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Um palestino atira pedras com um estilingue contra tropas israelenses durante confrontos após uma greve geral em protesto contra os ataques aéreos israelenses em Jabalia, em Gaza, em Hebron, na Cisjordânia ocupada por Israel (1º/11/2023) | Foto: Reuters/Mussa Qawasma
Edição 189

A teoria do terrorismo revolucionário

Com base nessa inversão revolucionária entre causa e efeito, infere-se logicamente que, quanto maior o grau de terror manifesto, maior e mais violenta deve necessariamente ter sido a opressão israelense

Flávio Gordon
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“O dever de se arrepender impede o bloco ocidental, eternamente culpado, de julgar ou combater outros sistemas, outros Estados, outras religiões. Nossos crimes passados nos obrigam a calar a boca. Nosso único direito é o silêncio… Evidentemente, não se pode treinar gerações inteiras para a prática do autoflagelo sem pagar um preço por isso.”
(Pascal Bruckner, A Tirana da Penitência)

Em coluna de janeiro deste ano, comentei sobre uma interpretação perversa feita por intelectuais progressistas a atentados terroristas cometidos por radicais islâmicos, que induz a opinião pública a depositar sobre os ombros do Ocidente (e dos Estados Unidos, em particular) a culpa quintessencial pelo ocorrido. Mencionei particularmente os discursos de Noam Chomsky e Jean Baudrillard (os quais, no Brasil, foram copiados pelo psolista Vladimir Safatle) acerca do 11 de Setembro de 2001, episódio visto por ambos como uma reação, posto que extrema, ao imperialismo norte-americano (ou “estadunidense”, como se diz no idioma da esquerda). Escrevi à época:

“Nota-se que esses intelectuais são unânimes em tratar o terrorismo como reação, ou retaliação, a uma agressão anterior. Antes que ação motivada política e ideologicamente, o terrorismo seria equivalente à agressividade reativa de uma fera acuada. Sendo os Estados Unidos ou o Ocidente os ‘verdadeiros’ agentes do terrorismo, análises como as de Chomsky, Baudrillard e Safatle acabam por equiparar os terroristas e as vítimas, ambos passivamente sujeitos à atuação de um ator histórico que, de fora e acima, os determina igualmente. Diante do algoz abstrato e categorial, as vítimas concretas (os mortos pelo terror) e os agressores concretos (os terroristas do Estado Islâmico, por exemplo) são todos, de direito, igualados na condição de pacientes históricos. Diante do ‘fato’ primeiro da opressão, o terrorismo torna-se praticamente um imperativo categórico — ou, nas palavras de Safatle, ‘a ação política mais adequada para a nossa época’.”

Noam Chomsky, no Fórum Social Mundial, em 2003 | Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Mas, além dos Estados Unidos, há sempre uma outra vítima preferencial desse tipo de terrorismo intelectual (no sentido de Jean Sévillia). O padrão argumentativo de Chomsky e Baudrillard — que enxergam o terror islâmico invariavelmente como reação, nunca como ação — também é recorrente entre os que procuram relativizar ataques terroristas contra Israel, como temos visto no presente momento. Deixando de lado os antissemitas convictos (quer assumidos, quer disfarçados), resta que, em sua manifestação nua e crua, o terror parece ser inapreensível para certas almas sensíveis, incapazes que são de admitir que, como escreveu o filósofo político André Glucksmann, “o ódio precede e predetermina o objeto que fabrica para si”. Ou seja, um terrorista não precisa de razões, apenas de pretextos. 

Dentre tantos intelectuais do Ocidente, o já falecido escritor português José Saramago, um comunista, era um bom exemplo dessa incapacidade. Lembro-me, por exemplo, de uma violenta operação militar israelense para caçar terroristas na cidade de Jenin (Cisjordânia), ocorrida em abril de 2002. Embora tenha resultado num grande número de baixas de ambos os lados, a ofensiva foi chamada pela grande parcela pró-Palestina (esquerdista) da intelligentsia de “genocídio de Jenin”. Sobre o ocorrido, Saramago publicou no El País um artigo de opinião com o título “De las piedras de David a los tanques de Goliat”. No texto, o romancista condenava veementemente a política israelense em relação aos palestinos e, propondo nova leitura do Livro de Samuel, conferia um sentido inusitado à história de David e Golias. 

José Saramago (2014) | Foto: Wikimedia Commons

Partindo da opinião de que não há nada de heroico em matar alguém à distância com uma arma — mesmo o inimigo sendo um gigante, e a arma, uma funda —, Saramago termina sugerindo que David (no texto, uma sinédoque para “judeus”) teria, com o passar do tempo, se transformado num Golias muito mais poderoso do que fora o gigante bíblico, pois que carregado de tecnologia bélica, tanques e armas de grosso calibre. O propósito último do artigo era equiparar o sionismo e o nazismo, um sofisma rasteiro idealizado por Leonid Brejnev nos anos 1960.

Como tem sido frequente nos dias de hoje por parte dos companheiros de viagem do Hamas, Saramago sugeriu haver entre os judeus uma tendência à autovitimização, o que lhes garantiria o direito à prática de todo tipo de arbítrio e violência

Curiosamente, Saramago dizia no texto que a arma de David era uma “pistola”, e defendia a afirmação nos seguintes termos: “Que não era uma pistola, protestarão indignados os amantes das soberanas verdades míticas, que era simplesmente uma funda, uma humílima funda de pastor, como já as haviam usado em imemoriais tempos os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado. Sim, de fato não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não tinha gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível no côncavo do qual a mão experta de David colocaria a pedra que, à distância, foi lançada, veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça de Golias, e o derrubou, deixando-o à mercê do fio da sua própria espada, já empunhada pelo destro fundibulário. Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu matar o filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi simplesmente porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube manejar”. Eis aí um argumento espantoso, que é quase como afirmar que, no famoso conto de fadas, é Chapeuzinho Vermelho quem veste as roupas da Vovozinha para devorar o Lobo Mau, e acusar de “amantes das soberanas verdades míticas” todos os que, em objeção, lembrem que, na verdade, foi o Lobo Mau quem se vestiu de Vovozinha para devorar a Chapeuzinho. 

David com a Cabeça de Golias, relevo de mármore na fachada da Catedral de Milão, na Itália | Foto: Shutterstock

Para caracterizar os judeus, em certo momento Saramago lançava mão da expressão “aquele louro David de outrora”. O escritor comunista parecia achar importante associar a cor clara de cabelo e pele aos judeus, em contraste com os cabelos escuros e pele morena dos palestinos. Com isso, procurava reforçar subliminarmente o argumento de que Israel é um Estado racista, equivalente à Alemanha nazista. Ao longo do texto, Saramago faz uso abundante de tiradas simbólicas do tipo, de modo a convencer o leitor não pela razão, mas pela emoção. 

Tanto em sua coluna quanto em declarações públicas posteriores, Saramago lançou mão de analogias nessa linha, como, por exemplo, entre Ariel Sharon (então primeiro-ministro de Israel) e Adolf Hitler ou entre o cerco empreendido por Sharon a Yasser Arafat e os horrores de Auschwitz. Quando um jornalista israelense perguntou onde estavam as câmaras de gás no caso de Arafat, o português respondeu: “Ainda não apareceram”.

Ariel Sharon, ex-primeiro-ministro de Israel (2001) | Foto: WIkimedia Commons

Como tem sido frequente nos dias de hoje por parte dos companheiros de viagem do Hamas, Saramago sugeriu haver entre os judeus uma tendência à autovitimização, o que lhes garantiria o direito à prática de todo tipo de arbítrio e violência. Interpretando de forma literal as palavras de Jeová descritas no Deuteronômio — “A vingança é minha, e eu serei reparado” —, o comunista português usou termos fortes e, obviamente, de mau gosto: “Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá nunca ser submetido a juízo, porque foi torturado, gaseado e incinerado em Auschwitz”. 

Foi apenas no último parágrafo de seu artigo que o escritor mencionou os atentados a civis israelenses, e já não o fez com a clareza observada no restante do texto, mas num estilo sinuoso e elíptico, como se escrevesse a contragosto:

“As pedras de David mudaram de mãos, agora são os palestinos que as atiram [note-se que, ao passar dos judeus para os palestinos, Saramago faz a arma de David voltar a ser pedra, e já não mais ‘pistola’]. Golias está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo norte-americano. Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos terroristas suicidas… Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.”

Palestinos entram em confronto com as forças israelenses durante as manifestações da “Grande Marcha do Retorno” na fronteira entre Israel e Gaza, a leste da cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza (28/6/2019) | Foto: Abed Rahim Khatib/Shutterstock

Como se vê, a presente retórica do “o terrorismo é condenável, mas…” é uma velha tradição nos discursos dos intelectuais enragés. Para Saramago — bem como para Chomsky, Baudrillard e tantos outros —, as razões pelas quais um ser humano decide transformar-se numa bomba parecem ser transparentes e inequívocas. O terrorismo aparece aí como uma estratégia política compreensível, razoável e, mais ainda, como a única alternativa viável. “Que outra via senão o terror?” — perguntava Baudrillard sobre o 11 de Setembro.

Desconsiderando por ora a malícia com fins político-ideológicos, o humanismo rousseauniano desses autores deixa-os despreparados para lidar intelectualmente com o terrorismo, levando-os a ignorar o fato de que ele vem sendo um instrumento proativo e estratégico, amplamente utilizado por movimentos políticos ao longo da história contemporânea. De acordo com Saramago et caterva, para que alguém seja levado a praticar o terror, faz-se necessário um impulso extremo, quase instintivo. Com isso, desconsideram-se o longo planejamento e fundamentação ideológica que, historicamente, têm servido de base para ações terroristas (ver, quanto a isso, o livro Revolutionary Apocalypse: Ideological Roots of Terrorism, de Luciano Pellicani). Mesmo tendo sido um bom escritor — dotado, portanto, de uma capacidade imaginativa acima da média —, Saramago não era capaz de imaginar a possibilidade de que o terror possua razões que a própria razão desconhece. Para ele, o terrorismo palestino nada mais era que a medida da culpa israelense. Assim, com base nessa inversão revolucionária entre causa e efeito, infere-se logicamente que, quanto maior o grau de terror manifesto, maior e mais violenta deve necessariamente ter sido a opressão israelense (“e, claro está, do amigo norte-americano”). E essa premissa resume basicamente toda a opinião pública pró-Hamas contemporânea.

Leia também “O que deve o jihadismo ao Ocidente”

10 comentários
  1. Perecles Antônio Gonçalves Pacheco
    Perecles Antônio Gonçalves Pacheco

    O teórico insensível só é tal até acontecer de um seu parente próximo ser vítima do terror impiedoso.

  2. ALEX
    ALEX

    E e por isso, senhores e senhoras, que você jamais verá Flávio Gordon ser entrevistado na TV aberta. Ele simplesmente DESMONTA essas narrativas esquerdistas.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Muito bom.

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Os portugueses estão muito bem representados.
    Antes Saramago e atualmente António Guterres com seu discurso horroroso.

  5. Pedro Augusto da Silva Cunha
    Pedro Augusto da Silva Cunha

    O problema da história não é o que estão contando, é o que não contam.
    Ótimo artigo! Eles, para mim, servem como livros de história, me ajudam a desenvolver minha capacidade cognitiva.

  6. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    Israel vive

  7. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Corrigindo: desse velho desgraçado português.

  8. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns. Nunca li nada de velho desgraçado português. Jamais lerei e se tiver um inferno, espero, desejo que esteja sofrendo muito. Comunista inútil, imprestável como aliás é todo comunista.

  9. Maria Weber
    Maria Weber

    Texto maravilhoso

  10. NOS
    NOS

    A crise é de valores morais. Essas criaturas bárbaras, terroristas, ainda estão vinculadas à interpretações fundamentalistas do Corão pertencentes ao século X que optou por grupos radicais defensores da Predeterminação em detrimento da Razão. Situação dificílima que envolve não só Israel, mas toda a cristandade que, uma vez vencidos os judeus, será a próxima a ser perseguida. Faço um apelo aos que me leem: torçam para que os efeitos colaterais da justa reação de Israel sejam mínimos, mas sobretudo orem.

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