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Ministro da SECOM, Paulo Pimenta e o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante anúncio de medidas relacionadas ao Rio Grande do Sul, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul (15/5/2024) | Foto: Ricardo Stuckert/PR
Edição 218

O Ministério do Caos

Governantes brasileiros sempre acharam que o Estado é sua propriedade. Mudamos de imperadores para presidentes, mas as práticas políticas pouco mudaram

Roberto Motta
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O Estado brasileiro nomeou um ministro plenipotenciário para governar o apocalipse que ameaça o Sul do país. Precisamos falar sobre isso. Mas será que podemos?

O que se tem visto, desde o início do mês de maio, foi a colisão de dois mundos. De um lado, o mundo real, onde aconteceu uma catástrofe sem paralelo no país. Nesse mundo real a sociedade socorreu a si mesma: pessoas comuns se apresentaram, na hora de maior necessidade, como voluntárias para socorrer outras pessoas. Ao invés de fugir do perigo, os voluntários foram ao encontro dele. Foi um socorro corajoso, eficiente, generoso. O Estado aproveitou a oportunidade principalmente para atrapalhar, como foi fartamente documentado por aquela parte da mídia que não trabalha como assessoria de imprensa oficial.

Em um universo paralelo — que só existe na imaginação de alguns ocupantes de cargos públicos —, representantes do Estado fizeram discursos magníficos, vestiram coletes coloridos, sacudiram os dedos no ar fazendo caretas e prometeram a liberação de bilhões — não era dinheiro deles, mas dinheiro dos impostos pagos pelos contribuintes. Em seguida, congratularam uns aos outros por sua excepcional atuação e foram comemorar em churrascarias. Enquanto isso, os gaúchos — um povo determinado, altivo e independente — esperavam em longas filas por doações de gêneros de primeira necessidade.

Dependendo do momento em que você olha, o Brasil é uma tragédia ou uma comédia. Frequentemente, as duas coisas se misturam.

Paulo Pimenta, recém-nomeado ministro-chefe da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Esta minha opinião não é fruto de preconceito. Não sofro da síndrome de vira-lata, que diz que o brasileiro é um indivíduo de segunda classe. Pelo contrário: sempre chamo a atenção para o fato de que a maioria dos brasileiros que emigram para países como Estados Unidos alcança uma vida confortável e próspera. Basta tirar o peso do Estado brasileiro das costas do cidadão que ele voa.

Somos um povo tão bom quanto qualquer outro, mas nossos governantes raramente estiveram à altura do nosso povo. Em muitos países o Estado se tornou um brinquedo na mão dos poderosos, mas no Brasil isso foi transformado em um tipo de arte.

O Brasil de hoje é dominado por uma mistura de desprezo pelos direitos naturais, intervencionismo social, estatismo indiscriminado, marxismo cultural, anulação do Poder Legislativo, insegurança jurídica extrema e abandono do pacto federativo

Confesso que, um dia, pensei que o Estado era o caminho. Minha geração foi educada para acreditar que todos os “problemas sociais” tinham uma solução racional, e que todas as soluções passavam pelo Estado. Para tudo era preciso uma lei, uma regulamentação, uma estatal ou uma agência reguladora. As ideias disponíveis na minha juventude eram exclusivamente ideias socialistas ou socializantes. Eu já tinha quase 50 anos de idade quando ouvi falar pela primeira vez de liberalismo, através de aulas com Rodrigo Constantino e Hélio Beltrão, na época em que participei da criação do Partido Novo. Se hoje sou defensor das ideias liberais e conservadoras — as ideias da liberdade — é porque eu vi a luz. Eu sou, eu mesmo, um milagre — milagre fruto do trabalho incansável daqueles pioneiros que fundaram entidades como o Instituto Liberal, o Instituto de Estudos Empresariais, o Instituto Millenium e tantos outros focos de resistência da inteligência, do conhecimento e do bom senso.

Por isso sou infinitamente paciente com as pessoas que ainda se apegam ao que Friedrich Hayek chamou de racionalismo construtivista: a crença de que é possível reformar o mundo a partir de critérios puramente racionais, ignorando todos os outros fatores que contribuíram para a formação de costumes, tradições e instituições. Essa crença é sempre acompanhada de outra: a de que o Estado e sua corte de intelectuais, políticos e juristas é responsável por essa “engenharia social” que vai refazer a sociedade e reconstruir o ser humano a partir do zero.

Retrato de Friedrich Hayek, economista austríaco | Foto: Domínio Público

Uso o tempo e os espaços de que disponho para explicar às pessoas que o Estado bom é aquele que cumpre bem suas funções essenciais: a defesa nacional, a justiça, o combate à criminalidade e os serviços de educação e saúde básicas — e mais nada. Esse é o Estado mínimo, porque se limita a cumprir sua missão — mas é também o Estado essencial, sem o qual nem direitos nem liberdade estão garantidos. Não se trata de um Estado fraco, porque é preciso combater a criminalidade e defender territórios e direitos. Mas deve ser um Estado enxuto e eficiente, com poucos funcionários, todos competentes, bem remunerados e conscientes da sua responsabilidade e dos limites do seu poder.

Governantes brasileiros sempre acharam que o Estado é sua propriedade. Mudamos de imperadores para presidentes, mas as práticas políticas pouco mudaram. O Brasil de hoje é dominado por uma mistura de desprezo pelos direitos naturais, intervencionismo social, estatismo indiscriminado, marxismo cultural, anulação do Poder Legislativo, insegurança jurídica extrema e abandono do pacto federativo — tudo isso tornou o Estado brasileiro mais vulnerável do que nunca aos predadores. Esses predadores — eleitos e não eleitos —, por sua arrogância, desprezo pela ordem jurídica e descaso até mesmo com a aparência de decência, lembram um dos mais infames políticos da história, o ex-presidente americano Richard Nixon.

Nixon presidiu a segunda pior crise da história dos Estados Unidos depois da guerra civil. Eleito em 1968 e reeleito com votação recorde em 1972, ele se revelou um político rancoroso e vingativo, obcecado pela destruição de seus adversários. Sua presidência foi marcada por corrupção escancarada, com advogados carregando malas cheias de dinheiro de um lado para o outro, comprando favores e apoio. Nixon mentia para o Congresso e para o povo. Grampos telefônicos, chantagens e invasões de casas e escritórios de desafetos faziam parte de sua rotina. A máquina de poder de Nixon trabalhou para anular os poderes do Congresso e do Judiciário, usar a Receita Federal americana para investigar e atacar oponentes e exercer pressão sobre empresários e sindicalistas, extraindo milhões de dólares de propina em troca de favores. Por isso o historiador Arthur Schlesinger Jr. chamou a administração de Nixon de presidência imperial.

Richard M. Nixon, em 1971
Richard M. Nixon, ex-presidente dos Estados Unidos, em 1971 | Foto: National Archives and Records Administration (NARA)

Nixon entrou em uma espiral tóxica de poder. Como disse Harold Evans em The American Century (Alfred Knopff, 1998, p. 572), “nunca houve, em seu círculo íntimo, uma personalidade forte que desse um soco na mesa e dissesse: senhor presidente, o senhor não pode fazer isso porque é inconstitucional”. Nixon cavou sua própria cova no escândalo de Watergate. Na noite de 17 de junho de 1972, quatro cubanos e um ex-agente da CIA foram flagrados ao arrombar um escritório do Partido Democrata para instalar equipamentos de escuta. Investigações subsequentes revelaram uma conexão direta com a Casa Branca. Quando o escândalo estourou, Nixon, ameaçado de impeachment, renunciou.

Uma questão que nunca ficou esclarecida é por que Nixon decidiu se arriscar ordenando uma operação como essa. Sua posição eleitoral era considerada imbatível, e sua reeleição, dada como certa. Segundo Harold Evans em The American Century (p. 571), a pergunta não faz sentido:

“Perguntar por que Nixon sentiu necessidade de sabotar a campanha do Partido Democrata, que não tinha nenhuma chance de vitória, é não entender o ponto principal. A operação de espionagem de Watergate não se originou de nenhum cálculo político racional, mas diretamente — e inevitavelmente — da personalidade doentia e paranoica de Richard Nixon.”

Essa personalidade ficou registrada em uma frase que simboliza a arrogância e o sentimento de impunidade que dominam políticos em situações assim. Comentando os absurdos acontecidos em seu governo, Nixon disse: “Se o presidente da República fez isso, então é legal”.

É a lógica de Richard Nixon — e também a lógica do Brasil atual.

Leia também “Os três cavaleiros do apocalipse brasileiro”

20 comentários
  1. Ricardo Martins Peres
    Ricardo Martins Peres

    Desculpe, houve um problema com o sinal do meu celular e o comentário saiu três vezes seguidas…

  2. Ricardo Martins Peres
    Ricardo Martins Peres

    Muito bom o artigo. Excelente a citação de Nixon, como o Presidente Imperial. É o que precisamos deixar de ter aqui no Brasil. Parabéns, Roberto Motta.

  3. Ricardo Martins Peres
    Ricardo Martins Peres

    Muito bom o artigo. Excelente a citação de Nixon, como o Presidente Imperial. É o que precisamos deixar de ter aqui no Brasil. Parabéns, Roberto Motta.

  4. Ricardo Martins Peres
    Ricardo Martins Peres

    Muito bom o artigo. Excelente a citação de Nixon, como o Presidente Imperial. É o que precisamos deixar de ter aqui no Brasil. Parabéns, Roberto Motta.

  5. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Pelos comentários , parece q Watergate já foi esquecido! Parabéns , Motta! Belo texto , muito elucidativo e tb aula de história recente .

  6. Paulo César da Conceição
    Paulo César da Conceição

    Eu espero que aqui no Brasil, um senhor careca, de TOGA, tenha o mesmo destino do Nixon. Qto ao ladrão, o próprio tempo o está condenando.

  7. Teo Ferreira Radialista
    Teo Ferreira Radialista

    O governo do DESCONDENADO Lula é pior ainda do que o do senhor nixo

  8. Lilian Pantoja Sosman
    Lilian Pantoja Sosman

    Você falou imperador e eu senti saudades de D Pedro II…

  9. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A juventude e a educação padrão Paulo Freire levam nossos jovens a tendência a esquerda. Com o passar do tempo e a necessidade de estudos para crescer na vida e junto a sua família, vem a busca pela meritocracia, e a tendência a direita.

  10. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Parabéns Motta pela coragem de afirmar que o Estado só fez panfletagem, discursos políticos, promessa de recursos, ou seja muito pouco para salvar vidas e alojar e cuidar da população atingida. Vale dizer que nesse alegre convescote para criar um Ministério da Intervenção no RG do Sul estava presente o sorridente BARROSO, CEO do STF, aquele do “perdu mané”, “nós derrotamos o bolsonarismo” e outras insanidades, praticamente aprovando essa INCONSTITUCIONALIDADE.
    Cumprimento também por não se envergonhar de dizer que até 50 anos de idade era um defensor do Estado e reconheceu nas ideias liberais e conservadoras quando da criação do Partido Novo a necessária transformação no Estado mínimo cumprindo as funções essenciais como defesa nacional, saúde e educação básicas e segurança.
    Mas para que essa transformação aconteça em nosso pais extremamente dividido e vulnerável ao populismo demagógico político é necessário que tenhamos transparência e segurança no processo eleitoral urgentemente. Entretanto não vejo a boa imprensa Revista Oeste, Gazeta do Povo e outras mídias plurais, qualquer manifestação com esse assunto e estamos em véspera de eleições municipais.
    Em levantamento que fiz sobre o aumento da população eleitoral por Estado, de 2018 a 2022, encontrei que nos Estados que Lula e a esquerda venceram, cresceu muito mais que os Estados que Bolsonaro e a direita venceram.
    O Maranhão do Dino cresceu 11,15%, Pará 10,60%, Bahia 8,60%, já São Paulo 4,93%, R.Janeiro 3,38%, e R.G. do Sul 2,86%. Não é estranho?.
    Ainda não sabemos qual será a população eleitoral por Estado neste ano, mas entendo que o bom jornalismo da mídia liberal e conservadora poderia avaliar como se deram esses crescimentos.
    Importante também que voltemos a falar do VOTO AUDITÁVEL OU IMPRESSO, para que não haja motivo para FORJAR outra FARSA do 8 de Janeiro. Com o VOTO IMPRESSO o eleitor é o primeiro AUDITOR, pois verifica que seu voto esta contido em 2 urnas, a eletrônica e a lacrada com o VOTO IMPRESSO. Com certeza ninguém ousará FRAUDAR o sistema sabendo que o voto será AUDITADO e RECONTADO.

  11. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A república anunciada – ela ainda não foi proclamada – foi fruto de meia dúzia de “republicanos” que queriam o poder, tronando o primeiro golpe político do país. Não foi um movimento popular. Muito pelo contrário D. Pedro II era admirado pelos súditos e respeitado no âmbito internacional.
    Neste cenário a administração pública foi concebida para não funcionar e cada governante da vez acrescenta mais algumas mazelas, tornando o país um ambiente inóspito para empreendedorismo, investimentos, crescimento econômico e desenvolvimento social.

  12. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Eu nem sabia que Richard Nixon caiu porque mandou invadiu a sede do partido democrático. Que dizer que ele era do partido republicano? Então ele era do PSDB americano? Essa política dos EUA é muito difícil de entender, até hoje eu não como é a eleição lá. Aqui é melhor de entender, são três tipos, os bandidos terroristas comunistas ladrões que estão nos três poderes contra toda a população

  13. Elias José de Souza
    Elias José de Souza

    Excelente texte, muito bem redigido, exemplifica muito bem a atual situação política do Brasil.

  14. Alyson Cruz
    Alyson Cruz

    Agora posso comentar rss. Parabéns a oeste!

    1. MNJM
      MNJM

      Que texto maravilhoso. Quanta contribuição.

  15. Ramon
    Ramon

    Que texto Belo! Bons exemplos históricos e uma exposição concreta da atual situação de nosso triste país. Motta continue com essas brilhantes exortações e nos proporcionando mais conhecimento, valores e a capacidade de ter uma informação verdadeira. Não importa aonde vá eu serei seu fã e seguirei seu trablho.

  16. jorge alves
    jorge alves

    Paulo Pimenta, LULA, e Eduardo Leite e sua Primeira Dama LIXOS CHORUME não fazem nada nessa catástrofe estão só se LERO LERO rsss

  17. Gustavo de Carvalho Barcelos
    Gustavo de Carvalho Barcelos

    Excelente.

  18. Themis Regina França Koteck
    Themis Regina França Koteck

    Excelente artigo de R. Motta , como de hábito.

  19. Ubirajara garcia
    Ubirajara garcia

    Não conhecia essa sacanagem do Nixon.
    Parabéns pelo artigo.

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