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Winsome Earle-Sears, India Willoughby, Danica Roem e J. K. Rowling | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Reprodução
Edição 208

J. K. Rowling e a tirania dos pronomes

Não é 'desrespeito ao gênero' chamar um homem de homem — é a verdade

Brendan O'Neill, da Spiked
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Estamos em 2024, e as mulheres negras ainda estão sendo publicamente constrangidas por não se curvarem aos homens brancos. A mulher negra em questão é Winsome Earle-Sears, vice-governadora republicana da Virgínia, nos Estados Unidos. Algumas semanas atrás, ela foi parar no centro de uma tempestade depois de cometer o mais horrendo crime de opinião dos nossos tempos: ela se referiu a uma “mulher trans” (ou seja, um homem) como “senhor”. Aconteceu com Danica Roem, senador democrata da Virgínia. Ele é um homem que se identifica como mulher. E, em um debate na Assembleia Geral da Virgínia, perguntou a Earle-Sears quantos votos seriam necessários para aprovar um projeto de lei. “Sim, senhor, seriam 32”, veio a resposta blasfema. “Senhor?!” Preparem a estaca.

Veio a fúria. Earle-Sears foi condenada como alguém que não respeita o gênero. O uso da palavra “senhor” foi “cruel e inaceitável”, lamentaram as pessoas. Ela demonstrou sua “crueldade para o mundo”, afirmou outro homem branco furioso — Zooey Zephyr, também trans, que está na Câmara dos Representantes de Montana. O estado da Virgínia foi brevemente mergulhado na incerteza pela fala pecaminosa de Earle-Sears: toda atividade legislativa na assembleia foi suspensa enquanto os funcionários tentavam entender o que fazer sobre a falta de respeito da senhora negra pelos pronomes do senhor branco. No fim das contas, Earle-Sears reconheceu o erro de suas atitudes de bruxa. “Peço desculpas, peço desculpas, peço desculpas”, ela entoou. A mulher negra está penitente, a autoestima do homem branco é restaurada, tudo fica bem no mundo.

Danica Roem e Winsome Earle-Sears | Foto: Reprodução/Office of the Lieutenant Governor

Você pode cobrir esse incidente com todo o requinte interseccional que quiser. Você pode dizer que se trata de “equidade” e garantir que pessoas trans se sintam “seguras” no local de trabalho, blá, blá, blá. Mas, em resumo, o que vimos aqui foi a humilhação de uma mulher negra por não se curvar e bajular o orgulho de um homem branco. Parece familiar? No passado, uma mulher negra nos Estados Unidos poderia esperar uma severa reação social se não se referisse a um homem branco como “senhor” — agora o mesmo ocorre se ela se referir a um homem branco como “senhor” quando esse homem branco se fantasia de senhora. Em ambos os casos, a necessidade do homem de validação — seja de sua superioridade social, seja de sua identidade de gênero — está acima do direito da pequena mulher de falar como quiser.

O castigo moral de Winsome Earle-Sears expõe o punho de ferro da intolerância que se esconde na luva de veludo dos “pronomes”. O policiamento dos pronomes, a punição ruidosa do chamado “desrespeito ao gênero” — não se trata de criar uma sociedade mais justa e amigável. Trata-se de reprimir a dissidência. Trata-se de constranger aqueles — especialmente mulheres — que não conseguem ou simplesmente se recusam a se curvar à ideologia de gênero da nova classe dominante. É uma lição, um aviso, de cima para baixo: “Abrace a nossa ideologia e fale nossa língua, ou vamos destruir você”. A guerra contra o “desrespeito ao gênero”, que é uma guerra contra a verdade, é a manifestação mais tirânica do politicamente correto.

A própria expressão “desrespeito ao gênero” é pura conversa mole. Não é “desrespeito ao gênero” se referir a um homem como homem, é “atribuição de gênero”, a descrição exata e verdadeira do sexo de uma pessoa

10 mil vaginas falsas

Outra mulher foi arrastada para a fogueira recentemente por “desrespeitar o gênero”: J. K. Rowling, a criadora da série Harry Potter. Ela também cometeu o sacrilégio moderno de chamar um homem de homem. O homem era India Willoughby, apresentador de TV que acredita que o fato de ter sido castrado e de ter escolhido uma “vagina de marca” faz dele uma mulher. Não faz. Rowling estava externando no X suas preocupações sobre homens biológicos poderem usar espaços exclusivos para mulheres, quando outro usuário postou um vídeo de Willoughby dançando e perguntou a Rowling se “essa senhora deveria usar o vestiário masculino”. A resposta de Rowling foi contundente e brilhante: “Você me enviou o vídeo errado. Não há uma senhora neste aqui, só um homem desfrutando da performance misógina do que ele acha que ‘mulher’ significa: narcisista, superficial e exibicionista”.

J. K. Rowling na estreia mundial de Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore, no Royal Festival Hall, em Londres, na Inglaterra (29/3/2022) | Foto: Shutterstock/Fred Duval

Não houve nenhuma mentira na resposta de Rowling. Willoughby é um homem. Um homem sem pênis não se torna uma mulher, assim como um cachorro sem latido não se torna um gato. E ela está certa ao dizer que o ativismo trans muitas vezes soa como uma paródia repulsiva da feminilidade. Willoughby mesmo disse que escolheu sua “vagina de marca” em um catálogo de 10 mil vaginas falsas e que era como “escolher um penteado”. Nojento, não? A redução feita pelo ideólogo trans da feminilidade a um produto de consumo, uma coisa que pode ser comprada e usada como um trapo velho, um produto “de marca”, como uma bolsa ou um sapato — sim, eu chamaria isso de misógino, narcisista e superficial.

E, mesmo assim, só por dizer verdades, Rowling foi arrastada pelas brasas. De novo. Willoughby criticou sua “transfobia grotesca”. “J. K. Rowling desrespeita deliberadamente ativista trans India Willoughby”, afirmou uma manchete chocada no Independent. Seu gesto muito público de “desrespeito ao gênero” é mais uma prova de suas “opiniões polêmicas”, disse o Mirror. Sim, agora é polêmico dizer que um homem não é uma mulher. Dar voz à realidade biológica. Reconhecer a existência do sexo. É uma prova do turbilhão de autoritarismo dos nossos tempos que praticamente da noite para o dia tenha se tornado um crime abominável dizer uma verdade que a humanidade conhecia havia dezenas de milhares de anos: existem homens e mulheres, e eles não são iguais.

Os novos caçadores de heresias

O constrangimento sexista mais recente de J. K. Rowling captura quanto a ideologia trans se tornou orwelliana. A própria expressão “desrespeito ao gênero” é pura conversa mole. Não é “desrespeito ao gênero” se referir a um homem como homem, é “atribuição de gênero”, a descrição exata e verdadeira do sexo de uma pessoa. O rebranding do gênero correto como “desrespeito ao gênero” é um ataque assustador e escorregadio à própria ideia de verdade. Ele transforma a verdade em crime e transforma a mentira em sabedoria. E transforma os que falam a verdade em párias sociais e os que se entregam a falsidades em santos sociais. Nesse caso, a falsidade de que alguém que nasceu homem, passou pela puberdade masculina e até mesmo gerou um filho — algo que só alguns de nós podem fazer — é literalmente uma mulher. E qualquer um que diga o contrário é escória.

Quando os novos caçadores de heresias gritam “Você não respeita o gênero!” às mulheres, na verdade estão exigindo que essas mulheres reneguem suas heresias científicas e se submetam ao delírio pós-verdade da ideologia trans. É uma tentativa de conversão forçada a uma nova religião — a religião das “almas com gênero”, que postula que o gênero misterioso de uma pessoa às vezes vai contra sua irritante carcaça biológica. Mas alguns de nós acreditam nisso tanto quanto acreditam que Cristo andou sobre as águas ou que Maomé voou para o paraíso em um cavalo.

India Willoughby, apresentador de TV que acredita que o fato de ter sido castrado e de ter escolhido uma “vagina de marca” faz dele uma mulher | Foto: Reprodução

Aquele usuário do X que confrontou Rowling com o vídeo e insistiu que a escritora reconhecesse a “feminilidade” de Willoughby não era diferente dos inquisidores de antigamente que brandiam a Bíblia na cara de um herege e insistiam que ele reconhecesse sua divindade. Ao recusar a pressão para se converter, ao preferir o caminho solitário da verdade ao efêmero consolo de sucumbir à turba dogmática, Rowling não apenas defendeu os direitos das mulheres e a liberdade de consciência — ela desferiu um golpe pela verdade em si. Quem busca a verdade já foi condenado como “herege” e agora é rotulado de “desrespeitador do gênero”; mas muitos com certeza ainda reconhecem que a vida difícil de quem adere à razão é mais gratificante do que a vida fácil de ceder à teocracia.

O sacrifício da liberdade de expressão

Talvez o mais perturbador na lamúria da mídia sobre o “desrespeito ao gênero” de Rowling em relação a Willoughby seja que essencialmente estão dizendo para Rowling ser mais respeitosa com um homem que foi incrivelmente rude com ela. Willoughby costuma fazer insultos a mulheres. Ele se referiu à defensora dos direitos das mulheres Maya Forstater como “salada de batata”. E disse certa vez que viu “seis homens” naquela famosa foto de J. K. Rowling almoçando com mulheres críticas da teoria de gênero. Possivelmente, ele estivesse se referindo às lésbicas masculinizadas ali presentes. Isso, sim, é desrespeito de gênero. E outra vez pareceu ter feito uma piada sobre sequestrar mulheres que criticam a teoria de gênero. A ideia de que Rowling deveria se curvar e se humilhar diante de um homem como esse é misoginia básica: “Senhoras, cedam aos homens, mesmo aos homens que agridem vocês”.

Se o “desrespeito ao gênero” for criminalizado, a própria verdade será criminalizada. Nosso direito de descrever o que está diante de nossos olhos — o direito mais fundamental em uma sociedade livre — vai evaporar. E não é só com as turbas digitais que precisamos nos preocupar. O Partido Trabalhista inglês, que provavelmente vai compor o próximo governo do Reino Unido, flertou com a ideia de criminalizar o “desrespeito ao gênero”. Como vimos na Virgínia, a vida política pode ser paralisada pelo “desrespeito ao gênero”. E até Elon Musk está hesitando em flexibilizar antigas regras do Twitter sobre “desrespeito ao gênero”. O sacrifício da liberdade de expressão, do debate aberto e da própria vida pública aos sentimentos de um bando de homens é insano. Como disse Rowling, “sei que muitos de vocês acham que a ONU deveria intervir sempre que as mulheres ferem seus egos, mas não existe nenhum direito humano à validação universal”.


Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show. Seu novo livro, A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable, foi publicado em 2023. Brendan está no Instagram: @burntoakboy

Leia também “Amy Winehouse e o fanatismo dos israelofóbicos”

6 comentários
  1. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Nessas horas eu torço pela invasão muçulmana… Queria ver aonde iriam para esses doentes.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A mesma situação ocorreu com um deputado (que se diz mulher) chamado Duda, de Minas Gerais. Quando o Gen. Augusto Heleno o chamou como ele é, de senhor.
    O negócio dessa turma é viver de chilique e aparecer fazendo algazarras.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A androgeneidade é um fenômeno anomalítico que existe nos humanos, nos animais irracionais e nas plantas. Ninguém explica nem explícita, nem a psiquiatria, nem a neurologia, nem a genética, o fenômeno existe e é minoria absoluta. Essa cultura de identidade de gênero e cultura woke em geral é coisa da nova ordem mundial que conta com intelectuais jumentos ou vendidos. Isso existe até com metade dos cientistas do mundo, a respeito de tudo que a ciência alcança, se vendem pra afirmar tudo que é contrário a ciência, que vai em busca da verdade

  4. MARCIO MARQUES PRADO
    MARCIO MARQUES PRADO

    O respeito ao ser humano, independente de toda a papagaiada reverberada pelas minorias, é vital para um convívio saudável. A realidade é que somos preconceituosos, uma maneira boba de nos resguardar.

  5. Emilio Sani
    Emilio Sani

    nunca li Harry Potter, mas já sou fã da autora

    1. Nilza Helena Costa Oliveira
      Nilza Helena Costa Oliveira

      ra

      também agora vou ser fã da autora

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