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Sessão plenária do TSE | Foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE
Edição 207

A institucionalização da censura pelo TSE

Resolução do Tribunal Superior Eleitoral abre caminho para a censura e o tratamento desigual entre os candidatos

Loriane Comeli
Thiago Vieira
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Os casos de censura abundantemente registrados nas eleições de 2022 podem se repetir no pleito municipal deste ano, no que depender do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A Corte, presidida pelo ministro Alexandre de Moraes, já encontrou “fundamento” legal e constitucional para tirar do ar o mais rápido possível conteúdo com “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que possam atingir a integridade do processo eleitoral” e, com isso, afastar o “coronelismo digital” e evitar “enevoar a liberdade do eleitor”.

Com esse tom paternalista, os sete ministros da Corte aprovaram em 27 de fevereiro, por unanimidade, alterações na Resolução nº 23.610/2019, que trata da propaganda eleitoral. Entre as principais mudanças está a determinação para que os provedores de internet e as plataformas de redes sociais passem a ser responsáveis por censurar conteúdo eleitoral considerado falso ou descontextualizado. Se não o fizerem, serão penalizados. 

De relatoria da ministra Cármen Lúcia, vice-presidente do TSE que assumirá a Presidência em junho e será responsável pelas eleições municipais, o texto traz artigos que constavam no Projeto de Lei nº 2.630/2020, o chamado “PL das Fake News” ou “PL da Censura”. A Câmara dos Deputados se recusou a votar o projeto — apesar do empenho pessoal de ministros do STF e do TSE e dos esforços do governo do presidente Lula. Mas, mais uma vez, os ministros usurparam a competência do Congresso.

Ministra Cármen Lúcia, vice-presidente do TSE | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

“Hoje, pautas do Legislativo são atropeladas pelo Poder Judiciário, são absorvidas por eles”, avalia o advogado constitucionalista André Marsiglia. “O Poder Judiciário, basicamente, com essa resolução, fez isso. ‘Olha, vocês não aprovaram o PL das Fake News, então faço a resolução no lugar do PL’. Isso tem sido recorrente.”

Ciente de que a tarefa de legislar é do Congresso, a ministra fez uma autodefesa prévia durante o discurso de apresentação da resolução sobre propaganda e de outras 11 que vão regular o processo eleitoral deste ano. “Não podemos ultrapassar a lei e não ultrapassamos”, declarou Cármen. “O que nós fazemos nas normas da Justiça Eleitoral é apenas dar exequibilidade e efetividade aos fins postos no sistema constitucional e na legislação.”

Entretanto, o artigo 9º-E da resolução sobre propaganda eleitoral é uma clara afronta ao Marco Civil da Internet. Na lei de 2014, está especificado que os provedores somente serão responsabilizados por conteúdo publicado em suas páginas se não cumprirem determinação judicial para retirá-lo do ar. O intuito da lei agora escanteada pelo TSE é justamente “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”.

‘É quase impossível que não resulte em censura’

Com a resolução do TSE, os provedores devem retirar do ar não apenas conteúdos “notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que possam atingir a integridade do processo eleitoral”, mas também censurar “condutas, informações e atos antidemocráticos”; grave ameaça ou incitação à violência a membros da Justiça Eleitoral e do Ministério Público; “discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas contra uma pessoa ou grupo por preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, religião e quaisquer outras formas de discriminação”; e conteúdos manipulados por inteligência artificial.

Artigo 9º-E da Resolução nº 23.610/2019, que trata da propaganda eleitoral | Foto: Reprodução

Além da clara afronta ao texto legal, um problema que se destaca é a dificuldade de decidir o que é um conteúdo “notoriamente inverídico” ou “discurso de ódio” ou “atos antidemocráticos”, conceitos abertos, cuja censura, quando cabível, pode ser feita apenas pelo Judiciário, em processo com direito ao contraditório e ampla defesa. Agora serão os funcionários do Facebook, do YouTube e do Twitter/X que vão decidir — e de forma imediata, como consta da resolução.

“É impossível que eles saibam qual conteúdo tirar do ar, inviável”, diz Marsiglia. “Por isso que chamo isso de poder de polícia. Pode ser que dê certo e atinjam alguém que está realmente cometendo ilícito. Pode ser que não, que simplesmente sequestrem o conteúdo de alguém que está licitamente se manifestando. Então, isso é muito perigoso, porque você entrega a uma empresa privada o poder de vigiar o discurso alheio e tomar providências em relação a esse conteúdo.”

Esse procedimento vai levar necessariamente à censura, avalia o jurista. “É quase impossível que ele não resulte em censura”, explicou. “Me parece que, para atingir o conteúdo ilícito dessa resolução, ela dá uma carta branca para as plataformas atingirem também o conteúdo lícito. Então, tem um tom absolutamente autoritário e um completo desconhecimento de como a nossa Constituição trata a liberdade de expressão.”

Marcel van Hattem, depois da aprovação da resolução sobre propaganda pelo TSE, fez um duro pronunciamento contra a “interferência completamente indevida e inconstitucional” do TSE no Parlamento

Para driblar o Marco Legal da Internet e a Constituição, que tem como princípio a liberdade de expressão e veda a censura, Cármen Lúcia tenta justificar a ilegalidade. Ela invoca os princípios da “função social e do dever de cuidado dos provedores”, que devem “evitar ou minimizar o uso de seus serviços na prática de ilícitos eleitorais, e não dependem de notificação da autoridade judicial”.

Moraes, na sessão que aprovou a resolução, comemorou as novas regras. “É uma resolução que vai dar os instrumentos necessários à Justiça Eleitoral para combater as famosas ‘milícias digitais’ e garantir ao eleitor que chegue a ele todo tipo de informação, mas não essa informação deturpada, essa informação criminosa e essa informação que pretende solapar a escolha livre do eleitor.”

Alexandre de Moraes
Ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Para Marsiglia, é evidente a inconstitucionalidade da resolução, a despeito da justificativa da Corte. Além de o conteúdo da norma afrontar a liberdade de expressão, a forma como foi feita é questionável. Embora o Congresso Nacional possa derrubar qualquer trecho da resolução, o advogado considera improvável que isso aconteça. Outra opção seria recorrer ao Supremo Tribunal Federal, mas, nesse caso, o texto seria julgado por quem o criou.

Terceirização da censura

Na Câmara dos Deputados, tramitam Projetos de Decreto Legislativo (PDL) para sustar resoluções do TSE que possam resultar em censura. Um deles é do deputado Kim Kataguiri (União-SP). “A resolução do TSE ora atacada exorbitou de seu poder regulamentar ao propor regras que devem ser disciplinadas pelo Parlamento brasileiro, através de lei”, afirma Kataguiri, na justificativa do PDL para sustar a resolução da propaganda eleitoral. 

Ele argumenta que o texto do TSE vai impor às plataformas uma espécie de “poder de polícia” em relação a uma “série de conceitos ambíguos, subjetivos e passíveis de interpretação, como ‘grave ameaça’, ‘desinformação’, ‘conduta ou conteúdo antidemocrático’, punindo-as caso tais conteúdos não sejam fiscalizados previamente ou retirados de circulação de imediato”.

Para o parlamentar, temendo sanções, as plataformas vão optar pela restrição máxima, retirando tudo que gere dúvida, mesmo que lícito. “Se isso ocorrer, a resolução funcionará lamentavelmente como uma terceirização da censura às plataformas”, explica.

Já os deputados do Novo querem sustar um acordo de cooperação técnica entre o TSE e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), cujo propósito é dar celeridade ao bloqueio de sites em decorrência de decisões judiciais. “A falta de clareza quanto aos tipos de conteúdo sujeitos a bloqueio é outro ponto crítico”, justificam Marcel van Hattem (RS), Adriana Ventura (SP) e Gilson Marques (SC) em PDL protocolado em janeiro. “Sem diretrizes claras, decisões arbitrárias ou politicamente motivadas podem ocorrer, gerando um ambiente de medo e autocensura entre cidadãos e a mídia.”

Marcel van Hattem, depois da aprovação da resolução sobre propaganda pelo TSE, fez um duro pronunciamento contra a “interferência completamente indevida e inconstitucional” do TSE no Parlamento. “Quando o tribunal decide, num julgado seu, colocar a Lei da Censura ipsis litteris dentro, ele está legislando contra a vontade do Parlamento”, declarou. “É crime, é antidemocrático pedir o fechamento do TSE ou pedir que se feche o Supremo, mas fechar o Congresso Nacional, os ministros do TSE não veem problema nenhum.”

Em outubro de 2022, às vésperas da eleição, o TSE editou a Resolução nº 23.714, que autoriza a Corte — de ofício, sem pedido de candidatos, partidos ou Ministério Público Eleitoral — a retirar do ar conteúdos impróprios. Essa resolução permanece em vigor, e até agora a Corte não explicou se será usada nas eleições municipais. Em um PDL protocolado no fim de fevereiro, o deputado Thiago Flores (MDB-RO) pede que a resolução seja sustada, porque “a intromissão de um Poder nas atribuições típicas de outro Poder está crescendo e gerando uma grande insegurança jurídica, caracterizando o ativismo judicial”.

Placar: 42 a 6

Marsiglia acredita que a censura poderá recair exatamente sobre candidatos de direita. “Isso preocupa talvez muito mais do que qualquer outra coisa, porque as escolhas que nós temos visto nos últimos tempos, as escolhas dos tribunais, as escolhas das pessoas que de alguma forma estão sendo questionadas a respeito das suas manifestações, são geralmente políticos de oposição, conservadores ou, hoje, o que se chama de direita.” Sinal claro disso é o fato de a resolução citar especificamente “ideologias nazistas, fascistas ou odiosas”, mas se omitir sobre o extremismo de esquerda.

Em 2022, a atuação do TSE foi claramente direcionada contra a direita. Dois casos de censura atenderam a pedidos da esquerda. Em um deles, o TSE mandou a produtora Brasil Paralelo retirar do ar vídeos que vinculavam o então candidato Lula a esquemas de corrupção na Operação Lava Jato. 

O tribunal não indicou qualquer notícia falsa, mas justificou a censura com a alegação de que houve desordem informacional — conceito inexistente na legislação brasileira. “Nesse sentido, considero grave a ‘desordem informacional’ apresentada. E, como tal, apta a comprometer a autodeterminação coletiva, a livre formação da vontade do eleitor”, disse em seu voto o então ministro do TSE Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça de Lula. Ele foi seguido por Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Benedito Gonçalves. 

André Marsiglia, advogado constitucionalista | Foto: Arquivo Pessoal

Também em 2022, atendendo a pedido do PT, o TSE censurou o jornal Gazeta do Povo, que lembrou que Lula era aliado de Daniel Ortega, o ditador da Nicarágua. Naquela eleição, o TSE praticou até mesmo censura prévia, impedindo a Brasil Paralelo de divulgar o documentário Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro?.

Quanto a propagandas feitas pelos próprios candidatos, Lula ganhou de lavada no TSE. Antes de acabarem as eleições, em 14 de outubro, um levantamento da CNN mostrou que o tribunal tinha concedido 42 decisões favoráveis a Lula e seis a Bolsonaro em casos de fake news. O TSE impediu veículos de comunicação e candidatos de relacionarem Lula ao PCC, à liberação do aborto, a ditadores, à corrupção, e de mencionarem suas condenações na Lava Jato, posteriormente anuladas pelo STF.

Com relação aos ataques a Jair Bolsonaro, o tribunal foi menos rigoroso. Permitiu, inclusive, que o ex-presidente fosse chamado de “genocida” pelos adversários. Um dos argumentos da relatora, Cármen Lúcia, é que prevalece no STF o entendimento segundo o qual “o direito fundamental à liberdade de expressão” também protege as opiniões “duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas”.

Agora resta saber se os provedores de internet e plataformas digitais em 2024, a partir da resolução do TSE, serão mais duros, como o tribunal foi em 2022 com Bolsonaro, ou menos rigorosos, como agiu com Lula. E se haverá isonomia entre os candidatos.

Leia também “A patrulha do Judiciário”

10 comentários
  1. Anderson Rozeno Da Silva
    Anderson Rozeno Da Silva

    A Constituição Federal é violada todos os dias por aqueles que têm por obrigação, defende-la.

  2. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Não vejo problema algum em fechar o Supremo e sobretudo o TSE, essa jaboticaba cara e inútil.
    Já que eles fecharam o congresso, eleito pelo povo, preferível que se dissolva a suprema corte, eleita por ninguem.

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    STF não é poder legislador.
    TSE é uma jabuticaba brasileira.
    #Não à censura.

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A quadrilha STF/TSE, com seus componentes Alexandre de Moraes, Luis Roberto Barroso, Benedito Gonçalves, e outros, sabe que a direita é forte nas mídias sociais, por isso a batalha para censurar. E deixar a informação correr livre na TV, onde a esquerda é mais forte, mediante injeção de dinheiro pública via ”verbas publicitárias”.
    E só um adendo, o presidente do TSE nas eleições deste ano não será o Nunes Marques?

    1. Paulo Roberto Zanetti
      Paulo Roberto Zanetti

      Chegamos a isso. Só sinto desprezo por essa gente, que perdeu a vergonha faz tempo.

  5. ODAIR DE ALMEIDA LOPES JÚNIOR
    ODAIR DE ALMEIDA LOPES JÚNIOR

    STF/TSE só geram sentimentos de desprezo e repulsa. Nada mais.

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Eu não sei qual o motivo dessas pessoas do direito da direita, têm uma retórica inexpugnável dessa, o passar de pano, o eufemismo, não faz parte da realidade do que é esse TSE e STF, essa imundice é pra ser extinta da administração pública

  7. Francisco Nascimento Garcia
    Francisco Nascimento Garcia

    O TSE está “terceirizando” a CENSURA para as Big Techs e as redes sociais!
    Acredito que haverá pré-CENSURA por parte das redes sociais, pois os critérios mencionados nessa resolução do TSE são tão subjetivos, que na dúvida para não serem penalizadas as redes sociais vão preferir CENSURAR!
    Vivemos tempos estranhos desde que livraram o LULADRÃO CARNIÇA, o reabilitaram a pparticipar da eleição e o favoreceram, o blindaram durante todo o processo eleitoral.
    É extremamente urgente repensar a existência do STF e o seu puxadinho TSE!

  8. Leonardo Abreu
    Leonardo Abreu

    Cuidado com a bruxa de Blair. Ela é fraquinha, não tem voz própria. E quando fala, papagueia opinião alheia.

  9. CARLOS ALBERTO DE MORAES
    CARLOS ALBERTO DE MORAES

    E assim que funciona uma ditadura: a Direita não pode nada e tem que ficar calada. A esquerda pode tudo.

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