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Edição 212

A classe média está desaparecendo?

Poucas façanhas intelectuais são tão fáceis quanto criar impressões falsas com estatísticas verdadeiras

Donald J. Boudreaux
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Nunca é demais dizer que as estatísticas são indispensáveis para uma melhor compreensão da economia. Também não é demais dizer que, ao coletar, divulgar e confrontar estatísticas, é necessário ter extremo cuidado. Poucas façanhas intelectuais são tão fáceis quanto criar impressões falsas com estatísticas verdadeiras. Da mesma forma, é fácil tirar conclusões falsas de estatísticas verdadeiras.

Um exemplo de uma dessas impressões falsas é a lamúria frequente de que a classe média americana está desaparecendo. Se isso fosse verdade, seria considerado uma péssima notícia, já que essa afirmação causa a impressão de que quantidades cada vez maiores de americanos estão indo parar nas classes de renda mais baixa. E, de fato, existem evidências claras para amparar a ideia de que a classe média americana está desaparecendo. No entanto, os americanos da classe média não estão indo para as classes inferiores, mas para as classes superiores.

O Censo dos Estados Unidos informa a porcentagem de domicílios americanos que ganham diferentes níveis de renda anual antes dos impostos. Essas rendas incluem algumas, mas não todas, as transferências que as famílias recebem de programas de assistência social do governo. Elas também são ajustadas pela inflação. Esses dados podem ser encontrados na Tabela H-17 (“Domicílios por Renda Monetária Total, Raça e Origem Hispânica do Chefe do Domicílio”) das “Tabelas Históricas de Renda: Domicílios”. De acordo com as classificações de renda do próprio Censo — por exemplo, “Menos de US$ 15 mil”, “US$ 15 mil a US$ 24.999” e “US$ 25 mil a US$ 34.999” —, a porcentagem de domicílios americanos que ganham (em dólares de 2019) rendas anuais indiscutivelmente de classe média (“US$ 50 mil a US$ 74.999” e “US$ 75 mil a US$ 99.999”) era menor em 2001 do que em 1973, e ainda menor em 2019 do que em 2001. (Uso 2019 como a data mais recente para evitar as distorções econômicas, fiscais e monetárias causadas pelos lockdowns da covid-19 e as extravagâncias monetárias e fiscais inspiradas pela covid-19.)

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Essa tendência parece preocupante. Mas uma análise de todas as faixas de renda domiciliar mais baixa revela que o porcentual de lares americanos que estão nas faixas de renda média-baixa e baixa também é menor do que no passado. Os domicílios americanos que “saíram” das faixas de renda média não foram para as faixas de renda mais baixa; eles ascenderam para faixas de renda mais alta. Em 1973 — que muitas pessoas identificam como um ano em que os americanos comuns alcançaram seu auge econômico —, a proporção de domicílios americanos que ganhavam mais de US$ 100 mil por ano (de novo, em dólares de 2019) era de 16,7%. Em 2019, esse número era 34,1%. Nesse mesmo período, a parcela de domicílios que ganham mais de US$ 200 mil passou de 1,9% para 10,3%.

A única explicação para a classe média americana estar desaparecendo economicamente é o fato de uma quantidade cada vez maior de domicílios americanos ganhar rendas anuais que estão nas faixas superiores.

É preciso ter muito cuidado ao interpretar estatísticas.

Cuidado com as médias

Todo semestre, pergunto aos meus alunos de graduação o que aconteceria com a altura média das pessoas na sala se um bebê recém-nascido fosse levado para lá. Eles imediatamente reconhecem que a média diminuiria. Então questiono se, ao receber um relatório desse declínio da altura média, eles entrariam em pânico e ligariam para seus médicos para saber como parar de encolher. Meus alunos riem e dizem “claro que não”.

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Como esse caso simples demonstra, uma média calculada pode mudar e resultar em impressões enganosas sobre o que está acontecendo com cada indivíduo no grupo sobre o qual a média é calculada. Por exemplo, à medida que mais imigrantes ingressam no mercado de trabalho americano, o salário médio fica mais baixo do que seria se menos imigrantes trabalhassem. É possível que a média diminua porque o imigrante, ao aumentar a oferta de mão de obra, diminua o salário de todos. Mas também é possível — e economicamente mais plausível — que a média diminua sem que haja qualquer redução no salário de nenhum trabalhador. A razão é o fato de que o imigrante típico (ainda) não é tão produtivo no trabalho quanto outro participante típico de longa data da força de trabalho americana. Portanto, o salário do imigrante típico está abaixo da média. Isto é, o emprego dos imigrantes faz com que o salário médio calculado seja puxado para baixo do nível que teria atingido sem o imigrante. Mas é claro que essa realidade estatística não reduz nem controla o seu salário, nem o de qualquer outro trabalhador, da mesma forma que a entrada de um bebê em uma sala de aula de universidade não reduz nem controla a altura de um estudante universitário naquela sala.

Esteja sempre ciente de que esses dados podem ser altamente enganosos se manuseados de maneira descuidada

Se a força de trabalho se tornar mais aberta a trabalhadores com menos habilidades, sem acabar com as oportunidades para trabalhadores com mais habilidades — como parece ter ocorrido nos EUA nas últimas décadas —, esse desenvolvimento é sem dúvida positivo. Mas, como um dos resultados é a pressão para baixo dos salários médios comparados (e até mesmo dos salários medianos comparados), as estatísticas econômicas podem contar uma história enganosamente pessimista.

Localização é um ‘bem normal’

Economistas definem um “bem normal” como um bem que as pessoas demandam mais à medida que aumenta seu poder de compra esperado. Exemplos de bens normais são vinhos finos (e não o vinho de caixa), acomodações em hotel (em vez de hospedarias) e carros novos (em vez de usados). Quando observamos as pessoas consumindo quantidades maiores de um bem normal quando o preço desse bem não caiu, uma possível explicação para esse aumento na demanda é que o poder de compra esperado das pessoas tenha aumentado — e, por sua vez, que as pessoas estejam economicamente mais ricas do que estavam antes.

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Vamos supor que os trabalhadores de hoje que vivem em locais atingidos por significativos “choques” negativos nos empregos sofram períodos de desemprego mais longos do que trabalhadores em situação semelhante no passado. Um resultado é o aumento da duração média do desemprego. O que poderia explicar esse aumento na duração do desemprego? Uma possibilidade é que a taxa de geração de novos empregos pela economia tenha desacelerado em relação à taxa de perda de empregos. Se for esse o caso, essa realidade seria uma evidência de um pior desempenho econômico.

Mas é provável que essa realidade nos EUA de hoje seja mais bem explicada por outra possibilidade bem diferente: a classe trabalhadora está mais rica do que no passado; seu poder de compra ao longo da vida está maior. Evidências contundentes de que os americanos comuns estão muito mais ricos do que no passado podem ser encontradas (entre muitos outros lugares) no livro de 2020 The American Dream Is Not Dead (But Populism Could Kill It) (“O sonho americano não está morto [Mas o populismo pode matá-lo]”, numa tradução livre), de Michael Strain, e na pesquisa de 2022 de Phil Gramm, Robert Ekelund e John Early, “The Myth of American Inequality: How Government Biases Policy Debate” (“O mito da desigualdade americana: como o governo distorce o debate político”, numa tradução livre).

Capa do livro The American Dream Is Not Dead (But Populism Could Kill It), de Michael Strain | Foto: Divulgação

Comparado ao trabalhador A de hoje, o trabalhador B e sua família em, digamos, 1974, teriam sofrido uma angústia econômica mais profunda se ele continuasse desempregado por muitos meses. Então, o trabalhador B não demorou muito para se mudar com a família da cidade natal que ela amava para uma cidade diferente, onde suas perspectivas de emprego eram melhores. Em contraste, o trabalhador A e sua família hoje têm maior poder de compra do que o trabalhador B e sua família na década de 1970. Se o trabalhador A perder o emprego, ele pode se dar ao luxo de “consumir” por mais tempo seu amor pela cidade natal do que o trabalhador B.

No entanto, a decisão do trabalhador A de não se mudar para procurar emprego faz com que as estatísticas econômicas pareçam piores do que pareceriam se ele fosse menos rico. Especificamente, como o aumento na prosperidade de A permite que ele fique por mais tempo em sua cidade natal procurando um novo emprego — em vez de conseguir um novo emprego mais rápido se mudando para outra cidade —, a duração média medida do desemprego é maior do que seria se A fosse mais pobre e tivesse se mudado em busca de um novo emprego.

Em resumo, a prosperidade material crescente dos americanos comuns torna o consumo de preferências de localização mais atraente. Embora esse resultado seja inequivocamente desejável, ele pode dar a impressão de que as estatísticas indicam uma piora na situação econômica dos americanos comuns.

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Os três exemplos acima de como estatísticas reais podem alimentar conclusões falsas são apenas a ponta do iceberg empírico. Insista, quando apropriado, em dados. Mas esteja sempre ciente de que esses dados podem ser altamente enganosos se manuseados de maneira descuidada.


Donald J. Boudreaux é pesquisador associado sênior do American Institute for Economic Research e membro do Programa F. A. Hayek de Estudos Avançados de Filosofia, Política e Economia Centro Mercatus da Universidade George Mason. Ele também é membro do conselho do Centro Mercatus, além de professor de economia e ex-presidente do departamento de economia da Universidade George Mason. Ele é autor dos livros, The Essential Hayek e Globalization, Hypocrites and Half-Wits. Seus artigos são publicados em veículos como Wall Street Journal, New York Times, US News & World Report, bem como em diversos periódicos acadêmicos. Ele escreve um blog chamado Cafe Hayek e uma coluna regular sobre economia para o Pittsburgh Tribune-Review. Boudreaux é formado em Direito pela Universidade da Virgínia e Ph.D. em economia pela Universidade Auburn.

Leia também “A infantilidade da cultura woke

1 comentário
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Enquanto nos EUA os salários baixam aqui no Brasil ele triplicou. Pergunta àquele menina do IBGE

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