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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 212

A voz do povo

O Brasil se dividiu em duas torcidas. A de Moraes diz que nenhum empresário pode deixar de se submeter às decisões do Judiciário. A de Musk grita que nenhuma autoridade pode ignorar as leis

Alexandre Garcia
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Fui alfabetizado em 1946 e desde então tirei a melhor nota em interpretação de texto, isto é, eu entendia e conseguia relatar o que havia lido. Depois, fui ainda me especializando no conteúdo das palavras e frases em 78 anos de prática, uns 55 anos em atividade jornalística. Mas desde 31 de agosto de 2016 tenho ficado em dúvida sobre se há um suprassignificado no que está escrito, e justo no mais importante livro do meu país, a Constituição. Naquele dia eu noticiei, ao vivo, que o Senado condenava a presidente, mas não a impedia de exercer função pública. Foi um nó nos neurônios, porque o que eu leio na Constituição é que presidente condenado fica oito anos impedido de função pública.

Dilma Rousseff diante dos senadores, durante sessão de julgamento do impeachment (31/8/2016) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Agora eu vejo o Supremo autorizando deputado a ser investigado por ter chamado o presidente da República de ladrão, ao mesmo tempo que leio na Constituição que deputados e senadores são invioláveis por quaisquer palavras. Vejo deputado preso preventivamente e leio que só pode ser preso em flagrante delito de crime inafiançável. Leio na Constituição que é livre a expressão do pensamento, sem anonimato, e que é vedado todo e qualquer tipo de censura, mas vejo pessoas, inclusive parlamentares, calados e até financeiramente bloqueados. As palavras devem ter adquirido outro significado enquanto, acreditando nas letras, palavras, frases, pontos e vírgulas, eu me alienei nessa transformação.

Dá arrepios imaginar que hoje, no Brasil, possa ser baixada uma cortina de censura, a calar a nova e ampla voz digital da origem do poder

Próximo do apocalipse

Consolo-me ao perceber que ainda há jornalistas que acreditam no verdadeiro sentido das palavras e frases e, sobretudo, anima-me perceber que muita gente ainda preza, respeita e defende a Constituição, mesmo que alguns daqueles que juraram cumpri-la, guardá-la e defendê-la estejam no modo Orwell de aplicar suas vontades. Um remédio para isso estaria no Senado, mas o presidente da Casa fica anímico nessa questão. Já que Rodrigo Pacheco não se anima, Elon Musk resolveu peitar Alexandre de Moraes, supremo entre os supremos. Com isso, Elon Musk ficou popular no Brasil e Alexandre de Moraes se tornou conhecido no mundo. Musk é sul-africano. Mas, como ele mora nos States — é lá que estão suas empresas —, vale aqui no Brasil como americano, para turbinar nosso espírito colonial. Enfim um salvador da pátria, já que o outro está inelegível, por inspiração de Moraes. Combater as decisões do ministro é perigoso para quem não quer ir morar na cadeia ou nos Estados Unidos. Então, ninguém com melhor salvo-conduto que Elon Musk para sugerir que Moraes renuncie ou sofra impeachment, como fez. Outros podem ter sido acordados para o nacionalismo e estão julgando que Musk se intromete mais em nossa soberania que o Macron na Amazônia.

Alexandre de Moraes (ao centro) em sessão plenária do TSE (4/4/2024) | Foto: Alberto Ruy/Secom/TSE

O “inquérito das fake news“, ao ser aberto por Toffoli sem Ministério Público (mais um caso em que minha leitura da Constituição ficou no ipsis litteris), considerou que as dependências do Supremo são o mundo, como o urbi et orbi do papa falando para Roma e para o mundo. E pegou todo mundo, nem Elon Musk escapou. O nome “inquérito do fim do mundo”, apadrinhado pelo ministro Marco Aurélio, nunca esteve tão próximo do apocalipse. A inclusão de Musk, agora investigado pela Polícia Federal, rendeu notícia nos jornais do mundo todo, talvez até superando o ibope do Tribunal de Haia. E Musk concorre com Putin como alvo de tribunais de nomeada.

Uma cortina de censura

Musk prometeu livrar dos bloqueios no seu X os censurados por Moraes. E ressalva que foi Moraes, e não a plataforma, que os bloqueou. Por sua vez, Moraes ameaçou multar Musk em R$ 100 mil por dia por perfil liberado. Fiança ao contrário. Musk reconhece que pode perder dinheiro se tiver que retirar seus negócios do Brasil. Porque dinheiro ele pode perder e ainda lhe sobra muito. Já defender a liberdade de expressão é um acúmulo de capital que ninguém pode bloquear. Imagine quanto vale o reconhecimento de que é um defensor da liberdade de expressão no Brasil. De nossa parte, a gente pode perder o X, o PayPal, a Starlink, a Tesla… e quem sabe a oportunidade de voar daqui para outra galáxia — o que foi criticado por Lula. Segundo o nosso presidente, não há espaço em outros mundos, e Musk tem que aprender a viver aqui. Por aqui, na Amazônia, 90% da ligação com o mundo é feita pelos satélites de Musk.

Elon Musk durante evento sobre Conectividade e Proteção da Amazônia, em Porto Feliz (SP) (20/5/2022) | Foto: Wikimedia Commons

Em uma semana o Brasil se dividiu em duas torcidas: Moraes e Musk. A torcida de Moraes diz que nenhum empresário pode deixar de se submeter à Constituição, às leis e às decisões do Poder Judiciário. A torcida de Musk grita, das arquibancadas, que nenhuma autoridade pode ignorar as leis, a Constituição e o Poder Legislativo. Se houvesse Poder Moderador, este diria que a Constituição garante o direito de expressar o pensamento sem anonimato e veda qualquer tipo de censura, política, artística ou ideológica. E que para calúnia, injúria e difamação já existe o Código Penal; e as questões das redes sociais já estão na lei de 2014, o Marco Civil da Internet. Foi preciso aparecer um estrangeiro a nos alertar sobre liberdade de expressão. Estou na Itália, escrevendo à beira do Adriático, e fico lembrando um discurso de Churchill em 1946: “De Stetin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro baixou sobre a Europa”. Dá arrepios imaginar que hoje, no Brasil, possa ser baixada uma cortina de censura, a calar a nova e ampla voz digital da origem do poder.

Leia também “Assim não há democracia”

8 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A “justiça” brasileira está à margem da sua própria Constituição Federal e demais leis.
    Como sociedade não podemos tolerar este arbítrio.
    A censura é o primeiro caminho trilhado para implantar as ditaduras.

  2. Alem Alberto Chedid
    Alem Alberto Chedid

    Não tenho certeza, mas acho que no exterior esse ministro e deus pagão é motivo de riso, de blague, de chacota. Um histrião, um ditador de araque num país idem. Quando vamos crescer? O povo analfabeto é presa fácil para os Rasputins de ocasião. Sem educação não há emancipação. Quando vamos crescer….????

  3. Jose Carlos Rodrigues Da Silva
    Jose Carlos Rodrigues Da Silva

    Agora vamos esperar se vai surtir algum efeito, pois as operações estão em curso, mais uma hoje a vigésima sexta.

  4. Emerson Caputo
    Emerson Caputo

    Sr Alexandre Garcia, hoje, no dentista, pude ver a Globonews, e ver que defendem Lula ter vetado parte importantíssima da “Lei da Saidinha”, o que podemos esperar de uma imprensa toda no bolso do atual Governo???Simplesmente não vejo solução para um país onde 99% da imprensa, a classe artística e todos os tribunais superiores, sem contar que o MPF está morto, mas todo esse grupo de olhos e bocas fechados para todo esse absurdo!!! estou sem esperança…forte abraço.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Ricardo Lewandovski, depois de anos em decisões favoráveis ao PT e seus satélites, como no fatiamento do impeachment da Dilma, agora é escancarada a relação como ministro da justiça. O que dirão os que condenaram Sergio Moro por assumir o MJ em 2018? Ficarão calados?

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Bota esse STF na cadeia que tudo se resolve ligeirinho, esse Lula é hospício. Lembrando que tem que resgatar os bens e propriedades desses bandidos ladrões comunistas terroristas que tudo é da população brasileira

  7. Joviana Cavaliere Lorentz
    Joviana Cavaliere Lorentz

    Parabéns, Alexandre Garcia. Mas esse problema de interpretação de texto constitucional começou há cerca de duas ou três décadas quando se equiparou partido político a povo e se abriram as portas para o financiamento público dos partidos. Problema velho que passou despercebido pela mídia.

  8. Hilciene de Jesus Pereira Salomão
    Hilciene de Jesus Pereira Salomão

    Belíssimo artigo

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