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A autoimolação de Thích Quảng Đức, durante a crise budista no Vietnã, fotografada por Malcolm Browne, em Saigon (imagem colorida digitalmente, 1964) | Foto: Wikimedia Commons/Malcolm Browne
Edição 220

Imagem da Semana: monge em chamas

A dramática foto que rodou o mundo e acelerou a derrubada do governo vietnamita em 1963 causa espanto até hoje

Daniela Giorno
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Em junho de 1963, o fotógrafo Malcolm Wilde Browne, correspondente da Associated Press, capturou o momento dramático e histórico em que o monge budista vietnamita Thích Quảng Đức ateia fogo no próprio corpo, em Saigon. Browne ganhou dois prêmios com essa impressionante imagem: o Pulitzer e o World Press Photo. A imagem também foi considerada pela revista Time uma das cem mais influentes da História.

Na época, essa região do Vietnã vivia um período de turbulência política e religiosa. Ngô Đình Diệm havia se tornado o primeiro presidente do Vietnã do Sul depois da independência e divisão do país, em 1955. Por mais que, na época, grande parte da população local fosse budista (cerca de 70% a 90%), o regime era declaradamente pró-católico. Não demorou muito para Diêm passar a discriminar e perseguir monges budistas.

O budismo tinha status de “religião privada”, e as pessoas tinham que pedir permissão para realizar suas atividades em público. Em 1959, a bandeira budista foi proibida de ser hasteada. Isso tensionou ainda mais o clima no país, gerando diversas manifestações em prol da religião que sofria as consequências das sanções.

Fotógrafo Malcolm Browne, autor da icônica foto do monge budista | Foto: Divulgação

Depois de um mês de protestos e conflitos nas ruas de Saigon, no dia 10 de junho os líderes budistas resolveram chamar a imprensa para um ato que prometia ser grande. Poucos repórteres acreditaram nos rumores, mas Malcolm Browne decidiu aparecer no local. David Halberstam, do New York Times, também atendeu ao chamado — e posteriormente publicou um detalhado relato do evento.

No dia 11 de junho, cerca de 350 monges marcharam pelas principais avenidas da capital com cartazes em inglês, denunciando o governo. Nesse dia, testemunhas viram o religioso Thích Quảng Đức chegar ao local de carro, acompanhado por outros dois monges. Bem no meio de um cruzamento, a poucas quadras do palácio presidencial, Đức desceu do veículo e se sentou calmamente em uma almofada, na posição de lótus.

Então, um dos monges que o acompanhava tirou um galão de gasolina do porta-malas do carro e despejou-o sobre Đức. Encharcado, ele mexia nas contas de oração que tinha nas mãos, recitando uma prece. As testemunhas afirmaram que, logo em seguida, na frente de centenas de pessoas, o monge acendeu um palito de fósforo e ateou fogo em si mesmo. As últimas palavras documentadas do monge foram as seguintes:

“Antes de fechar meus olhos e me dirigir à visão de Buda, peço respeitosamente que o presidente Ngô Đình Diệm tenha compaixão com o povo e melhore a igualdade religiosa para manter a força da nação eternamente. Peço que os veneráveis, reverendos, membros da sangha e budistas se organizem de forma solidária para fazer sacrifícios como forma de proteger o budismo.”

Foto de Malcom Browne do monge Thích Quảng Đức em chamas, em Saigon (1963) | Foto: Wikimedia Commons/Malcolm Browne

Đức permaneceu imóvel enquanto era consumido pelo fogo. Não moveu um músculo sequer nem emitiu qualquer som. Apenas quando morreu ele saiu da posição de meditação — seu cadáver tombou para trás. Espectadores se posicionaram diante dele e começaram a proferir orações, outros choraram, mas a maioria dos presentes assistiu ao ato em silêncio.

Dez minutos depois, já com as chamas apagadas, um grupo de monges se aproximou do corpo e o cobriu. O cadáver foi levado a um templo budista no centro de Saigon, onde foi cremado novamente, durante o funeral. Curiosamente, o coração do budista teria permanecido intacto apesar das chamas e passou a ser uma relíquia que hoje se encontra guardada no Templo Xa Loi.

“Não se sabe exatamente quando ele morreu, porque não era possível dizer por suas feições ou voz, ou qualquer coisa. Ele nunca gritou de dor”, explicou o fotógrafo Malcolm Browne em entrevista à Time, em 2012. “Seu rosto parecia bastante calmo, até ficar tão enegrecido pelas chamas que não dava mais para vê-lo. Quando, finalmente, concluíram que Đức estava morto, os monges trouxeram um caixão de madeira improvisado.”

O repórter David Halberstam, que cobria a Guerra do Vietnã, escreveu:

“Eu poderia ter aquela visão novamente, mas uma vez foi o suficiente. As chamas vinham de um ser humano; o seu corpo estava lentamente murchando e murchando; a sua cabeça, escurecendo e carbonizando. No ar estava o cheiro de carne humana queimada; seres humanos queimam surpreendentemente rápido. Atrás de mim eu podia ouvir os soluços dos vietnamitas que agora estavam se reunindo. Eu estava demasiadamente chocado para chorar, confuso demais para tomar notas ou fazer perguntas, confuso demais até para pensar… Enquanto queimava, ele não mexeu nem um músculo, nunca emitiu um som; sua compostura estava em nítido contraste com a das pessoas chorando ao seu redor.”

A fotografia de Browne chocou o mundo, ao ponto de o presidente do Vietnã do Sul anunciar, no mesmo dia, que estava “consternado” e que retomaria as negociações com os budistas. O então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, retirou o apoio que dava a Ngô Đình Diệm.

Logo depois da morte de Thích Quảng Đức e de outras autoimolações que se seguiram no país, as tensões religiosas levaram ao golpe de Estado que resultou na derrubada e no assassinato do presidente, em novembro de 1963. Em 1975, o Vietnã do Norte conquistou Saigon e, no ano seguinte, começou o processo de unificação da República Socialista do Vietnã.

Mais tarde, a fotografia estampou a capa do álbum de estreia da banda Rage Against the Machine, o que demonstra seu impacto até mesmo na cultura pop.

Capa do álbum de estreia da banda Rage Against the Machine | Foto: Divulgação

Daniela Giorno é diretora de arte de Oeste e, a cada edição, seleciona uma imagem relevante na semana. São fotografias esteticamente interessantes, clássicas ou que simplesmente merecem ser vistas, revistas ou conhecidas.

Leia também “O homem dos tanques”

3 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Assustador.

  2. Zulimar Marrara
    Zulimar Marrara

    Eu me lembro. Não foi o único monge que se imolou.

  3. Ana Cláudia Chaves da Silva
    Ana Cláudia Chaves da Silva

    Chocante!

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