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Lula e Emmanuel Macron, presidente da República Francesa, durante a cerimônia de lançamento ao mar do submarino Tonelero, em Itaguaí, no Rio de Janeiro (27/3/2024) | Foto: Ricardo Stuckert/PR
Edição 212

Agro francês e agro brasileiro, même combat

O desafio agropecuário dos dois países merece ser tratado em patamar acima do simplismo, inconsistência e oportunismo demonstrados por seus mais altos dirigentes políticos

Evaristo de Miranda
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Depois que os franceses começaram a traficar com o Brasil,
 os selvagens colheram vantagens das mercadorias…
(Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, 1578)

O agro brasileiro e o francês são inseparáveis e inconfundíveis. E precisam de novos projetos e sinergias, além do Acordo de Livre-Comércio entre Mercosul e União Europeia (UE). O desafio agropecuário dos dois países merece ser tratado em patamar acima do simplismo, inconsistência e oportunismo demonstrados por seus mais altos dirigentes políticos, algumas lideranças do agro lá e cá, e parte da mídia, fixada na ratificação do acordo, dadas as contradições francesas. Quem conhece realmente os entrelaços da agricultura brasileira com a francesa e vice-versa?

A população dos dois países não tem ideia do quanto a produção agropecuária brasileira interage com a francesa. Nem de como, há um século, investidores, empresas e produtores franceses atuam diretamente na agricultura brasileira, na agroindústria e na distribuição de alimentos. Inclusive com operações estabelecidas desde o início da produção (green field), como na vitivinicultura.

A França é o maior produtor agrícola da UE, com 17% da produção total. Em 2023, sua produção foi estimada em R$ 520 bilhões: R$ 308 bilhões de produção vegetal; R$ 181 bilhões, animal; e R$ 31 bilhões, de serviços. Restam 440 mil propriedades rurais (média de R$ 1,2 milhão por imóvel) do mais de 1 milhão existentes em 1998. Mais da metade desapareceu em 25 anos, e o número segue decrescendo.

Campo a oeste de Poitiers, no sudoeste da França | Foto: Shutterstock

O Brasil é o maior produtor agrícola da América Latina. Em 2023, sua produção foi de R$ 1,2 trilhão. São 5 milhões de imóveis rurais (média de R$ 240 mil por imóvel). Um número estável: eram 4,8 milhões em 1995. A França possui o maior rebanho bovino da Europa: 18 milhões de cabeças. E o Brasil, o maior do mundo: 200 milhões de cabeças.

A França é o nono maior exportador e o sexto maior importador de mercadorias do mundo. O comércio representa mais de 60% de seu PIB. Exporta produtos farmacêuticos, aeronaves, veículos, alimentos, armas, turbinas e produtos de beleza. E importa bens de consumo, automóveis, produtos farmacêuticos, hidrocarbonetos e commodities agrícolas. A competitividade de seus agricultores e de seus produtos diminui a cada ano.

Em 20 anos, a França caiu de segundo exportador mundial de produtos agrícolas para a quinta posição (Relatório do Senado Francês sobre a Competitividade das Fazendas Francesas). O potencial agrícola da França declina, apesar de excedentes na balança comercial de 8 bilhões de euros.

Se a soberania alimentar da França se deteriora, a da UE melhora, pelo crescimento da produção agropecuária de países como Polônia e Espanha. Eles não têm restrições ambientais à intensificação da agropecuária, como as da França. A Política Agrícola Comum (PAC) de março de 2024 reduziu drasticamente as exigências ambientais sobre o agro. Sem harmonia entre as legislações ambientais nacionais, seguirão as distorções na competitividade e na concorrência interna na UE. Com mais de 9 bilhões de euros por ano, a França é campeã dos subsídios agrícolas da PAC para 2023-2027.

Bloqueio policial à manifestação de agricultores em Argenteuil, na França (29/1/2024) | Foto: Shutterstock

A França importa cada vez mais produtos agrícolas, inclusive da UE. As importações em 2023, na ordem de 70 bilhões de euros, superaram em mais de duas vezes as do ano 2000. Na carne de ovelha, 56% são importados; nos legumes, 28%; e na fruticultura, 71%. De cada dois frangos consumidos na França, um é importado. E o produzido localmente depende de soja e milho importados, cuja dependência do Brasil é emblemática.

O mundo produz mais de 400 milhões de toneladas de soja por ano. O Brasil, mais de 150 milhões de toneladas, quase 40% da produção mundial. A UE produz 3 milhões de toneladas de soja. Seu consumo superou 16 milhões de toneladas em 2022. Ela importa 13 milhões de toneladas todo ano para atender à produção de leite, aves, ovos, suínos e peixes. Mais de 95% da soja importada é OGM, geneticamente modificada.

Em 2020, o presidente Macron prometeu à sua nação a independência da soja brasileira. Governo e setor agrícola se comprometeram a aumentar em 40% a área de oleaginosas, em três anos: cerca de 400 mil hectares extras até 2023. O então ministro da agricultura, Julien Denormandie, anunciou a meta de 650 mil toneladas em 2025 e 2 milhões de hectares em 2030. Os produtores firmaram “carta de compromisso” com as metas em troca de 100 milhões de euros por dois anos, para o cultivo e a pesquisa. Resultado?

Julien Denormandie, ministro da Agricultura francês, na sede da UE, em Bruxelas (21/3/2022) | Foto: Shutterstock

Em 2023, a França plantou 161 mil hectares e colheu 436 mil toneladas de soja, praticamente o mesmo de 2018 (154 mil hectares e 400 mil toneladas). Sua produção é 0,001% da mundial e 14% da UE. E as 650 mil toneladas em 2025? Impossible. Será como o imposto sobre emissões de CO₂ proposto por Macron em 2018? Serviu para inflamar protestos dos Coletes Amarelos e quase derrubar o governo. Para chegar a 2 milhões de hectares em cinco anos, quem os cederá à soja? Os cereais, a beterraba ou a viticultura? Difficile.

A França consome 150 quilos de soja por segundo. Por ano, mais de 4 milhões de toneladas: soja-grão (15%), farelo (82%), óleo (2%) e outros (1%). É muita soja. Desse total, cerca de 87% destinam-se a ração para aves e ovos (50%), suínos (24%), vacas leiteiras e bovinos (16%), bezerros (6%) e peixes (salmão, 4%). E 88% desse farelo de soja vem do Brasil.

Substituir a soja por outras culturas seria viável? A produtividade do girassol, da colza e de outras oleaginosas é muito inferior à da soja. Isso traz custos suplementares aos agricultores e mais perda de competividade. Substituir a soja importada por oleaginosas produzidas na Europa não tem viabilidade. Europa e França dependerão muito, e por muito tempo, da soja brasileira para manter sua produção de proteína animal.

Colheita em massa de soja em uma fazenda em Campo Verde, em Mato Grosso (2008) | Foto: Shutterstock

Nem só de soja vivem frangos de corte, volailles fines de Bresse, galinhas de postura, poules pondeuses Label Rouge, suínos e charcuterie AOP. É preciso muito milho. A queda no consumo de carne vermelha e o aumento da procura por carne branca impulsionaram a demanda por milho nas rações.

Em 2022, 76% do milho foi para a pecuária: 40% aves, 36% suínos, 10% gado leiteiro e 10% bovinos de corte. A produção francesa não dá conta. As importações de milho explodiram nos últimos dez anos. A dependência francesa de importações cresceu de 10% em 2012 para 23% em 2022.

Como a soja, a produção de milho não tem como, nem onde, crescer. Nem competitividade versus transgênicos. A possibilidade de importar milho OGM, mais competitivo, favorece as importações. Mais de 200 cultivares de milhos OGM estão autorizadas à importação na UE. Nenhuma delas pode ser cultivada! O mesmo com variedades OGM de soja, colza, beterraba e outras. Sobre transgênicos: europeus não plantam, só comem!

A Ucrânia fornecia 57% do milho importado pelo bloco; e o Brasil, cerca de 25%. Com o conflito militar na Ucrânia, o Brasil ampliou sua participação. Em 2023, as exportações de milho brasileiro chegaram a 56 milhões de toneladas e US$ 165 bilhões. O Brasil é o maior exportador mundial, suprindo em muitos mercados a falta dos grãos ucranianos.

Navio cargueiro de exportação de soja e milho no Rio Tapajós, em Santarém, no Pará (5/2/2024) | Foto: Tarcisio Schnaider/Shutterstock

Em 2023, a França foi apenas o 29º destino das exportações brasileiras (US$ 2,9 bilhões) entre as 243 nações compradoras de bens e produtos nacionais. Ela representa menos de 1% do exportado pelo Brasil (US$ 340 bilhões). Os 28 países anteriores somam 83,5% das exportações brasileiras. Em comparação à França, o Brasil exporta mais para Indonésia, Malásia, Vietnã, Turquia, Tailândia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Holanda (US$ 12,2 bilhões), Espanha, Alemanha, Itália, Portugal, Bélgica, Reino Unido, EUA (US$ 37 bilhões), Argentina, Canadá, México, Colômbia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai. Crescem esses mercados, e a cada ano cai a relevância da França. Isso não é bom. Vínculos entre França e Brasil são históricos e geoeconômicos. Merecem soluções positivas para ambos.

Se demandas internas do agro brasileiro não têm a devida atenção das autoridades, quanto mais seus desafios externos

O Brasil tem 730 quilômetros de fronteira com a única colônia na América do Sul, a Guiana (dita) Francesa. Fronteira com a França, a UE e a Otan. A França é o quarto maior investidor no Brasil, através de grandes empresas (Carrefour, Airbus, Vicat Cimentos…) e de muitas pequenas e médias. Em conjunto, mais de mil empresas fazem da França o primeiro empregador privado no Brasil, com 520 mil empregos diretos e um faturamento de R$ 3,3 trilhões.

A lista de empresas francesas na agropecuária do Brasil é significativa. Segue, em grandes números, um exemplo de dez empresas francesas na produção agropecuária brasileira, pouco conhecidas do grande público.

  • Louis Dreyfus Company: no Brasil desde 1942, tem sede em São Paulo e atua no comércio internacional de commodities agrícolas, logística e produção de cítricos, café, oleaginosas e algodão. Faturamento no Brasil da ordem de R$ 45,5 bilhões (2022), com 11 mil empregados.
Louis Dreyfus Company, unidade de Confresa, em Mato Grosso (2022) | Foto: Divulgação
  • Tereos International: no Brasil desde 2000, tem sede em São Paulo e atua na cana-de-açúcar (300 mil hectares), etanol, bioenergia, amidos e adoçantes. Faturamento no Brasil da ordem de R$ 18,4 bilhões em 2022.
  • CCAB Agro (Grupo InVivo): no Brasil desde 2016, tem sede em São Paulo e opera no setor de agroquímicos (fungicidas, herbicidas e inseticidas). Faturamento no Brasil da ordem de R$ 0,8 bilhão em 2022.
  • Malteria Soufflet (Grupo InVivo): no Brasil desde 2012, com sede em Taubaté (SP), atua no processamento da cevada (produção de malte para a indústria cervejeira). Faturamento global de R$ 11,9 bilhões, 6,5 mil empregados.
  • Limagrain (LG Sementes, Geneze): no Brasil desde 2011, com sedes em Curitiba (PR) e Goianésia (GO), atua em sementes e grãos. Faturamento global de R$ 13,6 bilhões (2022), com 10 mil empregados, dos quais 400 no Brasil.
  • Timac Agro Brasil (Grupo Roullier): no Brasil desde 1979, com sede em Porto Alegre (RS) e instalações em Candeias (BA), Santa Luzia do Norte (AL) e Rio Grande (RS). Opera na produção e comércio de fertilizantes. Faturamento global de R$ 22,3 bilhões (2022). Emprega 10 mil pessoas, 2,4 mil no Brasil.
Garrafas de vinho espumante Chandon produzidas no Brasil (2018) | Foto: Shutterstock
  • Bonduelle Brasil: no Brasil desde 1994, com sedes em São Paulo e Cristalina (GO), cedida ao grupo Nortera em 2022. Produz conservas de legumes (ervilha, milho, grão-de-bico, seleta) e emprega 150 pessoas no Brasil.
  • Food’n Wood: no Brasil desde 2008, com sede em Rio de Contas (BA), dedica-se à produção de manga, cítricos e azeitona, e às práticas de agricultura sustentável. Emprega 50 funcionários.

Protestos dos agricultores contra regulamentos europeus de pesticidas, bem-estar animal ou restauração da natureza questionaram as políticas do Green Deal e do Farm to Fork, nefastas à soberania alimentar da UE, à sua capacidade de se alimentar e de fornecer alimentos a mercados externos. Cuja volatilidade crescerá com a redução da oferta de produtos europeus.

Atores e líderes do agronegócio devem buscar novos caminhos nas relações com a França. Se demandas internas do agro brasileiro não têm a devida atenção das autoridades, quanto mais seus desafios externos. No convescote amazônico e na visita de Macron perdeu-se uma oportunidade para soluções inovadoras, benéficas aos agricultores dos dois países. Faltaram criatividade e interesse. Fora do insepulto Acordo Mercosul-UE, há propostas a serem explicitadas pelo setor privado das duas nações. Quem as conhece? Quem o fará? Quem colherá vantagem das mercadorias?

Leia também “O caráter do pecuarista”

9 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelentes informações. Não sabia que a Timac pertence a franceses.
    E, no mais, Lula e Macron se merecem, ambos são hipócritas.

  2. Domingos de Souza
    Domingos de Souza

    O dr. Evaristo ilustra seus artigos com uma simplicidade e clareza impressionante, tornando uma leitura agradável e repleta de informações.
    Parabéns, dr. Evaristo, por nos presentear com textos da mais alta qualidade.

    1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
      Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

      Verdade.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse ixcumugado esse cachorro da mulesta esse febrento do rato da bobônica desse Evaristo de Miranda é o Elon Musk da geografia agrária, que fi de uma égua!!! Chama esse minino do IBGE pra vê como é o negócio

  4. Letícia Mammana
    Letícia Mammana

    Impressionante a capacidade do Dr. Evaristo de encontrar, coletar e analisar esses dados comparativos do agro brasileiro com o francês. Parabéns. Um dos únicos artigos sobre o Acordo do Mercosul – União Europeia fora do blá-blá-blá usual. E tudo com dados. Concordo com o articulista. O tempo é buscar convergências, de interesse mútuo, acima da mediocridade oportunista de um Lula e um Macron, mais para micron.

  5. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Excelente artigo
    Como pode ninguem tomar provodencia para encontrar a forma dos dos paises crescerem e continurem essa cooperaçao ??

    1. Luiz Marins
      Luiz Marins

      Muito interessante, aliás como todos os artigos do Dr. Evaristo. Valeu!

  6. RCB
    RCB

    Quem ameaça desestabilizar a produção de 40% das exportações mundiais de alimento e criar um pânico alimentar pior que a pandemia?
    . MST
    . ONGs ambientalistas financiadas pelos exploradores do sangue e suor de produtores rurais.
    . Políticos a serviço dos estrategistas do globalismo.

  7. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Lula e Mácron se equivalem na arrogância e incompetência. Dois dos piores presidentes que os dois países já tiveram.
    ” Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento.”
    Obrigada, Evaristo, pelas lições belas e úteis.

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