignorância pela doutrinação marxista. Os Árabes são inimigos de Israel por sectarismo da barbárie
É preciso lembrar que a Europa está povoada de refugiados islâmico e há muito tempo e que hoje, essa situação, é uma relevante influência no pensamento e no posicionamento de países europeus, no que diz respeito à esse assunto.
Explanação brilhante do atual anti-semitismo .
VERGOLHA NACIONAL – DESGOVERNO
Repassando para um amigo que me indicou seu livro: A corrupção da inteligência. Li e gostei muito, desde então não perco seus artigos e comentarmos X. Fiquei estarrecida ao saber das posturas de Saramago e Günter Kraus.
Muito esclarecedora o artigo.
Não podemos esquecer que quando o Adrilles Jorge levantou a mão da forma como ele fez, sem intenção alguma chegou até a perder o seu emprego.
Bom ler uma afirmação de que o escritor Gunter Grass faz parte do que passa pano no Holocausto. Muitos não esclarecem e sempre quis uma resposta. Um escritor que chegou a receber o Nobel da Literatura ! É uma grande prova do que este prêmio muitas vezes significa, apesar de existir exceções como no caso por exemplo do Dr Luc Montagnier.
Seria interessante se o Flavio Gordon fizesse uma análise da obra ” O Tambor” do Gunter.
(Obs: só achei estranho o Flavio se referir como “companheiro” o namorado da brasileira que esteve relatando sobre o 07 de Outubro ao lado do Ministro israelense. Ela mesma o referiu como namorado. )
Como alguém, que se envolve em conflitos, para os quais, não possui nenhuma competência de estadista, pode almejar a indicação para um prêmio NOBEL? #ABSURDO !
Parabéns, Flávio, por sua lucidez e coerência!